19/03/2013 07h01 - Atualizado em 25/03/2013 18h26

'No Sertão, fé tem prazo de validade', diz padre de cidade atingida pela seca

Quinze cidades cujo padroeiro é São José estão em situação de emergência.
Religiosos e moradores cobram ações mais eficazes do governo.

Luna MarkmanDo G1 PE

Em Ingazeira, boi está tão fraco que não consegue se levantar (Foto: Luna Markman / G1)Em Ingazeira, boi está tão fraco que não consegue se levantar (Foto: Luna Markman / G1)

“Meu divino São José, imploro em vossos pés, mandai chuva com abundância, meu Jesus de Nazaré.” Essa é uma das orações mais repetidas por trabalhadores rurais, fiéis do santo, no interior de Pernambuco. Segundo a crença religiosa, se houver sinal de chuva no Dia de São José, celebrado nesta terça-feira (19), a safra vai ser boa. Quinze cidades no estado cujo santo é padroeiro estão em situação de emergência por causa da longa estiagem. Nesses locais, padre e moradores relatam a difícil situação causada pela falta de água e cobram ações emergenciais do governo no enfrentamento à seca.

(O G1 viajou 1,4 mil quilômetros, cortando nove localidades do Sertão, Agreste e Mata Norte do estado, e acompanhou o sofrimento de vários devotos a São José, que não têm mais como plantar e criar animais.)

No Nordeste, sobretudo no Sertão, o dia 19 é dedicado a plantar feijão e milho - este último para ser consumido no período junino, que têm festas dedicadas aos santos Pedro, João e Antônio. Mas a previsão climática não é nada boa para os agricultores. "As chuvas para os meses de março, abril e maio devem ser abaixo da média", informa o meteorologista Vinícius Gomes, da Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac).

Luís Marques Ferreira é o pároco de Ingazeira, cidade com pouco mais de quatro mil habitantes, no Sertão. Padre Luisinho, como é conhecido, também é coordenador das pastorais sociais do Sertão do Pajeú e conhece bem as dificuldades pelas quais os agricultores da região estão passando. Muitos deles vão à Igreja Matriz de São José, no centro do município, com mais de 200 anos de fundação e feita de pedra e cedro, orar por chuvas no dia do santo.

Luís Marques Ferreira, padre de Ingazeira, PE (Foto: Luna Markman / G1)Padre de Ingazeira critica demora das ações contra
a seca (Foto: Luna Markman / G1)

"Os agricultores estão desesperados. As medidas do governo são paliativas, não estão resolvendo a situação e demoram a chegar. Nós, católicos, temos fé, mas, aqui no Sertão, ela também tem prazo de validade. O dia 19, que é dia do santo padroeiro de Ingazeira, é a última cartada do povo, que espera a chuva. Enquanto ela não vem, continuamos com fé, mas é preciso fazer obras estruturadoras. Acredito na força libertadora de São José, mas os fiés têm que fazer a sua parte também, exigindo ações", comenta.

Algumas famílias na zona rural de Custódia, no Sertão, estão gastando dinheiro para comprar água, pois o carro-pipa não chega em todas as localidades. É o caso da aposentada Clara Gomes da Silva, 61 anos, moradora do Sítio Caetano. Ela tira R$ 100 do salário mínimo que recebe para garotos buscarem água em uma cisterna que fica distante demais para suas pernas cansadas. "Já tive que pagar R$ 150 por um carro-pipa. Tem uns que cobram o dobro do preço, dependendo da qualidade da água", conta a idosa, que costuma convidar vizinhos para orar na casa dela no dia de São José.  "Todo mundo pede para que caia chuva no Nordeste", afirma.

Ivonete Souza também mora no Sítio Caetano e reclama que não tem como buscar água nas três cisternas que ficam em localidades mais distantes da casa dela. "Não dá para colocar mais lata na cabeça, fica ardendo, e não tenho carro de boi para pegar. Mesmo sem condições, eu pago R$150 por carro-pipa, que dura só uns 30 dias. Temos que beber, tomar banho, cozinhar, lavar roupa, dar para meus bodes", contabiliza.

O dinheiro faz falta para a família, que enfrenta a alta do preço dos alimentos por causa da seca. O feijão de corda e a farinha, por exemplo, duplicaram de valor, passando a custar R$ 6 o quilo. Antes, ela mesma plantava esses itens para subsistência. O governo estadual está construindo na propriedade dela uma cisterna calçadão, uma espécie de calçada inclinada por onde escorre a água até o reservatório, com capacidade de armazenar 54 mil litros de água. "O problema é que precisa chover muito para encher isso aqui, era melhor que furassem um poço, que teria água permanente para nós", aponta.

João Mendes lamenta a falta de chuvas em Ingazeira. Desde o ano passado, não consegue plantar nada em sua propriedade, no Sítio Riacho Fundo, Zona Rural do município. A comunidade toda conta com um poço do tipo amazonas, que é instalado rente ao lençol freático e não precisa de tubulações. O criador teve que vender quase todo o rebanho que tinha pela metade do preço. "Os bichos estavam morrendo de fome e sede. Os cinco animais que sobraram comem palma queimada com bagaço de cana", lamenta.

Clara mostra diferença entre águas que compra, em Custódia. (Foto: Luna Markman/ G1)Clara mostra diferença entre águas que compra de carros-pipa, em Custódia. (Foto: Luna Markman/ G1)

A água que a família de João Mendes usa no dia-a-dia vem de carros-pipa do açude de Brotas, em Afogados da Ingazeira, cidade próxima. A média é de 20 litros por dia, a ser dividida por todos. "Não dá para quase nada. Não tem poços por aqui, já pedimos muito [à Prefeitura], disseram que estavam para sair, mas nada foi feito", reclama. Apesar do sofrimento, João Mendes não perde a fé em São José. "Eu tenho essa cisma que, se até dia 19 não chover, não vai ter inverno aqui para nós, aí não vai dar novamente para arar e semear a terra. A gente sempre ora no dia do santo para ele mandar chuva", explica.

A Adutora do Rosário abastece a zona urbana de Ingazeira e duas comunidades da zona rural, que são atendidas por sete carros-pipa, administrados pelo Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), Exército e Prefeitura. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ingazeira denuncia que essa quantidade ainda é pequena para atender a população. "Nossa terra é riquíssima em lençóis freáticos. O governo deveria investir mais em perfuração de poços. Apenas seis funcionam atualmente aqui", denuncia o presidente do sindicato, Edemilson Silva.

João Mendes alimenta poucos gados com bagaço de cana-de-açúcar, em Ingazeira. (Foto: Luna Markman/ G1)João Mendes alimenta gado que restou com bagaço de
cana-de-açúcar, em Ingazeira. (Foto: Luna Markman/ G1)

Segundo o IPA, o solo de Ingazeira é realmente cristalino e rico em lençóis fretáticos. "Hoje, cerca de 80 poços estão em funcionamento no município, com vazão de cinco mil litros/hora, e a maior parte fica na área rural. Fechamos um projeto com o Banco do Nordeste para perfurar e instalar este ano mais 12. Cada um custará R$ 5 mil e o agricultor pagará esse valor em cinco parcelas anuais. Cada poço atenderá várias famílias, que poderão dividir esse custo", explicou a extensionista rural do IPA de inganzeira, Deorlanda Carvalho.

Ainda sobre ações em infraestrutura hídrica na caatinga pernambucana, a Secretaria Executiva do Comitê Integrado de Convivência com o Semiárido informou que a meta para 2013 é perfurar e instalar 1,2 mil poços e recuperar 400 em todo estado. Cada cidade em situação de emergência deve ganhar cinco poços, cuja execução será feita em parceria entre as prefeituras municipais e o IPA, além de outras iniciativas livres do próprio instituto.

'Meu carro-pipa é a burrinha'
A mesma solicitação é feita em Carpina, na Mata Norte. Além da ausência de poços, nenhuma família da zona rural está recebendo apoio de carros-pipa, segundo o sindicato dos trabalhadores rurais do município. "As pessoas estão tendo que pegar água em poços dentro de propriedades particulares, e elas pegam pouco. Há uns 15 meses, não está dando para plantar mandioca, feijão, batata doce, limão", enumera o presidente do sindicato, Anatércio Eufrasino.

Em Caraúba Torta, distante 18 quilômetros do centro de Carpina, moram cerca de duas mil pessoas, apertadas em casas de taipa ou tijolos, sem cisternas. Para chegar lá é preciso passar por outro município, Lagoa do Carro. Quando a seca piorou, Inácia Alves tratou logo de comprar Marinalva por R$ 250. "Sem ela, ia ter que carregar na cabeça todo dia. Meu carro-pipa é a burrinha. Com ela, pego quatro bujões de 20 litros numa cacimba [espécie de poço]", comenta, referindo-se ao animal que a ajuda no transporte do líquido.

Inácia busca água em poço com burra. (Foto: Luna Markman/ G1)Inácia busca água em poço com burra, na zona rural de 
Carpina, na Mata Norte. (Foto: Luna Markman/ G1)

Perto dali, em Serraria, Severina Valentino conta apenas com um olho d'água que fica em uma fazenda particular. "Se ele [o proprietário] disser que não podemos mais ir lá buscar água, acabou, vou ter que comprar de carro-pipa, como faço vez ou outra. Uma 'carrada' de 10 mil litros custa R$ 120. Era bom que furassem um poço aqui perto de nós, onde todo mundo pudesse usar livremente", pede.

Para o padre de Carpina, Cézar Teixeira, o maior problema não está na falta de chuva. "O que faltam é políticas públicas para o agricultor poder plantar. Deus sempre manda chuva, mas sabemos que muitas vezes ela não é aproveitada", reclama.

Cerca de 1,5 mil carros-pipa, sendo 838 do Exército e 646 do governo, estão atendendo 1,1 milhão de pessoas nas cidades em emergência. De acordo com o Comitê, a regional Carpina, divisão territorial que engloba várias cidades da Mata Norte do estado, conta atualmente apenas com um carro-pipa. "A definição da rota do carro-pipa é responsabilidade dos conselhos municipais, que devem repassar a demanda para o IPA que, por sua vez, faz a solicitação ao governo estadual. O que pode estar ocorrendo é que ainda não se tenha feito essa discussão no conselho municipal de Carpina, pois as demandas apresentadas estão sendo atendidas, na medida do possível”, explica Reginaldo Alves, secretário-executivo do Comitê Integrado de Convivência com o Semiárido.

Arte - Estiagem ameaça roteiro da fé, em Pernambuco (Foto: Arte G1)

'Precisamos de ajuda'
Há três anos, fiéis juntam dinheiro para levantar a nova Igreja Matriz de Venturosa, no Agreste de Pernambuco, dedicada a São José, porque a antiga ameaçava desabar. Com a seca, está cada vez mais difícil tocar a obra, por falta de verba. Faltam R$ 80 mil para concluir o trabalho. "A situação está difícil devido à falta de água e de alimento para os animais. Precisamos de ajuda, de acompanhamento dos órgãos governamentais, com ações bem estudadas", opina o padre Fábio Pereira dos Santos.

Mesmo com essas dificuldades, o religioso afirma que o povo aguarda ansiosamente o dia 19 de março. "Na mentalidade deles, é o dia que chove e se planta o milho para que, no São João, se coma. Diante dessa seca, o povo está muito fervoroso, celebrando São José, aguardando sua intercessão", destaca.

Padre Geraldo, de Capoeiras. (Foto: Luna Markman/ G1)Padre Geraldo defende o cancelamento de festa para usar
verba em ações contra a seca (Foto: Luna Markman/ G1)

Também no Agreste, a Prefeitura de Capoeiras informou que cancelou a programação profana da festa de São José para investir em ações de combate à seca. Os R$ 300 mil que pagariam bandas e infra-estrutura do evento servião agora para comprar cestas básicas, água mineral e outras iniciativas. "A assistência do governo, eu vejo pouco aqui. Quem sofre mais com a seca é o padre, porque o povo recorre muito a nós, pedindo comida, para interceder por água e outras assistências. A pobreza é marginalizada e tem a igreja como ponto de referência, então, é válido [que se cancele a festa profana] se for mesmo para ajudar a população", defende o padre Geraldo Batista de Lima.

Ações estruturadoras e medidas pontuais
Sobre implantação de infraestrutura hídrica no semi-árido, o último balanço do Comitê Integrado de Enfrentamento à Estiagem de Pernambuco informa que foram construídos e recuperados 775 açudes, 2.970 barragens e 440 barreiros, além de sistemas simplificados de abastecimento d’água, a maior parte em comunidades rurais de Pernambuco. Por meio do programa Água para Todos, o governo promete investir cerca de R$ 66 milhões com a implantação de sistemas de abastecimento d’água e construção de barragens, beneficiando 69 mil famílias.

A Secretaria Estadual de Agricultura tem realizado, desde o começo deste mês de março, viagens ao interior e vem tomando decisões in loco sobre as ações mais emergenciais. A iniciativa começou pelo Agreste Meridional e será estendida até o Sertão do São Francisco. No último dia 7, por exemplo, o órgão autorizou a contratação de carros-pipa e a perfuração e instalação de poços, construção de barragens e instalação de sistemas de abastecimento de água em Venturosa.

Em Capoeiras, a equipe entregou um equipamento que vai desassorear barragens por 60 dias. Em Brejo da Madre de Deus, passou 8 para 12 o número de carros-pipa que atendem a cidade. Essas caravanas ainda vão passar por São José do Egito, Ingazeira, Custódia, Bezerros, Surubim e Carpina, para ver quais ações pontuais precisam ser desenvolvidas nesses municípios. "[A situação de emergência em] Carpina ainda não foi reconhecida pelo Ministério da Integração, por isso ainda não capitamos recursos para políticas públicas lá", diz o secretário de Agricultura, Ranilson Ramos.

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