Atração fatal: parasita faz rato perder medo de gato

sex, 29/06/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Qual é o melhor parasita? Com toda certeza é aquele que se aproveita do organismo hospedeiro sem que ele perceba. Melhor ainda se o parasita conseguir controlar a mente do hospedeiro e com isso alterar o comportamento da vítima a seu favor.

Na natureza, encontramos uma série de casos assim. Por exemplo, durante minha iniciação cientifica, trabalhei com um tipo de vírus capaz de infectar larvas que predavam a cana-de-açúcar. Ao infectar as larvas, o vírus alterava o comportamento delas, que passavam a procurar as regiões mais altas da planta para se fixar. Após um tempo, a proliferação do vírus era tão grande que a larva morria e se transformava num repositório viral.

Esse “saco” de vírus se descolava da planta e caía, explodindo ao se chocar com outras folhas e espalhando o vírus. Com isso, aumentavam as chances do vírus infectar outras larvas e se proliferar. Parasita esperto, não? Então leia o que vem abaixo.

Em mamíferos, é notório o exemplo do protozoário Toxoplasma gondii. Esse parasita consegue bloquear a aversão inata de ratos para a urina dos gatos. Além disso, o parasita causa uma atração para a urina, aumentando a chance do gato abocanhar o rato. Esse mecanismo adaptativo é uma forma de manipulação comportamental pelo Toxoplasma que, apesar de se reproduzir apenas no intestino de gatos, consegue facilmente infectar ratos que entram em contato com fezes felinas contaminadas.

Durante muito tempo, esses resultados foram visto com olhos desconfiados pela comunidade científica, principalmente pela falta de controles nos experimentos de comportamento. Em geral, esses testes consistem em colocar o rato em uma caixa em que cada um dos cantos contenha um cheiro diferente, incluindo urina felina, e observar que canto eles preferem ficar. Ratos infectados por Toxoplasma têm uma atração pela urina de gato. Também ninguém havia demonstrado se os ratos perdiam o medo do gato ou se eram realmente atraídos pelo odor da urina.

Mas em abril desse ano, o grupo liderado por Robert Sapolsky, da Universidade de Stanford, na Califórnia (Vyas e colegas, PNAS 2007), publicou dados mostrando que o Toxoplasma consegue realmente converter a aversão ou medo dos ratos ao cheiro dos felinos em atração suicida. Essa alteração é bem específica, uma vez que a infecção não altera o olfato ou outros tipos de medo inato dos ratos.

O grupo mostrou que esse efeito pode ser causado porque o Toxoplasma se dirige para o sistema nervoso dos ratos infectados, migra para a região da amígdala (justamente uma das regiões no cérebro aonde se localiza o circuito neuronal do medo inato que ratos sentem por gatos), formando quistos. Esse tropismo do parasita por essa região específica do cérebro é simplesmente fenomenal. Como e porquê isso acontece merece ser estudado mais a fundo.

Um terço da população humana está contaminada pelo Toxoplama gondii, mas não se sabe se isso também causa uma atração dos humanos por felinos. Acho pouco provável, principalmente se o efeito for mesmo específico, como demonstrado pelo grupo de Sapolsky. A maioria dos humanos infectados nem sabe disso, pois a infecção é aparentemente assintomática, exceto em mulheres grávidas (onde o feto corre o risco de apresentar problemas durante o desenvolvimento, como cegueira parcial) ou em pessoas com deficiência no sistema imune. Em ambos os casos, aconselha-se manter distância dos felinos e evitar contato com locais onde pode haver fezes de gatos.

Por outro lado, existe uma correlação causal entre a presença de antígenos do Toxoplasma e o desenvolvimento de esquizofrenia (Webster e colegas Proc. Biol. Sci. 2006). Esses estudos epidemiológicos precisam ser confirmados, aumentando o rigor estatístico. Além disso, existem outros trabalhos científicos que tentam correlacionar a infecção com alterações sutis de comportamento humano, ou seja, o parasita deixaria homens mais amorais e com menos medo de punição ao quebrar regras sociais e mulheres mais cordiais e carinhosas.

Esses trabalhos com humanos, a maioria publicada em revistas científicas de baixo impacto internacional, ganharam fama ao serem colocados no holofote pelo blog do jornalista Carl Zimmer durante o ano passado. Na onda dele, outros tentaram correlacionar os índices de infecção em diversos países com características culturais (o Brasil, campeão da lista com quase 70% da população infectada). Balela. São tantos os fatores envolvidos na definição do comportamento cultural humano que fica ridículo pensar em algo tão determinista assim.

No entanto, quando penso em parasita, é inevitável não relacionar o assunto com alguns de nossos políticos — afinal como é que eles conseguem manipular a cabeça dos brasileiros para continuar votando neles, mesmo afogados em escândalos? Só faltava essa, um parasita mental para justificar o malufismo e outros “ismos” da nossa cultura política. Isso sim seria realmente fenomenal.

Reprogramação: de volta para a imortalidade

sex, 15/06/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Na última coluna do ano passado (aqui), cantei a bola de que a reprogramação celular poderia ser um eventual assunto bombástico em 2007. Bola na caçapa. Aliás, foram duas com uma tacada só: reprogramação celular e modificações epigenéticas (alterações químicas no DNA, hereditárias, mas que não afetam o código genético propriamente dito). Mas não foi difícil adivinhar que uma viria ligada a outra: afinal, a reprogramação requer que as instruções epigenéticas do DNA sejam, de fato, alteradas.

O assunto tem tido grande destaque nos principais jornais e revistas do mundo. Isso porque essa tecnologia representa uma nova forma de medicina e, logicamente, com alto potencial lucrativo: prevê o uso terapêutico das próprias células do paciente. Com toda a certeza, quando estiver em uso, a nova técnica será superior aos recursos dos cirurgiões ou às drogas não-específicas dos oncologistas.

A reprogramação consiste em fazer com que uma célula já especializada volte a assumir uma forma mais maleável e potente. Por exemplo, pode-se retirar células da pele de um indivíduo adulto e transformá-la numa célula não-especializada, indiferenciada e com a capacidade de se dividir indefinidamente. Essa célula indiferenciada e imortal teria o potencial de se especializar novamente na mesma célula da pele, ou em outro tipo celular qualquer, mesmo num neurônio. Em resumo, consegue-se obter células-tronco embrionárias sob encomenda, usando o mesmo material genético do paciente e evitando uma eventual rejeição.

Existem duas formas básicas de reprogramar uma célula especializada. Uma delas prevê a transferência do núcleo (aonde o material genético está localizado) para dentro de um óvulo não-fertilizado, cujo núcleo foi retirado previamente. Dessa forma, ao estimular o óvulo a se dividir com um impulso elétrico, ele passa a proliferar usando o DNA de outra célula. Ora, como o óvulo consegue formar todas as células especializadas de um organismo, as células resultantes dessa divisão induzida também possuirão esse potencial.

Essa foi a forma usada para produzir a ovelha Dolly, resultado final que comprova a eficácia do experimento, pois formou-se um indivíduo adulto a partir da transferência do núcleo de uma célula especializada. Mas o processo não é fácil, principalmente com células humanas (vale lembrar que foi justamente essa a fraude cometida pelo grupo sul-coreano liderado por Woo-Suk Hwang). Uma série de anormalidades foram observadas em animais clonados dessa forma, provavelmente por conseqüência de uma ativação incorreta do óvulo não-fertilizado, uso de espécies híbridas ou mesmo de uma reprogramação incompleta.

Semana passada, um avanço técnico mostrou que é possível chegar aos mesmos resultados utilizando células do óvulo fecundado por um espermatozóide, já em divisão, ao invés de óvulos não-fertilizados (Egli e colegas, “Nature”, 2007). O dado sugere que os fatores responsáveis pela reprogramação não estão somente no óvulo, mas também nas células derivadas das primeiras divisões celulares após a fecundação. Encontrar esses fatores parecia estar muito distante, pois o processo é raro e regulado de forma muito precisa.

No entanto, em julho do ano passado, o grupo japonês liderado por Shinya Yamanaka (Kazutoshi e Yamanaka, “Cell”, 2006), não só identificou os fatores responsáveis pela reprogramação como também mostrou que eles conseguem induzi-la de maneira semelhante à obtida pela transferência nuclear. Essa segunda forma de induzir a reprogramação não utiliza óvulos ou qualquer material embrionário.

A estratégia de Yamanaka foi acionar genes essenciais para a manutenção de células-tronco embrionárias em células da pele de camundongos. O grupo começou com 24 candidatos e foi subtraindo um a um, até achar quais seriam os absolutamente necessários para reverter uma célula da pele em célula-tronco embrionária.

Um parêntese: a escolha da pele como fonte de célula especializada não foi ao acaso. A extração e manutenção das células da pele é relativamente fácil. Caso o processo venha a se repetir em humanos, essa escolha teria que ser re-pensada, pois, ao contrário dos camundongos, a pele humana é muito mais exposta aos raios ultravioleta que podem induzir mutações genéticas.

Surpreendentemente, são apenas quatro os fatores necessários para a reprogramação. Os quatro genes Oct3/4, Sox2, c-Myc e Klf4 são conhecidos fatores de transcrição, isto é, tem a função de ativar ou desativar um ou mais genes. Tanto o Oct3/4 quanto o Sox2 fazem parte de um complexo protéico responsável por manter as células-tronco num estado indiferenciado (ou seja, não-especializado, “genérico”).

A surpresa veio com a identificação do c-Myc e Klf4, ambos oncogenes, ou seja, diretamente relacionados ao desenvolvimento de cânceres. O fato de esses genes estarem sendo requisitados é mais uma evidência de que as células-tronco têm uma assinatura epigenética parecida com células cancerígenas. Por isso mesmo, todo cuidado é pouco quando se cogitam ensaios clínicos usando esse modelo.

Também na semana passada, Yamanaka e outros dois grupos conseguiram repetir a façanha e melhorar a receita (Okita e colegas, “Nature”, 2007; Wernig e colegas, “Nature”, 2007 e Maherali e colegas, “Cell Stem Cells”, 2007). Com pequenas modificações na receita original, esses grupos conseguiram mostrar que as células reprogramadas sofrem um profundo “reset” epigenético, deixando-as muito parecidas com células-tronco embrionárias. O fato de ocorrer uma drástica reconfiguração epigenética é extremamente interessante, pois indica que a manutenção do estado pluripotente (a capacidade de gerar vários tipos de tecido) não depende apenas da ativação de alguns genes – esses seriam necessários apenas nos estágios iniciais da reprogramação.

A existência de uma via molecular para a reprogramação celular é um achado extraordinário. Além de representar o primeiro passo para que isso seja repetido com células humanas, o processo dribla os entraves morais, pois nenhum embrião ou óvulos seriam necessários. Dessa forma, as restrições financeiras a esse tipo de pesquisa (principalmente nos EUA) devem desaparecer.

Vale notar que, ao contrário do tedioso e meticuloso transplante nuclear, o método de Yamanaka é relativamente simples. Sua maior vantagem é poder ser reproduzido em qualquer laboratório de biologia celular e molecular, o que provocará uma explosão de descobertas científicas. Finalmente, esse avanço deve atrair um maior número de investidores, um tanto desacreditados até então, culpa também do desgaste jurídico ligado às células-tronco.

Empresários e investidores vão olhar isso com outros olhos agora. Em primeiro lugar, a nova técnica revelou uma via molecular que pode ser manipulada, e isso os cientistas sabem fazer faz tempo. Em segundo lugar, ela escapa da patente mantida pela Universidade de Wisconsin sobre o cultivo e manutenção de células-tronco embrionárias humanas derivadas de forma convencional – o que é interessante do ponto de vista financeiro.

É importante ressaltar que esses estudos não invalidam o trabalho com células-tronco embrionárias convencionais pois, para a ciência, quanto mais métodos paralelos, melhor. Afinal, todos apresentam suas vantagens e limitações.

Células-tronco para ELA

sex, 01/06/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A Esclerose Lateral Amiotrófica (ou ELA) é uma doença neurodegenativa que afeta cerca de 1 em cada 30.000 pessoas. Os sintomas não acontecem de uma hora para outra, mas vão aparecendo devagar, por isso a ELA é também classificada como uma doença do desenvolvimento. Nos EUA, a doença ficou conhecida devido a um famoso jogador de beisebol durante as décadas de 1920 e 1930.

A população americana acompanhou o drama de Lou Gehrig, que deixou de jogar e veio a falecer poucos anos após o surgimento dos primeiros sintomas da doença. Sinais precoces de ELA incluem a perda da força muscular e a degeneração dos neurônios motores (responsáveis pelo movimento), levando a paralisia, inclusive do sistema respiratório. Outro famoso portador de ELA, talvez mais conhecido no Brasil, é o físico Stephen Hawking.

ELA é uma doença misteriosa. Até hoje não se sabe exatamente como ela começa. Cerca de 90% dos casos são esporádicos, ou seja, acontecem sem que o paciente tenha um precedente familiar. Em apenas 20% dos 10% restantes, conseguiu-se demonstrar que a doença era causada por uma mutação no gene chamado SOD1 em todas as células do indivíduo, inclusive nos neurônios.

Infelizmente, a identificação do gene não trouxe uma clara demonstração de como ele poderia causar a doença, mas permitiu criar modelos animais carregando o gene mutado, com sintomas semelhantes a ELA em humanos. Nesses animais, pode-se observar que os neurônios motores estariam sofrendo, pois apresentavam um acúmulo de agregados protéicos e seriam mais sensíveis a indutores de morte celular. Cogitou-se então que a mutação do SOD1 nos neurônios motores poderia causar esses problemas.

A idéia não durou por muito tempo. Misturando células-tronco embrionárias de camundongos carregando o SOD1 mutado com células normais, um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego criou animais quiméricos (Clement e colegas, “Science”, 2003). Nessas quimeras, o sistema nervoso seria como um lençol de retalhos, com diversas células mutantes lado a lado com células normais.

Pode-se observar que neurônios motores carregando o gene SOD1 mutante, mas acompanhados de outras células normais, não apresentavam os característicos agregados protéicos, típicos de animais doentes. Melhor ainda, bastava apenas uma pequena percentagem de células não neurais para que os neurônios com o gene mutado sobrevivessem como se fossem normais. Conclusão: a presença de células saudáveis aumentava a sobrevivência dos neurônios mutantes. Isso é conhecido como condição não-autônoma, uma vez que o efeito da mutação nos neurônios não ocorre de forma intrínseca.

Mas que células seriam essas e como isso acontece? Ao contrário do que possa parecer, o cérebro não é formado somente por neurônios. Existe uma série de outras células, em número muito maior do que os neurônios, convivendo lado a lado com eles. Por exemplo, os oligodendrócitos que auxiliam na produção de mielina (camada lipídica que funciona como isolante durante o impulso elétrico em certos neurônios) ou os astrócitos, que atuam como suporte e na nutrição dos neurônios, embora outras funções ainda não são totalmente conhecidas.

Recentemente, um trabalho publicado na revista “Nature Neuroscience” (Di Giorgio e colegas, 2007) contribuiu para elucidar esse mistério. A estratégia do grupo foi simples; usando células-tronco embrionárias de camundongos normais ou portadoras do gene SOD1 mutante, o grupo conseguiu derivar neurônios motores. Em seguida, esses neurônios motores foram colocados em contato com diversos outros tipos de células, purificadas, encontradas no sistema nervoso. A vantagem desse modelo é que pode-se estudar o efeito de cada tipo celular isolado na sobrevivência dos neurônios motores.

Quando neurônios motores normais foram colocados na presença de astrócitos normais, nada aconteceu. Mas, na presença de astrócitos carregando o gene SOD1 mutado, os neurônios normais passaram a ficar doentes, ou seja, apresentavam os agregados protéicos característicos de ELA e morriam depois de um tempo. A recíproca também foi testada; neurônios doentes cultivados juntamente com astrócitos normais não desenvolveram.

Tudo indica que os astrócitos são as células responsáveis pela morte dos neurônios motores em ELA, confirmando o componente não-autônomo da doença, sugerido inicialmente pelo experimento das quimeras. Em paralelo, um outro grupo de pesquisa americano (Nagai e colegas, “Nature Neuroscience”, 2007) juntou evidências que os astrócitos mutantes estariam liberando no meio algum fator solúvel que estaria induzindo a neurodegeneração.

O modelo de células-tronco para ELA proposto por Di Giorgio não me parece muito robusto (as variações experimentais ainda são bem grandes e, em alguns experimentos, os resultados apresentados não são lá muito convincentes aos olhos de quem trabalha com esse modelo celular). Mas este parece ser o primeiro passo para um modelo semelhante usando células-tronco embrionárias humanas. Com o modelo funcionando, pode-se tentar descobrir qual seria esse fator misterioso eliminado pelos astrócitos mutantes ou utilizar o modelo para uma triagem de drogas que anulariam o efeito tóxico que causa a morte dos neurônios motores.

O trabalho com ELA mostrou como dois tipos de estratégias usando células-tronco embrionárias podem trazer novas informações na luta contra uma doença devastadora: a criação de animais quiméricos e a geração de neurônios motores. Além disso, fica claro que, para ELA, um eventual transplante de neurônios motores derivados de células-tronco não deverá funcionar, uma vez que eles também serão alvo dos astrócitos mutantes encontrados no paciente. Outras alternativas, como o transplante de astrócitos normais ou mesmo da substância protetora purificada de astrócitos normais, podem agora ser testadas em modelos animais.



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