Câncer de mama não é mais doença de rico

sex, 19/10/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O câncer de mama é a forma mais letal de câncer nas mulheres. Estima-se que um milhão de casos serão diagnosticados até o final deste ano. De acordo com pesquisa realizada pela revista “Times” (15 de outubro de 2007), numa reportagem especial sobre o assunto, cerca de 500 mil mulheres morrerão dessa forma no mundo todo. Só nos EUA, uma em cada oito mulheres será diagnosticada.

O câncer de mama era, até então, predominantemente encontrado em países ricos do Ocidente. Mas hoje o cenário está mudando radicalmente. No ano 2020, 70% de todos os casos de câncer de mama serão diagnosticados nos países em desenvolvimento, incluindo Ásia, Europa Oriental, África e América Latina.

Para piorar a situação, as técnicas de detecção e tratamentos comuns nos países ricos não estarão acessíveis para a maioria dos pacientes no futuro. Ou você acha que exames de mamografia são comuns no Quênia ou no Brasil subdesenvolvido? Pois é, a pobreza consagra-se como um dos piores carcinógenos, ou seja, causadores do câncer.

Essa mudança radical no perfil das mulheres com câncer de mama tem origens relativamente positivas. Com a melhoria das condições sanitárias e da disponibilidade de alimentos, a expectativa de vida das nações mais pobres aumentou de 50 anos em 1965 para 65 anos em 2005. Dessa forma, as mulheres nos países subdesenvolvidos estão vivendo mais e alcançando uma idade onde estão mais expostas a carcinógenos e susceptíveis ao câncer de mama.

O grande problema é que esse aumento da expectativa de vida vem junto com outros hábitos, alguns menos positivos, de países ricos: dieta rica em gordura, sedentarismo, obesidade, terapias de reposição hormonal, um menor número de filhos e maternidade tardia. Junto com a longevidade, esses fatores estão claramente relacionados à alta incidência de câncer de mama.

O câncer de mama se desenvolve a partir da exposição ao hormônio feminino chamado de estrógeno, que induz o tecido mamário a crescer de forma acelerada durante o ciclo menstrual. Dessa forma, o fato de ter poucos filhos e a maternidade tardia aumentariam a exposição da mulher ao estrógeno. No entanto, a maneira como o tecido mamário reage ao hormônio é influenciada pela carga genética individual.

Alguns cânceres são hereditários e podem ser observados em diversas gerações de uma mesma família. Mutações em dois genes, BRCA1 e BRCA2 (pronuncia-se “braca” no meio científico), foram identificadas como fatores de risco, mas claramente existem outros genes envolvidos e ainda desconhecidos. Mutações nos genes BRCA são responsáveis por cerca de 10% dos casos de câncer de mama nos EUA, tanto em mulheres como em homens.

No caso dos BRCA, as mutações levam a um tipo superagressivo de câncer de mama, com alta freqüência em mulheres abaixo de 50 anos. Se você tem a mutação, suas chances de desenvolver câncer de mama são altíssimas. Atualmente, já existem testes para esses genes e, uma vez diagnosticada geneticamente, a pessoa tem a oportunidade de retirar o útero, ovários e fazer mastectomia antes mesmo do aparecimento do câncer, na tentativa de garantir sua sobrevivência. Obviamente, essa não é uma decisão fácil.

O gene BRCA1 foi o primeiro a ser relacionado com altos índices de câncer de mama, ovário, próstata e cólon. O gene foi descoberto em 1994, por meio do estudo de casos em uma família de mórmons. Seu parceiro, o BRCA2, foi descrito no ano seguinte e, apesar de serem estruturalmente diferentes, os dois exercem funções similares na célula.

Ambos os genes estão relacionados com o mecanismo de reparo de DNA. Fatores externos, como hormônios, ou internos, como o próprio metabolismo celular, resultam em danos na estrutura física do DNA. Esses danos, caso não reparados, podem causar mutações em diversos genes essenciais para o funcionamento normal da célula.

Por isso, a evolução equipou as células com um sofisticado sistema de monitoramento da instabilidade do genoma. São diversos os genes que fazem parte de uma complexa coreografia molecular, que envolve uma série de etapas, como reconhecimento, bloqueio do ciclo celular, ativação das proteínas de reparo e conserto do estrago na dupla hélice do DNA.

Esse sistema é responsável por manter o genoma livre de mutações. E defeitos nele podem causar diversos tipos de doenças, incluindo o câncer. O porquê das mutações nos BRCA estarem ligadas a tipos de câncer específicos, e como os fatores ambientais contribuem para isso, ainda é motivo de muita pesquisa. Vale lembrar que os genes BRCA estão também envolvidos em outras atividades na célula, como a regulação gênica (o controle do grau de funcionamento de cada gene) e a modelagem da cromatina, o “pacote” de proteínas, DNA e RNA que forma os cromossomos.

Outras idéias sobre fatores de risco para o câncer de mama – uso diário de desodorante nas axilas, ingestão de pílulas contraceptivas que contêm pequenas quantidades de estrógeno, fumar cigarros ou implantes de silicone – não foram comprovadas cientificamente.

O curioso é que, enquanto os hábitos ocidentais são absorvidos rapidamente pelos países em desenvolvimento, a compreensão cultural e científica por trás do câncer de mama caminha numa velocidade bem menor. Nos EUA e na Europa, milhares de dólares são destinados à pesquisa básica, diagnóstico e pesquisa aplicada. Associações de pais e pacientes são comuns em diversas cidades e a cultura da doação é muito forte. No resto do mundo, o câncer de mama ainda é visto com vergonha e surpresa.

No Egito, mulheres evitam assumir a condição com medo de serem abandonadas pelos maridos. Em Taiwan, as mulheres não costumam comentar sobre os seios em consultas médicas, enquanto na Índia o câncer de mama é visto como uma doença contagiosa. Esses hábitos culturais sugerem que as soluções deverão ser adaptadas para cada sociedade.

No Brasil, com a vergonhosa distribuição de renda entre a população, aliada ao nosso aspecto multicultural, combinamos problemas de países ricos e pobres. Educar sobre o problema do câncer de mama desde cedo e conscientizar sobre a importância da detecção do câncer em estágios precoces é crucial para que o Brasil reverta um terrível prognóstico.

PS: Nesta semana, comemoro um ano como colunista no G1. Durante esse tempo, recebi diversos comentários interessantes e críticos, que me esforcei para responder da melhor maneira possível. Mais ainda, recebi centenas de e-mails com questões sobre os diversos assuntos tratados, desde questões praticas ate a mais pura filosofia. Alguns leitores sugeriram que eu escreva para um jornal (físico, impresso) para ter uma maior penetração social. Tenho a impressão que o alcance das duas mídias é praticamente o mesmo. Além disso, acho extraordinário a conexão online, bem mais dinâmica, estabelecida entre o pesquisador e o leitor. Obrigado pelo interesse!

Conversa com Jim Watson

sex, 05/10/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Semana passada tive a chance de participar de um bate-papo informal com James D. Watson, ou simplesmente “Jim”, para os íntimos. Para aqueles não familiarizados com o universo molecular, Jim Watson foi uma peça chave para a descoberta da estrutura espiral em dupla-hélice do DNA. Fez isso com 25 anos, junto com Francis Crick, Maurice Wilkins e Rosalind Franklin, sendo que os três homens foram agraciados com o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, em 1962. Rosalind, descrita por Wilkins como “Dark Lady”, morreu antes, de câncer, aos 37 anos. Mas essa é uma outra história…

Watson, aos 79 anos, veio ao Instituto Salk para a divulgação de seu novo livro, “Avoid boring OTHER people”, onde a palavra “other” está grafada em branco, num fundo claro, causando uma dúbia interpretação do título: “Evite pessoas chatas” ou “Evite chatear outras pessoas”. De qualquer forma, esse novo livro descreve o que ele aprendeu em diversos momentos de sua carreira e pretende servir como um guia aos aspirantes a Prêmio Nobel, ou simplesmente como sobreviver no cada vez mais competitivo mundo acadêmico.

Ao contrário do carismático Crick, Watson é uma figura controversa. Acompanhar uma conversa com ele é sempre estimulante, embora hoje em dia não o seja meramente devido a assuntos científicos. Sua mente afiada pode ser comprovada quando, por uma falha no sistema operacional, Watson teve de esperar por alguns minutos antes de começar a conversa. Aí ele solta a pérola: “Someone should be fired” (“Alguém deveria ser demitido”), numa clara demonstração de que existe limite para a incompetência alheia.

Suas colocações, muitas vezes classificadas como racistas, machistas ou apenas indelicadas, costumam causar alvoroço na platéia. Foi o caso de suas declarações eugênicas, mesmo tendo um filho com uma forma indefinida de esquizofrenia e epilepsia severa: “pessoas burras não devem se reproduzir”. Lembro-me também do episódio em que ele comentou no meio de uma palestra que jamais aceitaria uma mulher que estivesse acima do peso em seu laboratório, pois isso reflete falta de ambição na vida. Foi o suficiente para muitas pessoas levantarem e deixarem o local imediatamente.

No livro, Watson revela diversas curiosidades, como sua admiração por Orson Welles e Linus Pauling, além de reconhecer o impacto que bons professores tiveram na sua formação acadêmica. Para cientistas, o autor esbanja pílulas-conselho do tipo “publique rápido”, “evite ser fotografado”, “use o primeiro nome o mais rápido possível” ou “procure sempre um orientador jovem”.

Apesar de o novo livro estar recheado de detalhes sobre meio científico e permitir um melhor conhecimento da vida do autor, duvido que tenha um impacto semelhante ao de “A dupla hélice” — leitura obrigatória de todo biólogo. Este último, com mais de um milhão de exemplares impressos em diversas línguas (inclusive português, ainda que raríssimo nas livrarias brasileiras), contém o relato detalhado e tendencioso de Watson sobre o processo da descoberta da estrutura do DNA e é um marco da literatura científica. Ajuda a compreender um pouco da arrogância do autor e da história por trás da descoberta.

Mas minha intenção com esse texto não é apenas apresentar o novo livro de Jim Watson, mas de discutir o papel que uma figura como ele exerce no pensamento científico atual. O fato de ter ganho o Nobel ainda jovem permitiu que o excêntrico e autoconfiante pesquisador soltasse ainda mais o verbo. Com comentários rudes, Watson vem questionando uma série de tabus científicos, como a melhoria da espécie através da alteração do DNA embrionário. Afinal, provoca ele, quem não gostaria de acabar com a “burrice” mundial ou mesmo inserir um novo gene no filho que vai nascer que conferisse resistência ao HIV?

Segundo sua visão, que claramente flerta com o determinismo genético, o ambiente teria pouca influência no que você se transforma como pessoa. Não somente porque grande parte já estaria escrita no seu genoma, mas também porque sabemos muito pouco de como o ambiente realmente nos influencia (justo!). “Até mesmo os códigos morais da sociedade”, disse ele, “devem ter evoluído como forma de cooperação e sobrevivência dos humanos.”

Por essas e outras, Watson teve seu genoma completamente seqüenciado pela nova tecnologia de 454. Esse ano, ganhou um DVD com seu genoma, mas pediu que apagassem informações sobre o gene apoE, cujas alterações estão relacionadas com a probabilidade de desenvolver Alzheimer, doença com histórico na família do cientista. Fez isso para proteger a integridade genética de seus familiares e chamou a atenção para as questões relacionadas à discriminação genética. Francamente, Jim!

Watson também ataca correntes criacionistas nos EUA e no resto do mundo. “Gostaria de trazer Charles Darwin para os dias de hoje e mostrar a ele o que está acontecendo.” Por outro lado, também mostra seu lado otimista. Quanto perguntado sobre as novas tendências, não hesitou em dizer que a ciência já tem tecnologia para frear a incidência de cânceres (veja, ele não disse nada sobre a “cura” propriamente dita). Também apontou o fenômeno da neurogênese (já discutido nesta coluna anteriormente) como uma área altamente promissora, especialmente se for possível manipulá-la de forma a nos deixar mais inteligentes (claro, Jim!).

Enfim, Watson continua sendo a Britney Spears da ciência: polêmico, amado e odiado. O fato é que não dá pra negar que suas colocações incentivam caudalosas discussões científicas e morais ou simplesmente nos levam a um entretenimento descompromissado.



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade