Cérebro determinado: o livre-arbítrio é uma ilusão?

sex, 24/08/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

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Pare já de ler essa coluna. Não conseguiu, não é mesmo? E por que não? Esse é um dos muitos exemplos empregados pela neurociência para mostrar que, pelo menos em certas ocasiões, não temos o menor poder de decisão, já estaria tudo programado em nosso cérebro. Mas será mesmo verdade, estaríamos pré-determinados desde o nascimento? Conforme prometido anteriormente, escrevo hoje sobre algumas reflexões relacionadas ao livre-arbítrio e a neurociência.

Quando criança pensava em desafiar a morte para um duelo, caso vitorioso teria a imortalidade. Obviamente, não era o único que tinha essas idéias. Na famosa cena do filme “Sétimo Selo” (do já saudoso Ingmar Bergman), o cavaleiro Antonius desafia a Morte para uma partida de xadrez, tentando vencê-la através do conhecimento humano. Antonius se recusa a morrer sem ter compreendido o sentido da vida. Em jogo, o adiamento de sua sentença. Mas da Morte ninguém escapa…

A morte limita a questão do livre-arbítrio uma vez que estamos todos predestinados a morrer. Então só podemos ser realmente livres no período entre o nascimento e a morte. A coisa fica ainda mais restrita quando nos damos conta que somos um sistema físico-químico, funcionando de acordo com as leis do universo. E nossos comportamentos não parecem ser exceção.

Na década de 70, ensaios experimentais conduzidos pelo fisiologista Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia em São Francisco, mostraram que impulsos nervosos podem ser previsíveis. Os experimentos demonstraram que os sinais elétricos obtidos do cérebro de voluntários podiam ser usados para prever, por cerca de meio segundo, a decisão entre duas ações motoras: apertar um botão ou estalar os dedos. Essa descoberta surpreendente demonstra que a ordem da atividade cerebral é contra-intuitiva: primeiro a escolha do movimento e só depois a consciência da decisão, ao invés do oposto. (Maiores detalhes em: “Mind Time: The Temporal Factor in Consciousness, Perspectives in Cognitive Neuroscience”, Benjamim Libet, Harvard University Press 2004).

Esses resultados foram reproduzidos diversas vezes ao longo dos anos, inclusive com o uso de moderníssimos scanners de ressonância magnética com alta-resolução e, consistentemente, mostram que o cérebro consciente está sempre tentando alcançar as ações disparadas pelo inconsciente. “Não sabia que te amava até que ouvi minha própria voz dizendo isso” confessou o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell para sua amante Ottoline Morrell durante um de seus diálogos noturnos. Assim como Russell, somos facilmente enganados quando a questão é assumir responsabilidade pelas nossas próprias ações.

A realidade está sempre correndo meio segundo à frente da nossa consciência da própria realidade. O “agora” já passou há meio segundo atrás e não foi notado pelo nosso sistema sensorial. Pior, nunca alcançaremos a realidade de forma consciente com o cérebro no estado atual. Não seria nem necessário comentar as implicações dessa descoberta, mas imagine se pudéssemos analisar a mente de um suposto assassino meio segundo antes dele cometer um crime. Seria ele culpado apenas pela intenção? Acho que já vi isso em algum filme…

Na cultura ocidental estamos constantemente insatisfeitos, queremos sempre mudar alguma coisa: perder peso, viajar mais, ler outros livros, etc. Curiosamente, esse sentimento vem da certeza de que somos livres para mudar o rumo de nossas vidas ou mesmo vencer dificuldades impostas pelos revezes da vida. Por que achamos que somos livres para decidir qualquer coisa? Talvez o livre-arbítrio sobreviva apenas como percepção, mas não como uma vontade real. Nós temos a experiência da escolha a todo momento (o que comer, o que vestir, com quem conversar) o que nos traz a ilusão da liberdade.

O fim do livre-arbítrio, ou sua redefinição como uma ilusão conveniente, pode causar uma revolução na nossa cultura moral e senso de responsabilidade legal. Afinal, isso significa que nós somos tão responsáveis pelas nossas ações quanto uma pedra ou um animal. No entanto, acredito que a grande maioria jamais iria aceitar isso, afinal parece que fomos programados para acreditar que somos livres.

Desses argumentos, desabrocha uma nova idéia na neurociência: o cérebro consciente está atrasado porque estaria fadado a se ocupar com milhares de atividades mundanas diariamente: vestir-se, tomar café, dirigir, ir ao banco, etc. Essa escravidão só será relaxada durante o sono ou em estados de “transe”. No transe, pensar demais atrapalha. Essa é a base da meditação de certos monges budistas e uma forma excepcional de executar atividades que requeiram muita concentração, usada por atletas profissionais ou mesmo por você.

Tente dirigir pensando em todas suas ações – como se fosse a primeira vez. Além de ser extremamente complicado, você irá notar que tende facilmente a entrar no modo automático. Para continuar consciente, você tem que reprimir o inconsciente. Esse poder do veto limita o uso do livre-arbítrio humano, mas é suficiente para a maior parte das questões éticas humanas, afinal, a grande maioria dos códigos morais está baseado na repressão do cérebro questionativo: não matarás, não roubarás, e assim vai.

Difícil de aceitar que nosso cérebro altamente evoluído é facilmente ludibriado. Já estamos limitados demais pelo nascimento e morte, além das milhares atividades cotidianas que dominam nosso consciente. O que sobra do livre-arbítrio então? Na minha visão, parte desse determinismo foi (e ainda é) essencial para nossa sobrevivência: não dá pra pensar muito no momento em que você está em perigo, você age sem hesitar, inconsciente. Da mesma forma que um corredor profissional de 100 metros rasos, só tem consciência do apito inicial do juiz quando já está quase no meio da corrida, ou seja, cerca de meio segundo depois!

De fato, muitos dos experimentos inspirados em Libet foram baseados no sistema motor. Mas o que dizer de algo como a estética de uma obra de arte? Será que os impulsos elétricos seriam capazes de prever se gostaremos ou não de uma determinada pintura? Quando expostos a um ambiente novo, nossos sistemas sensoriais não estão mais limitados pelas atividades do dia-a-dia e surge a chance do momento criativo. Seu cérebro tem a chance de formar conexões novas, jamais pré-determinadas. Esse sim pode ser considerado um verdadeiro momento de liberdade, jamais vivido por um animal ou máquina. Assim, quanto maior o número de novas experiências a que você se expuser, mais livre será seu cérebro.

Outra forma de livre-arbítrio seria a própria plasticidade neuronal. Por exemplo, pessoas que nascem cegas conseguem usar grande parte do pré-destinado córtex visual para áreas não-relacionadas, como para o olfato, por exemplo. Mesmo pessoas com derrame e que perderam o movimento de algum membro, conseguem recuperar parte da atividade com treinamento específico. Mas essa reorganização cerebral depende exclusivamente da sua vontade de mudar. Reorganizando suas conexões nervosas, você muda quem você é, vencendo o determinismo original.

Assim, o determinismo e o livre-arbítrio podem sim coexistir em nosso cérebro. Usamos um ou outro dependendo da ocasião e do momento da evolução humana (seria legal descobrir que no futuro, ações cotidianas seriam automatizadas, libertando nosso cérebro para o processo criativo). Acho que isso deve incomodar muitos cientistas e filósofos, mas nada me convenceu do contrário. E como testar essa hipótese?

Todo sistema físico investigado até hoje pode ser classificado como determinístico ou aleatório, mas nunca as duas coisas. Vale lembrar que, paradoxalmente, teorias baseadas em mecânica quântica descrevem movimentos aleatórios de partículas microscópicas como base fundamental do que chamamos de realidade. Mas e o cérebro humano? Das duas uma: ou simplesmente não sabemos quais as equações para explicar alguns dos fenômenos neurais ou existe algo fundamentalmente novo que ocorre em sistemas ultracomplexos. Ainda não temos a resposta se o cérebro é um complicado conjunto de engrenagens, se é algo totalmente independente da física atual ou mesmo um misto dos dois. Desvendar esse mistério trará a resposta do quanto livre nós realmente somos.

Uma forma experimental de analisar o problema do livre-arbítrio consiste na manipulação de modelos matemáticos que simulem a atividade cerebral. Ou seja, será necessária a criação de um cérebro artificial. Diversos projetos já existem com essa finalidade, mas destaco um deles. O Blue Brain Project, um mega projeto resultante da colaboração entre a EPFL (Ecole Polytechnique Federale de Lausanne) e a IBM. A idéia é utilizar sistemas 3D que simulem pequenos blocos do córtex do cérebro de mamíferos. O projeto é ambicioso e vai levar um certo tempo até vermos resultados, mas é um bom começo.

Pode-se argumentar que esse tipo de estratégia nunca represente o que realmente acontece com o cérebro humano. Afinal, de acordo com princípios filosóficos básicos, nenhum sistema contém a completa representação de si mesmo e, dessa forma, você jamais conseguirá criar algo tão complexo quanto você mesmo. No entanto, pode-se deixar esse sistema complexo evoluir. O cérebro individual não é estático e evolui de várias formas: durante o desenvolvimento, usando retroelementos genéticos transponíveis de forma aleatória para a regulação da expressão gênica, ou mesmo no indivíduo adulto, através da inclusão de novos neurônios e da plasticidade sináptica — todos podendo ser regulados pelo ambiente. Todo modelo que não incorporar essas variáveis estará fadado ao fracasso.

Enfim, mesmo com minha mente sempre incomodada e obcecada por liberdade, prefiro ter consciência que sou, pelo menos em parte, uma máquina determinista do que viver na ilusão de um puro livre-arbítrio existencial.

Sexo, drogas e… tuberculose

sex, 10/08/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Leitor, convido-o para uma viagem no tempo. Estamos agora no ano de 1882 e o médico alemão Robert Kock consegue isolar o agente causador da tuberculose ou tísica pulmonar, o Mycobacterium tuberculosis. Nessa época, a tuberculose era a causa da morte de 1 em cada 7 pessoas, o mal do século.

Para chegar aí, Kock inventou uma série de metodologias para o manejo correto de bactérias infecciosas, como o uso de culturas em ágar (sugestão de sua mulher) e as famosas placas de Petri, em homenagem a seu assistente Julius Petri, usadas até hoje em laboratórios do mundo todo. Ele também foi o responsável pela recomendação da esterilização de instrumentos cirúrgicos, evitando infecções por transferência de patógenos de um paciente para o outro.

Além disso, Kock desenvolveu o famoso postulado que estabelece parâmetros para que um agente infeccioso seja considerado a causa de uma determinada doença. O postulado de Kock permitiu que seus pupilos e colaboradores isolassem o agente infeccioso de uma série de doenças como difteria, gonorréia, pneumonia, tétano, sífilis e muitas outras. Dessa forma, Kock torna-se um dos pais da bacteriologia, junto com Louis Pasteur. Sua fama e seu prestígio como cientista crescem internacionalmente.

Em 1890, num congresso médico em Berlim, Kock surpreende novamente e anuncia uma droga capaz de reduzir o crescimento do bacilo tuberculoso, eliminando os sintomas da doença. A nova droga é chamada de Tuberculina e Kock mantém segredo a respeito de sua formulação. Na verdade, a Tuberculina nada mais era do que o M. tuberculosis em um meio de cultura que era então inativado por aquecimento a 100°C, antes de ser filtrado e usado. A repercussão dessa descoberta pode ser equivalente à cura da Aids hoje em dia. Em questão de dias, todos os jornais do mundo anunciaram que Kock havia encontrado a cura para a tuberculose. Milhares de infectados agora tinham uma esperança.

Meses depois, rumores do meio médico diziam que a Tuberculina não era capaz de curar a tuberculose. Pior, a droga agravava o efeito da doença em pacientes em estágios mais avançados. Em 1891, publica-se um relatório científico desmascarando o efeito da Tuberculina e Kock sente-se pressionado a revelar sua simples formulação. Toda a bajulação que recebia desmorona: além do desapontamento com a Tuberculina, o público descobre o que cientista cinquentão vai se separar de sua mulher para casar-se com a amante adolescente. Especula-se que a Tuberculina fora criada por Kock como fonte financiadora de suas escapulidas sexuais. O mito desmorona e surge um dos maiores fiascos científicos de todos os tempos, capaz de deixar o coreano Hwang e seus colegas (fraudadores da clonagem terapêutica) no chinelo.

A Tuberculina, quando em contato com a pele de indivíduos que tiveram tuberculose, produzia uma irritação no local de contato em dois dias após a aplicação. Esse fenômeno, embora tivesse sido notado por Kock, não recebeu a devida atenção do cientista, obcecado por uma vacina efetiva e sem efeitos colaterais. No entanto, para o pediatra Clemens Von Pirquet esse fenômeno poderia ter sido usado como diagnóstico da tuberculose, permitindo o isolamento de indivíduos infectados e impedindo que a doença se espalhasse. Clemens era um humanista e pensava nos pacientes acima de tudo. Transformava serventes em auxiliar de enfermeiras, enfermeiras em cientistas e a cozinha em um laboratório de nutrição. Sua paixão pelos pacientes com tuberculose era admirável — criara escolas para que os pacientes continuassem sua educação enquanto isolados da sociedade.

Clemens sabia que a irritação causada pela Tuberculina era uma alergia (do grego, allos = outro e ergon = reação; termo cunhado por ele mesmo) decorrente de uma subseqüente exposição ao mesmo antígeno. Em 1907, Clemens elabora o uso da Tuberculina como diagnóstico para tuberculose. O método é aperfeiçoado e vira rotina em hospitais mundo afora, contribuindo para a redução da disseminação da doença e salvando milhares de vidas.

Kock ganha o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1905 pelo isolamento do M. Tuberculosis. Já Clemens, embora nomeado diversas vezes pelo teste da Tuberculina, nunca levou o Nobel. Clemens e sua mulher cometem suicídio juntos em 1929, em Viena, sua cidade natal. Na ciência, assim como na vida, grandes feitos nem sempre são reconhecidos.



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