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seg, 10/03/14
por Amelia Gonzalez |
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Olá, o endereço do Blog da Amelia Gonzalez mudou. As novas postagens estarão em https://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/

Lixo no Velho Chico agrava situação de um dos principais rios das Américas

sex, 07/03/14
por Amelia Gonzalez |

Amigos meus que viajam já sabem o que quero na volta: notícias.  Foi assim com Helena, recém-chegada de Sergipe e Alagoas. Ela dá conta de um carnaval esplêndido, se apaixonou pelo carinho e simpatia das pessoas, viu paisagens deslumbrantes à margem do velho São Francisco. Mas… a sujeira deixada às margens do rio pelos moradores  foi uma imagem que ficou.

—- Uma brincadeira carnavalesca comum  por lá é encher uma garrafa PET de farinha e jogar na pessoa. Uma delícia, depois a gente se banha no rio e o corpo fica limpo. Mais tarde, porém, é que percebi: as garrafas são deixadas  na beira do rio! As águas acabam levando para o leito se alguém não aparecer para limpar  – contou-me ela.


É preciso fazer uma campanha, mobilização popular, lei, sei lá, alguma coisa, me diz Helena, para conscientizar as pessoas de que jogar lixo no rio causa problemas sérios. Já existe um assoreamento visto a olho nu, cuja responsabilidade não pode ser atribuída apenas à quantidade de lixo, mas ajuda a dar contorno a um triste cenário para o velho Chico.  Os barcos que fazem passeios turísticos precisam tomar cuidado para se desviar de pequenas ilhas que se formam no leito do rio. Mais triste ainda: os peixes estão sumindo.

—- Peguei um barco que navega de Penedo a Neópolis, município sergipano que faz divisa com Alagoas,  e fui conversando com o barqueiro. Perguntei se a atividade da região prioritária era a pesca e ele ficou até espantado. Disse que não, que há muito tempo não há  mais peixe no São Francisco para todo mundo. Vi só pesca artesanal, mas em pequeno número  — disse-me ela (a foto mostra uma margem em Neópolis, cidade ribeirinha).

E do que os pescadores estão vivendo? A grande maioria sobrevive com o dinheiro do auxílio-desemprego. Outros se lançam ao mar em busca de peixe.

Para a população local, o assoreamento do velho Chico vem acontecendo por conta da especulação imobiliária, que cada vez invade mais o leito do rio, e da instalação de hidrelétricas.  A opinião geral é que o São Francisco não tem mais água a doar para o desenvolvimento humano, ele já ultrapassou seus limites. Não é difícil concordar com isso. Mas jogar lixo no rio também contribui para o problema.No mês passado houve uma manifestação, convocada via redes sociais, quando os ribeirinhos fizeram o “velório do Velho Chico” pedindo às autoridades providências para o desassoreamento e a transposição do rio.

Só para lembrar: o São Francisco é hoje ainda um dos principais cursos de água doce das Américas e banha 73 cidades de cinco estados brasileiros.

No século XVIII, em “A riqueza das nações”, Adam Smith elegeu a liberdade econômica individual como motor para o desenvolvimento. Para ele, quanto menor a interferência do Estado, mais o indivíduo conseguiria alcançar o que chamou de “progresso da opulência”. Sua ideia de progresso estava diretamente relacionada à do bem-estar pessoal, de felicidade.

Lembrei-me disso enquanto ouvia as histórias que Helena me trouxe. Um rio lindo, com quase três mil quilômetros de extensão, quando banha cidades ganha sujeira, é assoreado, fica prestes a morrer. É o resultado da ação do homem em busca do progresso, descontente com o simples, querendo e precisando  sempre de um pouco mais.

Um dos livros que li e tem o poder de aplacar um pouco a angústia que sinto quando penso em nossa civilização é “O mito do progresso”, de Gilberto Dupas. Não que o cientista social, morto em 2009, tenha sido muito otimista em seu estudo, onde desfila, com ousadia, entre mitos gregos e nanotecnologia. Mas a possibilidade de pensar nossos riscos com a ajuda de outros escritores me faz sentir um pouco mais atuante.

O capítulo 5 do livro de Dupas é inteiramente dedicado ao meio ambiente, com foco no futuro da humanidade. A prática de atacar rios, florestas e mares dentro da lógica contida nos conceitos do progresso para trazer bem-estar à humanidade, sem pensar nas consequências disso a longo prazo, é analisada pelo autor com ajuda de outros estudiosos. Até o príncipe Charles, da Inglaterra, foi convidado por Dupas e argumentou que “Os cientistas não entendem completamente as consequências do nosso ataque multifacetado ao tecido entrelaçado de atmosfera, água, terra e vida”.

Dupas faz um traçado histórico das iniciativas que levam à degradação ambiental e conta que já não se pode mais falar em “risco zero”, como na década de 80. Agora a questão é, modestamente, tentar administrar o risco.

“Assim como conceitos tais como o de desenvolvimento sustentável, o que estaria agora por trás da noção de risco e de sua gestão seria a naturalização da ideia de progresso, de que não se pode voltar atrás no processo histórico de desenvolvimento industrial e tecnológico desencadeado em proporções geométricas a partir do século XIX”, escreve Dupas.

O autor, assim como muitos que cita em seu livro, se recusa a aceitar a ideia progressista que “reduz a natureza a uma matéria-prima da indústria, a uma mercadoria gratuita, a um objeto de dominação e de exploração ilimitada”.  Poderia ser diferente?

Esta pergunta está pipocando nas teses de dez entre dez especialistas e não há ainda respostas diretas, por mais que se façam conferências, seminários, encontros. Para muitos especialistas que tenho entrevistado nessa última década, será necessário ter uma governança global forte, que imponha regras, multas e limites. Outros preferem acreditar em soluções locais, chamando os indivíduos a participarem de uma espécie de corrente em prol de uma natureza menos degradada, se é que isso ainda é possível.

Nesse sentido, concordo com a sugestão de minha amiga. Campanhas e mais campanhas podem servir para alertar a população de que jogar lixo no rio não vai dar boa coisa.

No mais, infelizmente é preciso entender que enquanto precisamos tanto, e cada vez mais, de energia para dar cada passo adiante, as hidrelétricas continuarão sendo uma opção aqui no Brasil, onde temos bastante água. Agora mesmo enfrentamos uma seca aqui no Sudeste que está pondo em risco o abastecimento de energia. Imaginem isso em proporções nacionais.

Logo, o Rio São Francisco, que já tem dado muito de suas águas em prol do progresso, continuará fazendo este papel. Cabe aos humanos, pelo menos, agradecer cuidando da parte que lhes cabe, sem empestear suas águas com seus restos. É o mínimo, francamente.

Crédito da foto: Arquivo Pessoal

Conversa com dois jovens mochileiros chilenos no carnaval carioca

qui, 06/03/14
por Amelia Gonzalez |

Certo dia li uma pesquisa que apontava o Chile como o país mais sustentável da América Latina. E fiquei com essa informação guardada em algum lugar da memória. Tinha um sentimento misto de inveja com curiosidade, afinal, não deve ser motivo de pouco orgulho morar num país que leva esse título.

Bem, o estudo é de 2006, foi feito pela empresa espanhola Management & Excellence e, resumidamente, diz que o Chile fez o melhor em 50 categorias listadas, além de liderar reformas substanciais na governança corporativa. A expectativa de vida do país era a melhor de todos os outros – 77 anos – e a percepção de pobreza e de falta de segurança havia baixado. O país ainda tinha passivos sérios, porém, em emissões de gases do efeito estufa, e os pesquisadores apontavam que essa responsabilidade ficava por conta do fato de Santiago concentrar uma grande parte da população – na época, 4,4 milhões dos  15,6 milhões de habitantes do país.

Os detalhes que descrevi acima, é claro, tive que buscar nos arquivos de memória digital, mas o fato ficou gravado na mente. E por que estou trazendo isso hoje, plena quinta-feira de cinzas, quando a vida está começando a tomar seu rumo depois da folia? Porque no carnaval tive a chance de conhecer dois chilenos bastante engajados nas questões sociais, políticas e ambientais de seu país. Sebastián Vielmas é historiador , ex- secretário-geral da Federação de Estudantes do Chile e Matias Schmidt Gubbins é cineasta, também trabalha na Federação.  Ambos com 25 anos, de mochila nas costas, vieram passar uma temporada aqui no Brasil e, no Rio, se hospedaram na casa de uma amiga minha. Na segunda-feira, antes de caírem na folia, reservaram um tempinho para conversar comigo.

Contei a eles sobre a pesquisa e perguntei se concordavam com o resultado. Minha ideia era tentar aproximar dados e realidade. Sebastian e Matias não conheciam o estudo e se espantaram.  A primeira ligação que fizeram quando ouviram a palavra sustentabilidade foi com o meio ambiente. E a poluição em Santiago, seguramente, não deixa ninguém  pensar a cidade como um lugar de preservação do meio ambiente. O caso lá é tão sério que há restrição na circulação de carros desde 95. Culpa dos carros e de tantos outros fatores, sim, mas a geografia da região ajuda: cercada pela Cordilheira dos Andes e outras cadeias montanhosas, a cidade tem poucas áreas que permitam diluir  essa poluição.

Mas foi Matias quem teve o estalo: possivelmente o estudo tem a ver com a postura das empresas, cada vez mais preocupadas em ter uma gestão responsável e cuidadosa com o meio ambiente, disse ele. Bingo!

—- O Chile só tem Ministério de Meio Ambiente há cerca de dois anos, mas as empresas estão agindo, fazendo estudos que possam diminuir o impacto que elas  causam. Acho que essa pesquisa que você leu deve ter levado isso em conta – disse Matias.

Por outro lado… o país  é produtor de matérias-primas, quase não tem indústria, mas  tem minério. Como se sabe, a mineração é uma atividade altamente impactante e é justamente na área mais desértica que as empresas se instalaram. Para extrair minério é preciso usar muita água, o que falta nessas regiões. E há um abuso de termoelétricas no país. Um cenário que se aproxima do de muitos outros países com tantos recursos naturais e que não se encaixa no perfil de um país sustentável.

Lá, como em tantos outros lugares do mundo hoje, a população começa a se manifestar. Matias e Sebastian contam a história da resistência popular, em 2012,  contra a intenção do brasileiro Eike Batista de construir uma usina termelétrica em Castilla, um território ocupado por pinguins.

—- Com a poluição causada pela termelétrica os bichos iam ter que mudar de território, muitos iam acabar morrendo. Pescadores e moradores foram para as ruas e a Corte de Apelações da província do Antofagasta (norte do Chile)  suspendeu a autorização – conta Sebastian.

Antes disso , em 2011, Sebastian tem um forte registro na memória da passeata que reuniu 200 mil pessoas nas rua de  Santiago contra a construção de uma hidrelétrica (a Hidroaysén) na Patagônia:

—- Há uma inquietude da juventude chilena contra projetos que impactam o meio ambiente, sim. Mas ainda não é um movimento de todos. Essa passeata envolvia muitas famílias, mas achamos que muita gente pode ter se mobilizado para defender suas próprias terras – disse ele.

Houve um candidato “verde” na campanha para a presidência do ano passado (Michelle Bachelet se reelegeu em dezembro), mas ele só teve 1 ou 2% dos votos, a maioria de estudantes e da classe mais abastada, com maior acesso a conhecimento. Tocamos no tema conhecimento e decidi perguntar sobre a educação no país. Não me surpreendi, a essa altura, quando disseram que a taxa de analfabetismo é bem baixa e que, depois da ditadura de Augusto Pinochet (1973 – 1988), o governo abriu vagas, encheu as universidades. Mas, hoje, estão questionando sobre a qualidade do ensino.

A conversa, então, gira em torno de índices, dados, pesquisas. Argumentou-se  que não é difícil acomodar números e porcentagens num determinado perfil. O índice habitacional do Chile, por exemplo, lembram-me, é muito bom. Mas…

—- Chega perto de um daqueles condomínios de moradias sociais para ver como são. É mesmo que uma favela.  Há muita coisa que se esconde por trás dos índices – disse Matias.

Um Estado nulo, falta de política de saúde para todos (é muito segregada), falta de assistência aos aposentados, transporte público de péssima qualidade:  tudo isso junto a  outras coisas anda estimulando os chilenos a  exercerem seu direito de ocupar as ruas para se manifestar. Os dois jovens mochileiros certamente estarão engrossando essas fileiras em algum momento.

Matias e Sebastian já pegaram o caminho de casa. São dois jovens que deixam nos interlocutores aquela boa sensação de que a civilização não estará tão mal se a humanidade seguir um caminho parecido, com a mesma capacidade , discernimento e potência.

Por aqui, vamos começando o ano de 2014 para valer. Como  diz um amigo meu, em tom de brincadeira, começa agora aquele período chato que vai do Carnaval ao Natal.  Mas este ano teremos dois eventos que ainda vão alterar bastante a rotina dos brasileiros: a Copa e as eleições. Fico na torcida, sinceramente, para que o futebol não se imponha como o acontecimento mais importante do ano, tirando dos brasileiros a chance de fazer contato com a realidade. O marketing, este bem e mal da nossa era, requer dos indivíduos olhos abertos, pés no chão, ouvidos atentos e muito conhecimento.

No meio da folia, o menino e sua banquinha de enfeites. Um problema?

seg, 03/03/14
por Amelia Gonzalez |
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A mulher se fantasiou de problema. Rosto, roupa, toda de branco. Ora, mas problema é branco? Nas mãos, ela levava um cartaz que desfez minha dúvida: ‘Na euforia, os problemas viram fumaça”. Ah, agora entendi. A mulher, então, estava fantasiada de fumaça. E passava uma mensagem que seria… um alerta? Ou uma constatação?

Dou um aceno, ela corresponde e eu sigo em frente. Esbarro, tropeço, tento atravessar o mar de gente que transformou a ruazinha tranquila num grande encontro. De fato, lembrar problemas numa hora dessas é pregar no deserto, vou pensando. No fundo, no fundo, bloco de carnaval é um grande encontro de amigos, todo mundo a fim de se divertir, fazer uma catarse, sei lá. Tudo, menos pensar em problema. Tenho vontade de me aproximar da mulher e dizer isso, mas ela já se foi, também esbarrando, tropeçando…

Ah, mas se tivesse chegado mais cedo, ainda na preparação do bloco, a mulher que se fantasiou de problema ia ter assunto. Talvez até para um debate, e eu me ofereceria para ser a interlocutora.  É que Filipe, menino de 12 anos,  óculos de lentes grossas, camisa de malha e short a vestir um corpo muito fino, estava ali, preparando sua banquinha para vender enfeites aos foliões. Seu perfil pode ser considerado o de um trabalhador infantil. Chego perto, puxo conversa.

—- Quem comprou tudo isso para você vender?

—- Meu tio. Ele gastou mais de R$ 1 mil.

—- Poxa! E quanto você ganha por dia?

—- Ah, depende. Tem dias que ganho R$ 200,00, tem dias que ganho R$ 400,00…

Enquanto fala, vai tirando de um saco de plástico preto os objetos que vai expor na banquinha de madeira improvisada. Uma rosa para pôr no cabelo, sacos e mais sacos de serpentina, confete, spray de espuma. E um arco que imita duas orelhas de rato. Apertando ele acende, me avisa, bem infantil. Mas não conseguia fazer funcionar a traquitana. Mudo de assunto:

— Você estuda?

Filipe para de escarafunchar o grande saco preto e olha para mim, bem sério:

— Claro, né? Estudo na Escola Argentina, lá perto da minha casa, em Vila Isabel.

O tom que ele usou para me responder foi de quem já teve que responder a mesma pergunta inúmeras vezes. Bom sinal, penso. Se está sendo tão inquirido é porque as pessoas estão se afetando pelas campanhas feitas por governo e sociedade civil no sentido de alertar os cidadãos quanto aos problemas gerados pelo trabalho infantil em substituição à escola. Não me parece ser o caso de Filipe. Perguntei o preço do colar colorido:

—- Custa R$ 7. É o mesmo preço dessa flor — se apressa em dizer.

—- E quem é que diz quanto você deve cobrar?

—- É meu tio. Mas ele também pergunta é para os outros que estão aqui vendendo. Todo mundo está cobrando o mesmo preço pela flor, quer ver?

Filipe dá um grito para o ambulante que está mais à frente e confirma, aos berros, a informação que havia me dado. Sim, todo mundo cobra o mesmo preço. E todo mundo vende as mesmas coisas. Quem vence a concorrência ali é porque está com sorte. Sorte de estar no caminho de quem quer comprar. Comprei um colar colorido que agora virou enfeite para a minha estante nesses dias de folia.

Sempre que olho para o colar penso em Filipe, nas teorias hegemônicas que embotam qualquer possibilidade de se enxergar mais de perto os contornos da singularidade. Embora eu reconheça que o garoto poderia estar muito melhor se acompanhado de adultos e rodeado de meninos de sua idade aprontando alguma brincadeira ali no bloco, sinceramente, não senti desconforto algum naquela cena. Filipe parecia se divertir como “dono” de sua banquinha de enfeites.

Muito diferente, por exemplo, de quando estive no Piauí fazendo uma reportagem, há cerca de quatro anos, e vi crianças descascando aipim com facão para transformar em farinha. Estavam perto dos pais fazendo uma atividade arriscada, usando ferramentas que não podem estar nas mãos de crianças. Ali, sim, a infância estava sendo violentada. Questionei os adultos em volta e causei espanto geral.

Sendo assim, fico feliz ao ter percebido que Filipe não é maltratado e que, de uma certa forma, estava ali tendo boas noções de economia informal. Sabe também fazer conta, deu-me o troco direitinho. E frequenta a escola.

O problema é se Filipe se acostumar nessa vida de ganhar um troco vendendo coisas e passar a engrossar a estatística de jovens que abandonam a escola. Um estudo realizado em 2010 deu conta de que 16,7% dos adolescentes do país, na idade entre 15 e 17 anos, largam a escola antes de terminar. Em números absolutos são cerca de 1,7 milhão de garotos e garotas.

Muitos deles resolvem deixar a escola exatamente porque arranjam um jeito “fácil” de ganhar dinheiro e é isso que lhes interessa. Mas aí é preciso olhar em volta, no entorno, no sistema econômico que dá muito mais força para o ter do que para o ser, antes de apontar um único culpado.

De qualquer forma, há casos de polícia e é contra esse tipo de situação que as organizações da sociedade civil investem seu armamento mais pesado. Porque criança vira presa fácil, sobretudo nas mãos de corporações irresponsáveis que procuram mão de obra em países pobres justamente porque sabem que ali terão chance de pagar menos pelo trabalho.

No site da organização não-governamental Fair Labor Association há notícias de uma pesquisa feita em 2012 com trabalhadores indianos onde se constatou que as crianças fazem o mesmo trabalho que os adultos em fazendas, mas recebem menos. Foram entrevistadas 44 crianças com menos de 14 anos de idade que recebem, em média, 10 a 20% menos do que as mulheres – que já ganham menos do que os homens – para fazer as mesmas tarefas.

A ONG acaba de lançar ainda o Projeto Algodão. É que na produção do algodão há denúncias severas de violações dos direitos de trabalho. Há países onde o trabalho infantil, nesse caso, é até forçado pelo próprio Estado. O objetivo do projeto  é mapear a cadeia de abastecimento para ajudar as grandes marcas de roupas a identificarem sua cadeia produtiva para se certificarem de que suas fábricas não estão usando algodão “sujo”, contaminado com as violações dos direitos dos trabalhadores.

Filipe e sua banquinha nos blocos de carnaval, definitivamente, estão fora desse padrão.  Mas, caso o leitor esbarre com ele, não custa parar e perguntar de novo: “Você está na escola”? Só para reforçar, entende?

Quanto à mulher vestida de problema, meus sinceros agradecimentos. Afinal, a criatividade da fantasia dela incitou boas reflexões.

O carnaval pode ser um jeito de viver de maneira sustentável

sex, 28/02/14
por Amelia Gonzalez |

O release chegou por email com o resultado de uma pesquisa* que, não necessariamente, traduz uma novidade:  perguntaram a 1.518 internautas se eles iriam cair na folia ou descansar nesse carnaval. E a maioria, 67%, opta por ficar na cidade onde mora e curtir os quatro dias de folga com… folga! Fiquei me sentindo incluída. Eu também faço esta opção. É verdade que tenho que trabalhar, portanto não é bem uma folga. Mas, pensar em enfrentar uma estrada entupida de carros na ida e, o que é pior, na volta, deixaria minha quarta-feira de cinzas ainda mais cinzenta.

Prefiro, então, continuar praticando o localismo. Li em algum lugar, dia desses, que esta é uma novidade na Europa que está chegando por aqui. Bem, para mim não é nada novo. Há tempos que adoro fazer tudo o que preciso fazer, das compras ao lazer, sem precisar gastar combustível (seja do meu carro ou de ônibus), só a sola do meu sapato. Não é só uma atitude ambientalmente prudente, como se deveria exigir mesmo de alguém que estuda e escreve sobre o tema, mas hoje é mais uma questão de optar por viver com menos estresse.

Assim, quando preciso fazer entrevista, visitar amigos ou quero apurar algum fato, sim, eu me desloco. Fora isso, me viro por perto. E ouso pensar que este vai ter que ser o caminho para quem não consegue se desvincular do ambiente urbano.  Há tempos venho reparando, quando preciso andar de carro, que dificilmente consigo passar para a quarta marcha se estou transitando em horário comercial e em dia útil. A tendência, sim, é apontar o dedo contra  a má administração municipal, essa eterna grande vilã. Na grande maioria dos casos existe mesmo uma falha de quem precisaria estar mais atento a proporcionar aos cidadãos uma qualidade de vida melhor. Mas existe outra realidade contra a qual é difícil lutar: há carros demais nas ruas.

E tenho reparado que também aumentou bastante o número daqueles veículos utilitários imensos, os 4 X 4, geralmente com filme em todos os vidros. Deve ser para não ouvirem o quanto são xingados quando se apropriam das ruas com a maior sem-cerimônia, deixando os carros comuns para trás. Não os censuro, de forma alguma. Ora, se a indústria automobilística constrói veículos tão possantes, se para aquecer a economia facilitam sua venda e quem administra a cidade permite que eles circulem em qualquer espaço, por que não usá-los em toda a sua potência? Não é verdade?

Anthony Giddens, londrino, professor e membro da Câmara dos Lordes, que se tornou consultor de políticos e empresas do mundo todo, acha que esses veículos deveriam ser proibidos. Em “A política da mudança climática” (Ed. Zahar), lançado aqui em 2009, ele é duro com os motoristas de 4 X 4, que estariam contribuindo para minar a própria base da civilização humana ao não perceberem a gravidade das ameaças que temos pela frente sob a forma de emissões de gases do efeito estufa.

Bem, lá estou eu escrevendo sobre um tema polêmico. Vai gerar comentários raivosos, tenho certeza. Interessante que não era assim quando comecei a estudar a sustentabilidade. Há cerca de 10 anos qualquer pessoa com um nível médio de conhecimento tinha certeza de que a Terra está aquecendo e os humanos contribuem para isso. Mas o número de céticos vem aumentando…

E minha intenção era outra, pensava em compartilhar com vocês minha programação leve de carnaval, sugerindo algo semelhante para quem vai ficar em casa. Pensei mesmo em dar a ideia de uns filmes – já assistiram a biografia de Hannah Arendt? Foi lançada em DVD e é muito bom — e livros – o último livro do professor Eduardo Viola, “Sistema Internacional de Hegemonia Conservadora” pode ser uma ótima opção, estou ainda começando a leitura. Mas fui atravessada, novamente, pelas mudanças climáticas.

É que a “Royal Society” e a Academia Nacional de Ciências do Reino Unido acabaram de lançar um livreto com 20 perguntas e respostas sobre mudanças climáticas.  As atividades humanas, especialmente a queima de combustíveis, são consideradas pelos cientistas londrinos responsáveis diretas pelo aumento de 40% da concentração de CO2 na Terra desde a Revolução Industrial.  Como eles têm certeza disso? É uma das perguntas que eles próprios respondem mais ou menos assim:

“As mudanças no clima são baseadas em nossa compreensão de como gases de efeito estufa prendem o calor. Tanto este entendimento fundamental da física de gases de efeito estufa quanto estudos de impressões digitais mostram que causas naturais sozinhas são insuficientes para explicar as recentes mudanças observadas no clima”.

Se as emissões parassem agora, se voltássemos a viver como há 200 anos, explicam os cientistas, o nível do mar continuaria a subir ainda por muitos séculos.  É a isso que Anthony Giddens chama de “caráter anódino” das mudanças climáticas e que estaria colaborando, creio eu, para o aumento do número de céticos. Afinal, de qualquer maneira o mundo vai aquecer, os oceanos vão crescer, os países insulares vão desaparecer…. Então por que o cidadão comum deve se preocupar, se há uma vida por viver agora, problemas para enfrentar aos montes? Por que eu estou focando neste tema se o carnaval está aí batendo à porta e oferecendo chance de esquecer um pouco tudo isso pelo menos por quatro dias?

Giddens responde: “É necessária uma mescla de idealismo e teimosia. Por exemplo, os estilos de vida que servem para reduzir as emissões terão implicações econômicas diretas. Se ajudarem a gerar um número maior de postos de trabalho ou empregos melhores do que os de hoje, terão um valor imediato e pragmático. O outro lado do perigo é sempre a oportunidade”.

E eu respondo: quando comecei a me aprofundar no tema da sustentabilidade percebi que havia outras  possibilidades de vida, e isso me encantou. Pensar em viver de um jeito menos dependente do petróleo, do carro e de tantos outros encarceramentos é muito mais do que oportunidade. É viver melhor.  Uma das coisas que mais me dá prazer, no carnaval, é poder transgredir regras, e acredito que isso é assim para todo mundo. Não estou falando só de se vestir de um jeito diferente, mas na possibilidade de ocupar espaços urbanos de maneira diferente.

Seguir um bloco de sujo cantando e pulando pela Avenida Rio Branco ou Avenida Paulista, corações financeiros de Rio e São Paulo, por exemplo, é mais do que transformar risco em oportunidade. É simplesmente bom, e pronto.

Não sei se estou sendo clara, mas consegui voltar ao meu desejo inicial. É tempo de falar e pensar em coisas leves, afinal. E de desejar um carnaval de sensações boas, de preferência com os pés no chão. Boas leituras e filmes para quem é de casa, bons mergulhos na cidade para quem é da rua. Se parar para pensar, isso é viver de maneira sustentável…

* Pesquisa feita pela CONECTAí

Cheia do Madeira alerta sobre políticas de adaptação às mudanças climáticas

qua, 26/02/14
por Amelia Gonzalez |

Vou pedir licença aos leitores para fazer aqui uma comparação que pode parecer esdrúxula. Para mim,  as cidades de Porto Velho, capital  da Rondônia e de Roterdã, nos Países Baixos, guardam uma certa semelhança. Estive nos dois lugares e acompanhei de perto o medo que os moradores dessas duas cidades têm de serem alagados a qualquer momento. Porto Velho está à beira do Rio Madeira, cujo período de cheia (março a maio) é sempre muito complicado. Roterdã é banhada pelas águas geladas do Mar do Norte e seus moradores não querem reviver a tempestade que em 1953 fez o mar avançar sobre a cidade causando muitas mortes.

Termina aí, porém, a semelhança entre elas.  Porque enquanto o governo holandês investe pesado para tentar se adaptar e evitar uma grande catástrofe que uma invasão das águas poderia causar, os moradores de Porto Velho não veem o dinheiro de seus impostos serem investidos para livrá-los de conviver sazonalmente com um desconforto absurdo provocado por um fenômeno natural. Como vocês já devem ter lido nos noticiários, o Rio Madeira subiu mais de 18 metros e há dias está causando um desastre imenso na região.

Mas é bom bater na mesma tecla: não é de hoje que o Madeira se faz presente de forma ruidosa na vida dos portovelhenses. Este vídeo mostra uma reportagem que foi ao ar há 32 anos no “Globo Repórter” e está circulando pelas redes sociais dos moradores da cidade. São imagens e depoimentos espantosos, ainda em preto e branco, que servem quase como um documento de que aquele fenômeno é recorrente, causa estragos há décadas.  E a providência, ao que parece, é tentar esquecer isso no tempo da seca.

Estive na Holanda em 2011. Volta e meia eu me lembro dessa viagem e a uso como referência aqui no blog. A imagem mais forte que tenho é de um gigantesco portão construído no Mar do Norte com a função de se fechar e conter as águas marinhas caso elas avancem sobre a cidade. Não custou nada barato – US$ 700 milhões —  e requer uma equipe de dez funcionários do governo que recebem um salário para ficarem ali, qual faroleiros, observando o movimento do mar. Só a máquina é capaz de fechar o portão no caso de uma cheia iminente, mas os homens foram capacitados para fazê-la funcionar no momento certo.

A boa notícia é esta: há tecnologias. A má notícia é: não depende só de dinheiro, mas de vontade política.

Até agora, pelas últimas informações, Porto Velho tem 1.800 pessoas desabrigadas. O carnaval de lá foi cancelado pela prefeitura e Ji-Paraná, cidade vizinha, tem medo que as águas cheguem a causar estragos lá também. Por isso, também cancelou a folia para liberar o ginásio onde aconteceria o desfile aos prováveis desabrigados.

Se não há investimento em prevenção, o jeito é apontar vilões na hora da catástrofe. Essa é uma atitude demasiada humana. Em nota, a ONG Greenpeace lembra que a cheia está antecipada porque até agora 95% desse fenômeno acontecera só a partir do mês de maio. E reproduz, na nota, a fala de alguns moradores que apontam a Usina Santo Antônio, que entrou em operação em 2012, como a culpada. No site Rondoniadigital há uma extensa discussão também sobre o assunto.

A questão é que não dá para sair apontando a responsabilidade diretamente sobre o funcionamento das turbinas à cheia, já que não é de hoje que o rio se comporta assim, como se sabe. É possível, sim, apontar o aumento das emissões de carbono, o impacto sobre o próprio rio e sobre a fauna e flora locais, mas acho que não causariam problemas hoje, agora. Até porque há um vasto programa de compensação imposto pelo Ibama à empresa  que pode amenizar um pouco esse tempo de resposta natural contra o empreendimento.

Outra preocupação dos moradores é se a violência das águas do rio poderia causar um rompimento de barreiras. Em nota no site, a empresa nega essa possibilidade com veemência e aproveita para apontar também o “seu” vilão, que seria a imprensa “alarmista” que estaria propagando tal inverdade. Conversei com uma assessora que me disse que a Usina é projetada para trabalhar com 80 mil metros cúbicos de água e que o volume agora está em 43 mil metros cúbicos.

Aparentemente, tudo certo. Até porque, por questão de segurança, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) mandou desligar hoje as 14 turbinas.

“É uma questão de segurança para os equipamentos. Jamais  foi levantada a possibilidade de uma catástrofe do tipo rompimento de barragem, isso não existe. E o que houve foi uma solicitação da própria Usina, o ONS não exigiu, não tem condições de exigir nada”, disse-me um dos assessores do órgão, aproveitando para criticar também  a cobertura de mídia sobre o caso.

Tentei falar com alguém da empresa Santo Antonio Energia, mas não consegui. A informação que obtive é que, como estão emitindo debêntures, ficam proibidos pela Bolsa de Valores de dar declarações à imprensa.

Fico com a sensação de que, nesse caso específico das cheias recorrentes do Madeira e da falta recorrente de iniciativas para se lidar com ela, as vítimas não precisam de mais vilões. Governantes que não se preocupam em criar soluções deveriam estar mais do que na mira. Mas, como se sabe, em questões de política há sempre uma leitura mais complexa. Gosto da ideia de ampliar esse debate pensando também na responsabilidade dos eleitores que põem no governo candidatos que não têm esse foco.

A Holanda se preocupa com o degelo do Ártico. Na área da Rondônia, que inclui parte da Bolívia, os olhos se voltam para o degelo dos Andes, que estaria provocando a cheia histórica. Este vilão está aí, com a cara a tapa. E poucos lhe apontam o dedo, talvez pela dificuldade de lidar com um efeito que pode ser real e nunca vai pedir réplica para esquentar o debate.   Holandeses, de certa forma, já estão quase seguros com as adaptações que têm sido feitas. Rondonenses, não. Ilustra muito bem o que os especialistas em mudanças climáticas costumam alertar: os mais afetados pelos eventos climáticos serão, sempre, os mais pobres e os que têm, também, menos acesso às informações.

Se encaramos a questão da mudança do clima como uma questão de modelo de desenvolvimento, como deve ser, esse ponto passa a ser o único a se considerar na enchente histórica do Madeira.  Nas reportagens da mídia local li poucas referências ao degelo dos Andes. E em nenhum momento houve uma cobrança real dos governantes, talvez porque não se ache viável uma solução. Mas, sim! Elas existem e podem ser pensadas, estudadas, realizadas com recursos especialmente destinados a esse fim, como mostram os holandeses.  É dessa forma que se vai enfrentar os efeitos das mudanças climáticas que começarão a ser cada vez mais frequentes daqui para a frente. Disso, poucos duvidam.

O cidadão informado pode ser capaz de cobrar que quer parte do dinheiro do seu imposto sendo usado para lhe garantir uma vida menos turbulenta e perigosa. Afinal, é garantia de vida o que mais se quer.  Nesse ponto, seja o morador do Hemisfério Norte, mais rico e frio, seja aqui do lado debaixo do Equador, mais pobre e quente, todos somos iguais.

Daí que a minha comparação acaba não sendo tão esdrúxula assim.

Novo livro de Elisabeth Kolbert alerta para extinção em massa de espécies

seg, 24/02/14
por Amelia Gonzalez |

Os seres humanos têm conseguido muitas extravagâncias à custa de outras espécies. Por causa disso, estaríamos entrando numa sexta fase de extinções em massa, avisa a jornalista e escritora Elisabeth Kolbert no livro que acaba de lançar (ainda sem tradução para o português) chamado “The Sixth Extinction: An Unnatural History”. Kolbert,  responsável pela série sobre aquecimento global premiada “The Climate of Man”, é conhecida aqui no Brasil com o livro “O Planeta Terra em Perigo” (Ed. Globo), lançado em 2008, em que, com um texto cativante, relata algumas viagens que fez para diferentes lugares do mundo, como Ártico, Inglaterra, Holanda, Islândia, Porto Rico, Groelândia, sempre tentando mostrar o impacto das mudanças climáticas nas pessoas.

No livro recém-lançado, que mereceu reportagem da revista britânica “The Economist” desta semana, a jornalista norteamericana  manteve o estilo leve. E é dessa forma, quase conversando com o leitor, que ela conta o passado de extinções em massa de que o planeta vem sendo vítima nos últimos 450 milhões de anos, em cinco episódios que dizimaram a vida animal e vegetal em grande escala.  E, com estudos de caso muito bem referenciados, a colunista da revista “New Yorker” aposta que estamos muito próximos de um sexto episódio.

“Tendo descoberto as reservas subterrâneas de energia, os seres humanos começaram a mudar a composição da atmosfera. Esta, por sua vez, alterou o clima e a química dos oceanos. Algumas plantas e animais conseguem se ajustar movendo-se para outras regiões, escalando  montanhas e migrando para os polos. Mas um grande número de centenas, depois milhares e, finalmente, talvez milhões de espécies, encontram-se abandonadas. As taxas de extinção estão subindo e a trama da vida vem mudando”, diz um trecho do livro disponível  para download na internet.

A classe mais ameaçada do mundo animal são os sapos. Essa descoberta foi feita por Kolbert durante uma viagem ao Panamá e a história desses animais preenche um dos 13 capítulos do livro.  Foi na cidade de El Valle de Antón, região central do Panamá, que a escritora conheceu a história do sapo dourado, antigamente endêmico na região —  tanto que virou símbolo da cidade e aparece até impresso nos bilhetes de loteria –, hoje extinto.

A autora ficou sabendo da triste história dessa extinção numa revista que comprara para fazer um trabalho para o filho.  Em 2004 começaram a aparecer alguns cadáveres de sapos na cidade, e logo não havia mais nenhum. Na mesma revista ela descobriu um projeto de cientistas que fizeram uma espécie de arca de Noé de algumas raças de anfíbios. E, semanas depois, leu um outro artigo relacionado que buscava resposta para uma trágica pergunta: “Estamos vivendo uma sexta extinção em massa?”. David Wake, da Universidade da Califórnia-Berkeley, e Vance Vredenburg, do Estado de São Francisco Estado, observam no artigo que durante a história de vida do planeta já houve cinco grandes extinções em massa que levaram a uma profunda perda de biodiversidade. A extinção mais recente é a dos dinossauros e os dois autores argumentam que é bem parecido com o que está acontecendo com os sapos, senão igual.

“Se Wake e Vredenburg estão corretos não só estamos testemunhando um dos eventos mais raros na história da vida como estamos também causando isso”, diz Kolbert em seu livro.

A jornalista se lançou então numa aventura em busca do que chamou de “hotel do sapo”, um lugar especificamente construído para abrigar espécies e tentar salvá-las da extinção.  O centro tem vários tanques que reproduzem os habitats dos sapos.  O diretor, um panamenho esquisito, seguiu numa excursão noturna para descobrir outros sapos e Kolbert  foi junto, fazendo uma deliciosa descrição da caça aos anfíbios.

A questão que interessa é que, segundo os estudos, os sapos da cidade de El Valle teriam morrido por conta de um fungo Chytrid que causa uma espécie de ataque cardíaco nesses animais. O fungo não precisa dos sapos para sobreviver e só pode ser destruído com água sanitária, mas consegue se instalar nos topos de árvores e no subsolo.  Até agora se espalhou pelas terras altas da América do Sul e ao longo da costa leste da Austrália, cruzou para a Nova Zelândia e Tasmânia, percorreu o Caribe e foi encontrado também na Itália, Espanha, Suíça e França.

Há duas hipóteses: ou o fungo ganhou todo esse espaço viajando com sapos que nas décadas de 50 e 60 serviam para fazer teste de gravidez nas mulheres ou em sapos que serviam de alimento.

A reportagem da “The Economist” relativiza um pouco a preocupação de Kolbert, embora dê boa nota para o livro. É que a questão da perda da biodiversidade como uma catástrofe causada pelos humanos está, segundo a revista, longe de ser um consenso. “A teoria da extinção em massa está sempre sujeita a debate”, analisa o autor da reportagem, ao mesmo tempo em que alerta para o fato de os seres humanos serem ingênuos ao ponto de não conseguirem pensar em mudar as coisas para melhor.

Kolbert termina seu livro com uma nota pouco otimista: “A vida é extremamente resistente, mas não infinitamente”. É verdade. Acrescento, porém, que alguns seres humanos, aqueles que têm condições de obter conhecimento e usá-lo de maneira apropriada, estão sempre pensando em tornar a vida infinita.

Pois não é esse o caso do Banco dos Sapos? Como também não é esse o caso do Banco Global de Sementes criado por um grupo de pesquisadores em Svalbard, um pequeno arquipélago que fica na Noruega, a cerca de mil quilômetros do Pólo Norte? Amigo aqui do blog, o jornalista Victor Abramo mandou-me uma mensagem na semana passada impressionado com a notícia de que a  Embrapa Arroz e Feijão, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Goiânia, mandou para a Noruega uma seleção de diversas variedades de feijão, com 514 amostras, que serão responsáveis, junto a outras 4,5 milhões, de garantir o recomeço da agricultura mundial em caso de acidente nuclear ou uma grande catástrofe provocada por mudanças climáticas.

O banco global fica num túnel de 125 metros dentro de uma montanha, a 20 graus negativos, com garantia máxima de segurança e se difere de outros bancos genéticos pelo fato de não ser dependente de energia para refrigerar as sementes.

Tudo isso vale como informação e é importante saber. Mas, quando leio algo assim, tenho vontade de pensar também no nosso presente.  Não custa lembrar que estamos vivendo um período de seca muito forte no Brasil, ainda há cerca de 13 milhões de pessoas que passam fome e 36 brasileiros em cada 100 mil contraem a tuberculose, doença provocada por um bacilo descoberto no século XIX. Que mais tecnologias possam nos livrar desses e de outros males atuais, essa é a esperança. E que não se perca de vista que a humanidade precisa da biodiversidade para continuar no planeta. Muito trabalho pela frente, portanto.

 

Ranking feito por ONG mostra maus hábitos de empresas de bebidas e alimentos

sex, 21/02/14
por Amelia Gonzalez |

Nos últimos sete meses, mais de 395 mil pessoas aceitaram o convite feito pela ONG internacional Oxfam e participaram de uma espécie de abaixo-assinado virtual exigindo práticas mais responsáveis de dez das maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo.  O movimento faz parte da campanha “Por Trás das Marcas”, lançada no ano passado, que aqui no Brasil tem importância estratégica pelo fato de sermos um país produtor de alimentos e porque quase todas as empresas-alvo da campanha operam aqui. Temas como pobreza, desigualdade, agricultura familiar, participação e transparência, além de equidade de gêneros, manejo da terra e da água estão nesta lista de exigências.

A Oxfam fez mais: avaliou informações públicas disponibilizadas pelas empresas sobre as políticas de compras de commodities agrícolas dos países em desenvolvimento. E fez um ranking, que pode ser acessado aqui.  Segundo o diretor da Oxfam Brasil, Simon Ticehurst, este ranking mostrou que nenhuma das empresas citadas tem uma política voltada para os temas propostos.  Em resumo: nenhuma dessas  corporações  direciona seu negócio para promover um desenvolvimento com erradicação da pobreza.

—- Dentro de cada país onde essas empresas de alimentos atuam nós tivemos a chance de ilustrar alguns dos maus hábitos. Primeiro focamos no trabalho das mulheres e na colheita do cacau. A nível global, o que apuramos foi que as mulheres trabalham em péssimas condições e que o cacau, produto que dá um grande lucro às empresas, não oferece boas condições de trabalho para quem está no campo. Aqui no Brasil, detectamos o maior problema  dentro da cadeia da cana-de-açúcar.

É aí que entra a gigante Coca-Cola, parceira da Oxfam em várias campanhas, e que no ranking obteve nota razoável  no quesito que apura o uso sustentável da terra e ruim quando o foco vai para a relação da empresa com os agricultores que colhem o produto que lhe serve como matéria prima.

—- A novidade é que fizemos um elo com as próprias empresas e, aqui no Brasil, tanto em Pernambuco quanto em Mato Grosso do Sul temos documentadas questões com relação à terra dos índios.  O mesmo princípio que se aplica às barragens pode ser aplicado aqui porque é preciso ter uma política de consentimento prévio – disse Ticehurst.

Por “política de consentimento prévio” entenda-se: licença para operar. A expressão é muito usada quando há grandes empreendimentos que exigem remoção de pessoas, quando as empresas chegam com tratores para derrubar matas e casas. O detalhe do estudo da Oxfam é que envolve atividades mais silenciosas e revela que os moradores da terra precisam opinar também quando a proposta, por exemplo, é transformar a floresta em produção agrícola. E devem definir de que maneira vai poder participar de algum tipo de lucro nesse empreendimento. Lendo assim parece algo tão óbvio, né? Só que as empresas não entendem de maneira tão clara.

Uma vez  escancaradas na web, no entanto, as exigências tomam outra dimensão.  E a Oxfam fez todo o percurso, da consulta ao anúncio às empresas, deixando espaço para que elas também pudessem se manifestar. Tentei ouvir a Coca-Cola Brasil sobre o assunto, já que ela foi citada pelo diretor da ONG.  Minha ideia era uma fazer uma entrevista com o diretor de sustentabilidade Marco Simões, mas ele está de férias. A área de comunicação enviou-me uma nota onde reitera que a empresa abraça a expressão “tolerância zero” com relação à grilagem de terra:

“Estamos implementando uma abordagem de tolerância zero à grilagem de terras em toda a nossa cadeia de fornecimento e a realização de avaliações independentes de direitos sociais, ambientais e humanos em países estratégicos para o nosso sistema”, diz a nota.

Depois da divulgação do estudo, em parceria com a Oxfam, a empresa delineou um plano de ação concreto, desde novembro do ano passado, para tratar de direitos à terra em sua cadeia de suprimentos. E se propõe a envolver-se com governos e organizações internacionais “para defender práticas responsáveis de direito à terra”. Os compromissos assumidos usam como base diretrizes que a empresa já havia traçado, em julho do ano passado, em prol de uma agricultura sustentável, diz a nota.

Conversei com Rita Afonso, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da Coppe-UFRJ, que focou sua tese de doutorado na relação entre empresas e comunidades, e ela me disse que achou bem interessante o processo:

—- Isso é exatamente o poder da rede porque só é possível com o aparato tecnológico da web. Exerce uma pressão popular, ameaça a reputação da empresa. E reputação é diferente de imagem porque a imagem pode ser cuidada através de uma boa logomarca, mas a reputação exige confiança. Os investidores, os fornecedores, vão querer saber se a empresa tem condições de contornar as situações que envolvem desafios. Acho que nesse caso o consumidor será o último a ser impactado, sinceramente – disse Rita.

E a campanha pretende continuar, segundo Ticehurst. No mês que vem a organização vai lançar novo ranking, nova pontuação que estará disponível, como sempre, para que qualquer pessoa possam acompanhar a evolução (ou não) das políticas empresariais. É a sociedade civil exercendo seu papel e utilizando, para isso, uma das mais poderosas ferramentas do século, a web.

É um processo, quase uma novidade. No início do século, quando as empresas brasileiras, impulsionadas pela demanda social, começaram a se posicionar com seriedade sobre sua responsabilidade com o mundo à volta, a internet já estava mudando um pouco os hábitos. A evolução foi rápida. No ano passado havia 48% de brasileiros conectados à internet, segundo pesquisa feita pela Fecomércio-RJ. Quais os caminhos que vamos percorrer ainda a partir dessa utilização? Ainda não se pode afirmar nada.

Também gosto da iniciativa da Oxfam, da possibilidade de as empresas responderem, do espaço que o cidadão comum está ganhando para se manifestar. Tenho apenas alguns incômodos. O primeiro é com a outra metade de brasileiros que ainda não tem acesso à internet. Levando em conta que, geralmente, as maiores vítimas de ações irresponsáveis de empresas ficam em lugares recônditos, temo que ainda falte muito para que se possa pensar numa mudança de cenário real.

Outra coisa que me perturba é com relação ao anonimato que esse tipo de ação permite a quem está diante de uma tela reivindicando boas práticas. Por conta disso, penso que a ONG fez bem quando foi a campo fazer a pesquisa, constatando conflitos de terra na Usina Trapiche e desrespeito a terras indígenas em Mato Grosso do Sul por conta da expansão da cana de açúcar.

Um ganho imediato, sem dúvida, é a transparência das empresas. Segundo o diretor da Oxfam, a Coca-Cola respondeu imediatamente, de maneira clara, dizendo que sim, comprava das usinas envolvidas e comprometendo-se a mudar essa política.  A esperança é que essa atitude sirva como exemplo, puxe outras e outras. Penso que, por enquanto, é apenas o início de um processo e que só se vai conseguir resultados a longo prazo. Mas é bom, muito bom.

O homem que não aparece nas pesquisas de classes e consumo

qua, 19/02/14
por Amelia Gonzalez |

Para quem gosta de deixar transbordar pensamentos  estamos no meio de um debate dos mais importantes. A classe média, ou o que alguns especialistas chamam de classe média, esse conjunto de pessoas que hoje tem acesso a bens de consumo que jamais imaginou, virou definitivamente o alvo do mercado. A nível mundial, o fenômeno foi entendido bem antes, já no início do século: é só ler  “A riqueza na base da pirâmide” (Editora Bookman), escrito em 2004 pelo indiano C. K. Prahalad (morto em 2010), para perceber. Aqui no Brasil, programas de transferência de renda foram definindo, na última década,  o contorno da nova classe.

Ontem, o Instituto Data Popular, junto com a Serasa Experian, lançou uma pesquisa – “Faces da Classe Média” –  que reafirma o poder econômico melhorado dessas pessoas.  No ano passado, diz o estudo, eram 108 milhões com renda mensal per capita de R$ 320 a R$ 1.120. Mas, o que me chamou mais a atenção é que a pesquisa dividiu a tal classe média em quatro grupos: promissores, experientes, empreendedores e… batalhadores.

Por causa desse último grupo, que segundo a pesquisa é a maioria, eu me lembrei do livro “Os batalhadores brasileiros – Nova classe média ou nova classe trabalhadora?” (Ed. Humanitas) , de Jessé Souza, que li no ano passado. Com um texto bem simpático, o sociólogo formado na Universidade de Heidelberg (Alemanha)  e diretor do Centro de Estudos da Desigualdade da Universidade de Juiz de Fora torna-se um diferencial porque  propõe uma nova interpretação desta classe, baseada em pesquisa qualitativa. O livro foi editado em 2012 e já nomeava este segmento, “os batalhadores”, que veio à tona no estudo apresentado ontem.

Por conta disso, busquei entrevistar Jessé Souza. A conversa, mais corrida do que eu gostaria, teve que ser por telefone. Não, ele não tinha lido a notícia. Mas, sim, ele reforça a crítica que fez em seu livro: “Chamar essas pessoas de Classe Média é um absurdo, uma forma de leitura da realidade, como um todo, falseada.” Jessé diz em seu livro que acredita estarmos diante de um novo fenômeno social, o da formação não de uma nova classe média, mas de uma nova classe trabalhadora. E, assim, faz uma nova leitura sobre a pesquisa divulgada ontem:

—- Acho muito bom que as pessoas estejam começando a consumir numa escala que não faziam antes. Mas tem um erro aí, na hora de chamar nível de renda econômico de classe econômica. E por que isso é ruim? Porque reproduz um engano fundamental do mercado, que é liberal no sentido filosófico do termo mas percebe as pessoas como se não tivessem passado, família. Universaliza o sujeito.

Jessé acredita que esse “engano” (as aspas são minhas), de esclarecer o comportamento do cidadão pela mera faixa de renda, é manipulativo. Lembro a ele que a pesquisa diz que há mais pessoas da Classe C concentradas no Sudeste e que o Nordeste vem em segundo lugar. Coincidentemente, outra pesquisa publicada sexta-feira passada no “Valor Econômico”* mostra que esta região é a que apresenta maior potencial de crescimento impulsionada pelo agronegócio e expansão da indústria.

Nossa conversa envereda, então, pela particularização do indivíduo. E Jessé recorda que esteve no Nordeste para fazer seu estudo e traz de lá, ainda frescas na memória, experiências muito ricas de relações solidárias entre as pessoas.

—- Foi a região que teve as maiores mudanças no Brasil nos últimos anos em números absolutos, mas em números relativos o que aconteceu lá foi profundo e transformador. Vi várias experiências de solidariedade, de cooperativas produtivas, crédito amigo, ou seja, uns segurarem o crédito de outros. Solidariedade social onde menos se esperava, porque a região sempre foi alvo de muito preconceito social – disse ele.

Esses detalhes, ricos porque singulares, é que escapam na hora que se leva em conta apenas variáveis econômicas na hora de definir as classes.

—- Essa é a cegueira. Mas é difícil particularizar porque precisa de uma série de conhecimentos difíceis de obter. Mais fácil e mais rápido e eficaz para os propósitos dos estudos dedicados apenas a aumentar o consumo é participar dessa onda. O que os empresários não percebem é que se ele quer vender o produto precisa entender o consumidor para além dessas fórmulas simplificadoras – disse Jessé Souza.

O problema, diz o autor, é que os empresários também não parecem muito interessados em mudar esse sistema de pesquisa. Isso provoca a pasteurização dos produtos: “Quando a regra é essa concepção superficial de mundo é bem difícil porque existe um compartilhamento universal do mesmo pressuposto”, aposta ele, que esparrama sua lógica para o mundo da política, social:

— Um país com uma tremenda desigualdade, onde 1% fica com mais de 50% da riqueza percebe como principal questão a corrupção? Isso é loucura — disse.

A nova classe trabalhadora, sob a ótica da pesquisa realizada por Jessé que culminou no livro, tem algumas práticas que não são entendidas pelo mercado, que não se encaixam em nenhuma análise, das mais sofisticadas. “Os batalhadores não possuem o privilégio de terem vivido toda uma etapa importante da vida dividida entre brincadeira estudo. A necessidade do trabalho se impõe desde cedo. Esse fator é fundamental porque o aguilhão da necessidade de sobrevivência se impõe como fulcro da vida de toda essa classe de indivíduos. Como consequência, toda a vida posterior e todas as escolhas – a maior parte delas, na verdade, escolhas pré-escolhidas pela situação e pelo contexto – passam a receber a marca dessa necessidade primária e fundamental”.

São detalhes que escapam de visões que só entendem pessoas sob a ótica de seu nível de renda.  Para se obter é preciso lupa, estar perto, conversar muito.   Pergunto ao sociólogo se ele consegue imaginar, ainda na nossa civilização, a possibilidade de que a singularidade passe a ser considerada  para avaliar comportamentos e classes. Até porque, em algum momento, o próprio mercado vai precisar fazer contato com essas pessoas de forma diferente.

—-  Somos seres que interpretamos o mundo. E, se nós não tivermos a interpretação certa, a necessidade pode estar na nossa frente que nós não a enxergamos. O erro é a regra – disse ele.

Ou, como queria Gilles Deleuze* , “O mal, na sociedade contemporânea, é que nós não somos mais nem homem privado nem cidadão: o homem tornou-se “homo economicus”, isto é, “burguês”, animado pelo dinheiro”.

 *Estudo realizado pela Tendências Consultoria

* No livro “A Ilha Deserta” (Ed. Iluminuras)

 

Há mais escravidão nas cidades do que no campo, mostra estudo

seg, 17/02/14
por Amelia Gonzalez |

O canteiro do prédio de uma rua aqui da vizinhança está precisando, urgentemente,  de reparos. Todos os dias eu passo ali e penso nisso quando vejo os vergalhões de ferro enferrujados perigosamente expostos. Até que, em conversa com a moradora que é síndica, e também passeia com os cachorros como eu, descubro a origem do problema:

—- Não estamos conseguindo ninguém para fazer este tipo de serviço. Todos os trabalhadores que sabem realizar consertos estão na construção civil, que anda contratando muito por conta da Copa do Mundo, das Olimpíadas… – disse-me ela.

O dado é bom, não resta dúvida. Ou melhor… sim, resta uma dúvida:  com tanta oferta de mão de obra, como estarão as relações trabalhistas? Será que há respeito? Falo sobre horário, acomodações, benefícios, folgas…

Por coincidência, recebi uma newsletter da ONG Repórter Brasil dando conta de que, no ano passado, o número de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão na área urbana superou o da área rural.  De acordo com o estudo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização  que faz a coleta desses dados desde 2003,  53% das pessoas libertadas no ano passado trabalhavam nas cidades, e em 2012 esse percentual era de 29%. Um aumento grande. Como se vê, a oferta de empregos não traz só boas notícias.

E a construção civil, ainda segundo o estudo da CPT, foi o setor onde mais pessoas foram flagradas  trabalhando em péssimas condições: houve 866 resgatados, o que quer dizer 40% do total.  O setor  já havia liderado em 2012, mas com uma porcentagem bem menor: 23%. O levantamento tem como base dados da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego (Detrae/MTE) atualizados até 28 de janeiro de 2014.

Ao todo, foram libertados 2.192 trabalhadores com a ajuda do estado no ano passado. Ainda no setor urbano, as confecções ficaram em segundo lugar, de onde 122 pessoas foram resgatadas.

O site da ONG chama a atenção para o fato de que a lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego, cuja última atualização aconteceu em 30 de dezembro, também já dava conta desse crescimento de desrespeito às leis trabalhistas na área urbana. Há uma ligeira discrepância de números, mas o fato existe. E, a se considerar o estudo realizado pela CPT, São Paulo lidera o ranking de estados onde mais trabalhadores foram resgatados, seguido por Minas Gerais, Bahia e Pará.

Mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a lista suja funciona a partir de denúncias, que são apuradas pelos fiscais. Uma vez no cadastro, as pessoas e empresas da “lista suja” são impossibilitadas de receber financiamentos públicos e de diversos bancos privados, além de não conseguirem fazer negócios com as empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.

Desde que começou a fazer o levantamento até hoje, a CPT concluiu que quase dois terços dos 28.702 trabalhadores libertados tinham entre 18 e 34 anos (63,6%), 73,7% eram analfabetos (35,3%) ou haviam estudado até o 5º ano incompleto (38,4%) e 95,3% eram homens.

Há muitos outros dados que podem interessar aos leitores nos links que recomendei acima. A mim interessa, neste texto especificamente, refletir sobre a escravidão urbana.  Que pode ser desse jeito criminoso, casos que só mesmo a polícia pode resolver. Mas que também pode ter um outro viés, este bem mais sutil, que não transgride as leis constitucionais mas que pode desconstruir a saúde de um corpo no dia a dia. Vejam só:

Em maio de 2012, o Rio de Janeiro estava se aprontando para receber líderes do mundo todo para a Conferência Rio+20, em tese um momento que poderia consolidar um acordo internacional ou mesmo avançar muito nas discussões prometidas vinte anos antes, na Rio-92. Eu editava o Razão Social, no jornal O Globo e, junto com a minha equipe – Martha Neiva Moreira e Camila Nobrega – decidi fazer uma edição especial sobre pessoas. Era uma provocação, sim. Já que se pretendia levar a debate uma “economia verde”, decidimos entrevistar gente que poderia ou não ser impactada por esse novo atributo do sistema econômico.

Foi assim que saí pelas ruas a ouvir trabalhadores. Pessoas comuns, que nos atendem nas lanchonetes, lavanderias, nos ônibus, entregando coisas, retirando coisas, varrendo e limpando as ruas da cidade. Uma legião com carteiras de trabalho devidamente assinadas, com os benefícios em dia, que nas estatísticas engrossam os motivos para se comemorar, já que mostram que o emprego está em alta. Mas, nas conversas, só reiterei a minha sensação: no mundo das indústrias, dos serviços, do comércio, sobra pouco para o humano.

A falta de momentos de lazer, o tempo gasto para ir da casa para o trabalho, essas foram as maiores queixas entre os trabalhadores que ouvi. Entrevistei a trocadora Kelly Jesus Soares, por exemplo, nos minutos que a empresa de ônibus lhe concede para fazer um lanche entre uma viagem e outra (não há hora de almoço). Aos 30 anos, casada, ela mora em Campo Grande e precisa estar diariamente às 5h em Santo Cristo, na garagem da companhia. Para isso tem que acordar antes das 3h e dormir às 20h. Levando em conta que só consegue chegar em casa às 17h, tem no máximo três horas para fazer todo o trabalho doméstico e jantar.

Ginástica, jogging, pilates, são coisas que não estão ao alcance de Kelly, que define o cuidar de si como tratar dos cabelos, das unhas, fazer as sobrancelhas. Para Leandro Ferreira, que encontrei já cedinho, vestido no uniforme laranja da Comlurb, varrendo a Rua das Laranjeiras, o pouco tempo do dia que lhe sobra depois de acordar às 4h30m para pegar no batente às 6h, é para procurar na internet um curso técnico de Radiologia. Seu sonho é poder se especializar em algo, já que terminara o curso formal.

E quando realizam o sonho, a maioria dos trabalhadores pega carona em outro sonho, sempre algo que só lhe dá a promessa de ser feliz um dia. Comprar casa própria, dar boa educação para que o filho tenha uma vida melhor. Sempre uma busca de algo que não está em si, que não pode ser conseguido pelas próprias pernas e braços, mas com o auxílio das empresas. E mesmo aqueles que conseguem, quando amadurecem ainda assim se preocupam, como Nelson Laurindo, que encontrei subindo uma ladeira íngreme com um carrinho cheio de botijões de gás.

Aos 51 anos, Laurindo faz o mesmo serviço há 22 anos, carregando um peso danado ladeiras acima e abaixo. Como mora perto do trabalho, consegue acordar às 4h20 para pegar às 5h. Às 20h já está dormindo. Lazer é ver televisão diariamente e jogar uma pelada aos domingos.  Não tem sonhos, e a própria felicidade não está em si: tudo o que mais quer é ver a filha se formar, se casar, ter filhos, para curtir os netinhos ainda em vida.

Que as organizações da sociedade civil continuem a ajudar o estado a pôr na cadeia aqueles que escancaram e extrapolam o encarceramento não resignado. Porque o outro, que é mais sutil, só mesmo cada indivíduo pode dar conta. E é muito mais difícil de se libertar dele.

 

 

 

 

 



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