Em busca das memórias perdidas

sex, 18/05/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

No filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, Joel (Jim Carrey) fica abismado ao descobrir que sua namorada Clementine (Kate Winslet) optou por apagar definitivamente as memórias da tumultuada relação amorosa em que o casal vivia. Num ato de desespero, Joel vai atrás do inventor da técnica para que apague nele também as memórias do relacionamento. Mas no meio do processo ele percebe o quanto ainda ama Clementine e se arrepende da decisão. Joel tenta evitar que as memórias se apaguem realocando-as em diferentes regiões do cérebro, agrupando-as com outras memórias que não necessariamente deveriam estar juntas.

Existe alguma memória que, por pior que tenha sido a experiência (até mesmo em quem você votou nas ultimas eleições), você gostaria de apagar do seu cérebro de uma vez por todas? Antes de responder, vale lembrar que em casos de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer ou Parkinson, o indivíduo não tem escolha – as memórias simplesmente vão sumindo. Aliás, esse é um dos primeiros sintomas da neurodegeneração, o paciente não consegue lembrar dos nomes dos familiares, por exemplo.

Imagine agora que você, ou um portador de doença neurodegenerativa, pudesse tomar uma pílula para se lembrar de memórias esquecidas. Você tomaria? Na situação hipotética, o simples fato de existir uma pílula assim implicaria que as memórias não são apagadas definitivamente. O problema estaria em acessá-las. Pois saiba que, com base num recente trabalho de um grupo de pesquisadores do renomado MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), essa pílula pode virar realidade. E o mais impressionante é que o mecanismo de ação pode estar relacionado a alterações epigenéticas no genoma neuronal, como o empacotamento do DNA. Calma, eu explico mais abaixo.

No trabalho, publicado recentemente na “Nature” (Fischer e colaboradores, 2007), o grupo utiliza um modelo em camundongos de neurodegeneração progressiva. Nesses valiosos animais transgênicos, a neurodegeneração em regiões especificas do cérebro pode ser induzida através de fatores adicionados na dieta, em qualquer período da vida do animal.

Dessa forma, pode-se “criar” memórias nos camundongos normais e testá-las após o início do processo neurodegenerativo. Obviamente, os camundongos não vão te contar sobre a vida deles, o que fizeram ontem ou quão chato é ficar numa gaiola. As memórias são formadas em testes comportamentais; por exemplo, associar um estímulo sonoro (um apito característico) a outro estímulo repulsivo (um pequeno choque).

Após aprenderem a associar o apito com o choque, os animais foram testados novamente algumas semanas depois. A maioria deles se lembrou perfeitamente do que acontecia ao ouvirem o apito: lá vem o choque! Nesse caso, eles antecipavam o que estaria por vir e congelavam logo depois de ouvir o apito, como uma criança que apronta uma e aguarda ansiosamente a repreensão materna. No entanto, ao induzir a neurodegeneração, os camundongos esqueciam essa correlação e continuavam caminhando normalmente pela gaiola até serem pegos de surpresa pelo choque.

Ao manter os camundongos com neurodegeneração num ambiente rico (cheio de brinquedos, rodinhas de corrida e interação social) algo surpreendente aconteceu – os animais passaram a relembrar o que tinham aprendido antes da neurodegeneração e congelavam ao ouvir o apito, já esperando pelo choque. Esse resultado demonstra claramente que as memórias não são completamente apagadas pela degeneração nervosa, mas existe uma dificuldade em acessá-las. Seria algo como um CD sujo que fica rodando no tocador: as músicas estão todas lá, só não conseguem mais serem lidas pelo laser.

Análises subseqüentes mostraram que o ambiente rico no qual os animais foram mantidos não bloqueou a neurodegeneração, mas sim aumentou o número de sinapses que os neurônios sobreviventes eram capazes de fazer. Parece que são justamente essas sinapses as responsáveis por encontrar as memórias perdidas, estabelecendo novas redes neurais, num fantástico exemplo de plasticidade cerebral.

Novas sinapses são estimuladas através da leitura de uma série de genes que precisam ser ativados pelos neurônios. Para que os genes sejam devidamente ativados, o DNA precisa ser desempacotado, como um novelo que vai se desenrolando. Somente na forma desempacotada que os genes conseguem ser lidos. O controle de que região do DNA fica acessível, ou “desenrolada”, em um determinado momento é feito por um mecanismo epigenético, isto é, sem alterar o código genético em si, mas sim o envoltório protéico que projete a dupla fita de DNA. Enzimas conhecidas como HDACs são algumas das muitas proteínas responsáveis pelo empacotamento do DNA.

Usando inibidores de HDAC, o grupo do MIT reproduziu o mesmo resultado que obteve com o ambiente rico, ou seja, os camundongos com neurodegeneração conseguiram recuperar memórias perdidas. Como o ambiente rico consegue desempacotar o DNA, levando à ativação gênica, ainda é um mistério. Sabe-se que mecanismos epigenéticos similares atuam em outras condições neurológicas, como no desenvolvimento da epilepsia, no vício em drogas e até mesmo na regulação do sistema visual.

Minha maior crítica a esse tipo de trabalho é que as enzimas HDAC são promíscuas e podem atuar em uma série de outras vias menos conhecidas e não apenas na formação de novas sinapses. Da mesma forma, o ambiente rico também induz células-tronco neurais a produzir novos neurônios no hipocampo (estrutura do cérebro relacionada à memória e ao aprendizado), que também podem contribuir com o restabelecimento das redes neurais. Esse ponto não foi levado em consideração pelo grupo do MIT e pode influenciar na interpretação dos resultados.

Além disso, o grupo nunca utilizou o mesmo grupo de animais em experimentos de recuperação da memória, o que seria o melhor controle possível nos experimentos propostos. Não fica claro o porquê disso no manuscrito, mas parece um deslize dos revisores científicos anônimos, encarregados de avaliar o artigo antes da publicação (pois é, até a “Nature” come bola).

De qualquer forma, o trabalho abre excelentes perspectivas para uma potencial droga que ajude a melhorar a qualidade de vida dos portadores de doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer, já que há fortes indícios que as memórias não estão perdidas para sempre. Aparentemente, o que o cérebro memoriza, não esquece jamais.

O cérebro sexual: o que é normal?

sex, 04/05/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Ao nascermos, e muitas vezes até antes, a observação anatômica do corpo do bebê define em que tipo de mundo ele vai viver: no azul masculino ou no cor-de-rosa feminino.

A criança, exposta a diversos estímulos ambientais, vai então moldando as redes neurais de seu caráter e personalidade e, para a alegria dos pais, torna-se um indivíduo sexualmente maduro, responsável pela propagação dos genes familiares. Esse ciclo tão comum torna-se um verdadeiro paraíso quando comparado com o destino daqueles que não seguem por esse caminho. Nesse caso, a vida pode ser infernal.

Diante da entrada do Inferno, Dante e Virgílio se deparam com um aviso que diz para abandonar toda a esperança — uma vez dentro, não há como voltar. “Sem esperanças” é a melhor descrição de como pessoas em crise de identidade sexual se sentem numa sociedade que condena qualquer nuance no desvio do modelo heterossexual. Portanto: abra sua mente antes de continuar lendo o texto abaixo.

Em termos didáticos, podemos classificar o sexo humano em três tipos. O primeiro é o sexo biológico, ou a determinação genética: cromossomos XY definem homens e cromossomos XX, mulheres. O segundo é a identidade sexual, ou como você se enxerga independentemente do sexo genético. Especula-se que a identidade sexual possa ser causada pela quantidade hormonal disponível para o desenvolvimento do cérebro fetal durante a gravidez. Finalmente, o terceiro é a orientação sexual, ou seja, o sexo pelo qual você se sente atraído. Certamente, nenhuma dessas definições, sozinha, explica a diversidade sexual.

Crianças com a chamada “síndrome de identidade sexual” começam a apresentar um comportamento característico (irritação com o tipo de roupa ou preferência por brinquedos do outro sexo) por volta dos dois anos de idade. Quando chegam na adolescência sem o devido acompanhamento psicológico, a frustração com o próprio corpo é tão grande que freqüentemente optam por automutilação. Há muitos casos de depressão e altos índices de suicídio. Um dos tratamentos consiste em frear o desenvolvimento dessas crianças com suplementos hormonais (que de quebra produzem altos índices de câncer), deixando um corpo mais definido para a maturidade. Afinal, a passagem pela adolescência pode ser traumática mesmo sem crise de identidade sexual.

A orientação sexual acontece mais tarde no desenvolvimento e leva em conta aspectos do sexo genético e da identidade sexual, além de influências do ambiente e da própria personalidade do indivíduo. A orientação sexual é extremamente ampla e, sem dúvida, o grupo homossexual é o mais discriminado hoje em dia.

A homossexualidade humana só começou a ser considerada um desvio de comportamento com o estabelecimento da civilização judaico-cristã. O porquê disso é motivo de muita especulação, dentre as quais destaco o interesse em manter uma organização familiar burguesa e de fácil controle. De fato, o homossexualismo estava na lista internacional de enfermidades mentais, até que finalmente foi retirado em 1990 pela Organização Mundial de Saúde. Atenção: não confunda a síndrome da identidade sexual com homossexualismo. Parte do preconceito vem da falta de informação. Homossexualismo não é uma doença.

Diversos fatores apontam para um componente genético no homossexualismo, como, por exemplo, em gêmeos idênticos: quando um é homossexual, a chance de que o outro seja é maior do que quando os envolvidos são gêmeos não-idênticos. Também há evidência de que a homossexualidade masculina esteja relacionada a fatores associados ao cromossomo X materno. Outra observação é a alta freqüência de comportamento homossexual entre os animais.

Dados do livro “Biological Exuberance – Animal Homosexuality and Natural Diversity”, de Bruce Bagemihi (1999), sugerem que, de 450 espécies analisadas (entre elas, mais de 300 animais vertebrados), todas exibiam, em maior ou menor grau, hábitos homossexuais. Em destaque, nos macacos bonobos (com mais de 98% do genoma idêntico ao humano), o contato homossexual é tão ou mais comum do que o heterossexual.

Em drosófilas (moscas-de-fruta) foi possível criar uma linhagem homossexual, através de manipulação genética, onde machos cortejavam outros machos, chegando a formar “trenzinhos”, com diversos machos enganchados uns aos outros e total ausência de interesse por fêmeas que estavam próximas (Zhang e Odenwald, PNAS 1995). O achado foi inicialmente encarado como um forte argumento da presença de um componente genético durante a orientação sexual. No entanto, ao misturar machos homossexuais com heterossexuais, esses últimos também passavam a cortejar outros machos, sugerindo um aprendizado da corte.

Apesar de não sabermos ainda como isso ocorre, o comportamento homossexual atuou nos neurônios sensoriais das moscas heterossexuais, possivelmente através de mecanismos epigenéticos (não genéticos ou ambientais). Esses dados demonstraram que o ambiente também pode afetar o comportamento sexual, além de chamar a atenção para o cérebro como o verdadeiro órgão sexual.

Em humanos, estudos liderados pelo pesquisador Simon LeVay, de San Diego, na Califórnia, e publicados na prestigiada revista “Science” em 1993 trouxeram evidências de que o cérebro pode ser um dos caminhos para se entender a sexualidade humana. No hipotálamo (região do cérebro atribuída a emoções e comportamentos sexuais), neurônios específicos, conhecidos como 3NIHA, respondem à presença de testosterona, o hormônio masculino.

Em humanos, esse núcleo de células é menor em homens homossexuais quando comparados com homens heterossexuais, o que sugere que os cérebros de homens homossexuais respondem menos a estímulos da testosterona do que os de homens heterossexuais. Não foi encontrada diferença entre homens homossexuais e mulheres.

Apesar de instigante, o trabalho não exclui a possibilidade dessa diferença ter sido causada pela infecção por HIV, uma vez que os cérebros de homens homossexuais usados na pesquisa vieram exclusivamente de pacientes com Aids.

Independentemente de como o cérebro lida com fatores genéticos e epigenéticos na formação da sexualidade, ainda não sabemos por que, evolutivamente, o homossexualismo se mantém nas populações humanas, uma vez que casais homossexuais não geram filhos. Uma das idéias seria que o balanço entre homos e heterossexuais trouxesse alguma vantagem evolutiva para a espécie. Curiosamente, modelos matemáticos simulando essa situação revelaram uma interessante característica humana: caso exista um fator genético determinante da homossexualidade (isto é, um ou mais genes “gays”), 50% da população humana estaria dentro de um gradiente bissexual (Gavrilets e Rice, Proc. R. Soc. Lond., 2006).

Como descreveu Alfred Kinsey em 1949, as pessoas podem ser classificadas como exclusivamente heterossexuais (50%) a exclusivamente homossexuais (5%). Entre os dois extremos, um gradiente revela toda a diversidade humana, fruto de um cérebro complexo com um ambiente em constante mutação. Nessa população estariam as categorias intermediárias que variam de um extremo ao outro, dependendo da circunstância em que se encontram. A beleza do modelo matemático acima proposto é que ele seria facilmente testável se estivéssemos preparados para descobrir se a hipótese é verdadeira ou não.



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade