Um próspero e molecular 2007
Tarefa difícil prever quais serão os tópicos mais quentes do ano que vem na área da biologia molecular. No entanto, algumas descobertas feitas nos anos anteriores dão uma dica do que virá de quente em 2007.
No topo da minha lista estão as modificações epigenéticas. Não porque eu as considere mais importantes, mas sim porque o tema tem revelado uma flexibilidade genômica absurda, inicialmente associada aos míseros 2% de genes encontrados em nosso genoma.
E aí você me pergunta, que diabos são as tais modificações epigenéticas? Eu respondo. São alterações químicas no DNA ou em proteínas associadas, como as histonas, que podem favorecer ou inibir a expressão gênica (ou seja, a “ativação” dos genes).
Essas modificações podem ser induzidas pelo ambiente em que a célula se encontra. Dessa forma, nosso patrimônio genético é moldado desde o ambiente intra-uterino, com todas as influências do comportamento materno, passando pelo tipo de dieta quando adolescentes, o quanto de exercício que fazemos diariamente e terminando pelo uso ativo da nossa massa cerebral, expondo-se a novas experiências.
Entender como a epigenética funciona ajudará a entender melhor fases iniciais do câncer, a manutenção das células-tronco e até traços comportamentais. E quem não dominar o código epigenético em um ou dois anos será, com toda certeza, um analfabeto molecular.
Parte dessas modificações epigenéticas são causadas por pequenos RNAs. (Só lembrando as aulas de biologia, o RNA é uma molécula que se assemelha ao DNA, mas, em vez de ter a forma de uma fita dupla, ela é composta por uma fita simples.) Esses pequenos RNAs foram as vedetes de 2006, culminando com a premiação de Craig Mello e Andrew Fire para o Nobel de medicina, justamente pela caracterização inicial de como eles atuam para silenciar genes. Novas tecnologias surgiram a partir disso, como o deep sequencing (seqüenciamento de profundidade, também conhecido nos corredores moleculares como “454″), permitindo a leitura de pedaços pequenos ou mesmo degradados de RNA ou DNA.
Essa tecnologia foi utilizada para seqüenciar trechos do DNA obtidos de ossos de neandertais e também foi aplicada para investigar a abundância e localização de micro RNAs, uma outra classe de RNAs reguladores. Alguns micro RNAs são conservados entre diferentes espécies, sugerindo uma função importante para a célula. No entanto, muitos deles são exclusivos dos humanos e principalmente expressos no sistema nervoso. Apesar de termos seqüenciados muitos deles, não sabemos como eles escolhem os genes a serem regulados. Um único micro RNA pode regular a expressão de muitos genes, possivelmente promovendo um ajuste fino nas redes neurais. Para entender melhor e formular novas hipóteses será preciso caracterizar a função de alguns deles e depois desenvolver algoritmos inteligentes que auxiliem na identificação dos genes alvos.
Milhares de outros tipos de RNA foram encontrados em diferentes tipos celulares e não fazemos idéia do que eles fazem. Chamo a atenção para os pequenos RNAs derivados de seqüências repetitivas do genoma, vulgarmente conhecidas como DNA “lixo”. Esses RNAs são gerados por um complexo protéico ainda pouco caracterizado, conhecido como “piwi” (pronuncia-se píui). Curiosamente, esse complexo só foi encontrado até agora em células germinativas e parece estar envolvido com a manutenção de células-tronco. Pois é, parece que esse “lixo” todo pode ter alguma função. Ao meu ver, isso é apenas a ponta do iceberg, uma revolução no velho dogma DNA-RNA-proteína. Vamos descobrir que ainda vivemos num mundo de RNA…
E por falar em células-tronco, parece que elas vão continuar tendo destaque no ano que vem, principalmente no que se refere a mecanismos moleculares que regulem a manutenção do estado indiferenciado (incluindo mecanismos epigenéticos) e em passos decisivos da diferenciação celular. O uso de células-tronco para a triagem molecular revelou uma série de pequenas moléculas que estão sendo utilizadas para o cultivo e propagação das células-tronco em condições quimicamente definidas, livres de produtos animais.
Também acho inevitável os avanços na área da reprogramação celular, ou a arte de fazer uma célula especializada dar origem a tipos mais indiferenciados. Essa reprogramação parece ser resultado de modificações epigenéticas que só acontecem em condições específicas, como no ambiente citoplasmático dos óvulos. Os avanços nessa área estão muito em voga principalmente por causa das restrições do governo americano ao uso de células-tronco embrionárias humanas.
Em relação a terapia celular, os avanços deverão ocorrer na identificação de fatores responsáveis pela sobrevivência das células transplantadas em regiões lesadas, ainda em modelos experimentais animais. A manipulação do ambiente ou “nicho” tem se mostrado fundamental para a correta integração celular, evitando inflamação e a indesejada propagação de células indiferenciadas que podem gerar um tumor.
Outra área promissora é a do metabolismo celular. Nunca estivemos tão preocupados com o metabolismo como nessa geração. Isso porque sabemos hoje que o metabolismo está ligado diretamente à obesidade e à longevidade, temas de alto interesse quando o assunto é saúde pública. Muito tem sido feito nessa linha de pesquisa e destaco os trabalhos liderados pelo pesquisador californiano Ron Evans, com a descoberta e caracterização da família de receptores nucleares, responsáveis pela sinalização hormonal nas células. A caracterização do metaboloma (conjunto de metabólitos produzidos pelas células) e o uso de pequenas moléculas reveladas por triagem molecular devem gerar formas mais eficientes para diagnóstico e tratamento de desvios inatos ou adquiridos do metabolismo humano.
Infelizmente, a maioria dessas descobertas deverá acontecer em laboratórios americanos, europeus ou japoneses, mas não brasileiros. Isso leva a uma reflexão de final de ano e projetos para o ano que vem.
Apesar de admiráveis atitudes individuais ou de grupos de excelência de pesquisadores brasileiros, ainda estamos engatinhando a nível de incentivo institucional. Dentre outros problemas, vejo que poderíamos ter mais colaborações internacionais e que existe uma escassez de pesquisadores brasileiros em posições de destaque em instituições de prestígio no exterior. Esses poderiam funcionar como “olheiros tecnológicos”, favorecendo a troca de informações e auxiliando a formação de um mercado biotecnológico no país.
Talvez a distância tecnológica que nos separa de países como os EUA pudesse ser diminuída se tivéssemos uma América Latina mais unificada cientificamente, dividindo centros para produção de anticorpos, enzimas e animais transgênicos. Ainda não sei direito porque não acontece, mas o fato é que perdemos muito com isso. Gostaria mesmo é de começar 2007 com novos projetos da Academia Brasileira de Ciências e do Ministério da Ciência e Tecnologia para agregação da ciência na América Latina, fortalecendo nossa participação internacional. Só não pode ser igual a um regime que só começa depois do carnaval…