O choro dos humanos

sex, 23/02/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Numa conversa de botequim com amigos surge a questão sobre quais características definem o ser humano em contraste com outras espécies. Rapidamente, muitos respondem: “o polegar oponível” ou o “tamanho do cérebro”. Essas respostas, certamente equivocadas, me levaram a refletir sobre o assunto. Afinal, quais são as características unicamente humanas?

Com certeza o choro é uma delas. Só os humanos choram, nenhum outro animal chora. Pode até parecer simplório ou comum para muita gente, mas o choro é, sem dúvidas, um comportamento muito bizarro na natureza.

Lacrimejar é parte do ato de chorar. Isso, apesar de óbvio, trouxe muita confusão, principalmente para aqueles que se aventuraram a tentar descobrir por que choramos. Outros animais também lacrimejam. No caso do homem, em algum momento da evolução, redes neurais ligadas aos sentimentos se juntaram a glândulas responsáveis pela produção de lágrimas. Por alguma razão, essa estranha conexão não foi eliminada, mas se manteve presente até hoje, o que sugere que isso tenha uma função para a espécie humana.

Existem três tipos de lágrimas. Lágrimas basais servem para lubrificar os olhos. As lágrimas reflexivas estimulam as glândulas lacrimais em resposta a uma irritação ocular. A terceira lágrima é a sentimental (a do choro). Estas são quimicamente diferentes das basais e reflexivas, pois contêm 25% mais proteínas, quatro vezes mais potássio e trinta vezes mais manganês. Além disso, elas são carregadas de hormônios, como a prolactina e adrenocorticotropina (que, apesar de terem outras funções no organismo, são produzidas em altas quantidades quanto estamos em estresse).

Dessa análise, surgiu a idéia de que o choro seria uma forma de balancear os níveis hormonais quando em situações adversas ou tensas, buscando um equilíbrio. Isso permite que, passada a situação traumática, voltemos para as nossas atividades mais aliviados.

No entanto, é complexo validar essa hipótese, afinal, induzir o choro em laboratório não é tarefa simples e a quantidade de hormônio liberada não parece ser tão grande assim para justificar um balanço hormonal. Além disso, é difícil imaginar alguma vantagem evolutiva, afinal o choro nos deixa com a visão embaçada e emocionalmente susceptíveis. Curioso é que essa susceptibilidade emotiva talvez seja importante para entender o significado do choro.

No choro, as lágrimas devem ter uma função importante. O professor de psicologia Randolph Cornelius (Vassar College) coleta imagens de pessoas chorando após um incidente trágico para pesquisa. Nelas, as lágrimas devem ser claramente visíveis. Quando encontra uma imagem apropriada, ele elimina digitalmente as lágrimas da figura, criando uma versão da pessoa chorando, mas sem as lágrimas escorrendo pelo rosto, mantendo inalterada a expressão facial. Essas imagens foram mostradas a participantes de um estudo científico. A uma parte do grupo foi mostrada as fotos originais e, para outra parte, as fotos editadas sem lágrimas. Nenhum participante viu a mesma imagem com e sem lágrimas e nem sabiam dessa edição digital.

Ambos os grupos tiveram que descrever o estado emocional das pessoas nas imagens. Aqueles que viram as imagens com lágrimas descreveram que elas estariam, sem dúvida alguma, tristes. Mas o grupo que viu as imagens sem lágrimas ficou nitidamente confuso sobre o que as pessoas da foto estariam sentindo. Os palpites foram muitos, como cansaço e irritação. Pode-se concluir que as lágrimas não deixam dúvidas — elas enfatizam o estado emotivo de pessoas tristes.

Choramos desde que nascemos, apesar de que as lágrimas só surgem após os 6 meses. Os bebês expressam diferentes tipos de choros (fome, dor, separação, etc) que são prontamente reconhecidos pelos pais. Esse vocabulário rudimentar surge antes das primeiras palavras e sugere que o choro estaria envolvido com alguma forma primitiva de comunicação. No entanto, crianças e adultos utilizam outras formas mais sofisticadas de comunicação (linguagem, gestos, olhares, expressão facial) e ainda assim choram. Choram não só por algo triste e dolorido, mas também de emoção ou mesmo de forma manipuladora.

Não sei se isso acontecia com nossos ancestrais ou se é característico do homem moderno. Será que a evolução cultural estaria modificando a razão evolutiva original do choro? Nessa visão, o choro serviria como um tipo extraordinário de comunicação. Principalmente porque os humanos estão entre os animais mais sociáveis, formando sociedades complexas, favorecendo uma evolução cultural sem precedentes. Afinal, quem não se sente atraído por alguém que chora? Queremos saber o porquê, queremos confortar e ajudar. Esse comportamento pode ter colocado grupos humanos em vantagem pelo simples fato de criar fortes conexões afetivas entre seus integrantes.

Durante os seis milhões de anos passados, nossos ancestrais mudaram muito, principalmente do pescoço pra cima. Nosso cérebro dobrou de tamanho e nossos músculos faciais se tornaram mais refinados, alterando a forma de mostrar e reconhecer afeição. Essas modificações permitiram uma melhor comunicação entre nós. As partes do cérebro associadas com nossas emoções e experiências foram conectadas às glândulas lacrimais. Relações humanas complexas imploram por complexas formas de comunicação. Nesse contexto, a linguagem surge como uma adaptação essencial. As lágrimas, óbvias e literalmente na cara, surgem como outra adaptação humana.

A mistura das nossas experiências e sentimentos no choro e se transformam numa das mais potentes formas de comunicação humana. Seja no amor por alguém, na emoção da música, na dor da perda ou no prazer da conquista, o choro nos leva para um lugar longe do espectro de ação da sintaxe, longe de qualquer vocabulário, de qualquer língua. Choramos nessas situações e as marcamos em nossa memória pra sempre, formando um linha do tempo aonde está claramente definido momentos em que choramos. Lembramos de quem estava perto, de quem nos aninhou. Chora-se pela vida e pela morte. Todos nós já passamos por isso. Sem o choro, não seriamos definitivamente humanos.

Ouvindo cores amargas: Julieta é o Sol

sex, 09/02/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

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Observe a seqüência de números acima. Qual é a cor do número 5? E do número 3? Você consegue localizá-lo de primeira? Ele é quente ou frio? Tem cheiro ou gosto de quê? Se você tem alguma resposta para essas perguntas, é bem provável que tenha sinestesia. Sinestesia deriva de duas palavras gregas (syn = junção, esthesia = sensação, numa tradução livre) e descreve a condição na qual pessoas experimentam o mundo comum de uma forma extraordinária, onde os sentidos (visão, tato, paladar, olfato e audição) são misturados ao invés de permanecerem separados.

O fenômeno foi primeiramente descrito por Francis Galton, primo de Charles Darwin, em 1880. Mas, como tudo que foge ao “normal”, foi inicialmente tratado como aberração ou um artefato devido ao uso de drogas alucinógenas.

A sinestesia pode misturar qualquer um dos sentidos e, assim sendo, você pode estar totalmente convencido de que os sábados têm cheiro de morango. No entanto, a forma mais comum de sinestesia é a visualização de números ou letras em determinadas cores. No exemplo acima, pessoas com sinestesia conseguem visualizar o número 3 bem mais rápido que a maioria das pessoas, pois para elas, o número 3 naturalmente tem uma cor diferente da do 5, facilitando sua imediata identificação.

Pessoas com sinestesia não misturam os sentidos de forma voluntária, simplesmente acontece com elas. Apesar de parecer estranho, esse condição não é tão rara assim. Estima-se que a freqüência na população seja de 1 para 100.000, aparentemente mais freqüente em mulheres. Possivelmente, a maioria dos sinestetas não sabe que é portadora, talvez pelo fato de que a condição não as incomode. Ao contrário, a sinestesia pode até ser prazerosa, como ouvir um violino e sentir cheiro de chocolate, ou mesmo útil, como associar o nome de pessoas com cores.

As bases biológicas da sinestesia ainda são um mistério. Existem indicações de que, nos sinestetas, conexões nervosas que deveriam ser restritas a uma determinada região sensorial no cérebro se misturam com outras regiões sensoriais. Essa interferência acontece normalmente com todos nós ao nascermos, porém, durante o desenvolvimento, as conecções são lapidadas, definindo regiões sensoriais específicas no cérebro. A idéia atual é que adultos sinestetas foram crianças onde esse refinamento não ocorreu como esperado.

Sabe-se também que a sinestesia tem uma base genética, pois acontece em diferentes membros da mesma família. Curiosamente, essa falha não atrapalha outras funções cognitivas, como raciocínio lógico e memória. Mas por que então essa condição ainda se mantém na população humana e não foi eliminada pela evolução?

Minha especulação é que essa porcentagem de sinestetas contribui com o intelecto criativo e abstrato da humanidade. Através das mais estranhas associações, esses indivíduos freqüentemente aparecem com excelentes metáforas e inusitados ângulos de vista de um determinado problema. Deve ser positivo termos alguns sinestetas na população, mas imagine se todos fôssemos assim…

De fato, muitos nomes famosos do meio artístico e científico aparentemente tinham sinestesia. É o caso de Shakespeare: na famosa cena do balcão, Romeu define Julieta como o Sol – não soa estranho e ao mesmo tempo atrativo? Esse tipo de metáfora acontece freqüentemente em suas obras. Estaria Shakespeare meramente usando idéias sinestetas ou seria ele um clássico caso de sinestesia?

Da mesma forma, Vasily Kandinsky parece não se contentar apenas em provocar um estímulo visual. Diversas pessoas relatam que, quando em frente aos quadros de Kandinsky, conseguem ouvir música ao percorrer as sinuosas linhas da pintura com os olhos. Para outros, as pinturas parecem dançar, como se as pinceladas tivessem movimento próprio. Possivelmente, cada um de nos terá uma experiência diferente ao se expor a seus quadros. Por causa disso, a neurociência acredita que, estudando a sinestesia, poderemos entender melhor como o cérebro interpreta a arte.

A interpretação da arte pelo cérebro pode auxiliar na compreensão da diversidade humana. Ao segurarmos uma flor, nosso cérebro recebe e agrupa diferentes sensações (cor, cheiro, textura e forma), formando o conceito de flor. Sinestetas podem acrescentar outras percepções particulares (memórias, recordações, vivência, espiritualidade etc.) para formar seu conceito próprio de flor.

Entender como o cérebro agrupa as mais diversas percepções deve ajudar a compreender o pensamento abstrato, como cada um de nós percebe a si próprio e a sua relativa realidade. Estará escondido no cérebro sinesteta a resposta para um mundo mais harmonioso?



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