O virologista Fernando Spilki analisa a qualidade da água da Marina da Glória, no Rio, pelo programa da Universidade de São Paulo
Vírus ou bactérias? A poucos dias da celebração que marcará exatamente um ano do início das Olimpíadas do Rio, microorganismos ameaçadores à saúde disputam a liderança no ranking de preocupações dos atletas que virão à cidade para disputar as provas de iatismo e remo.

A polêmica envolvendo o estudo encomendado pela Associated Press (AP, uma das maiores agências de notícias do mundo) junto à Universidade Feevale, de Novo Hamburgo, para saber qual a situação das águas do Rio de Janeiro é inspiradora. Pouco importa se há imprecisão nos dados técnicos levantados. A poluição é fato, a omissão das autoridades também, e o risco de contaminação dos atletas - em maior ou menor grau - humilha a cidade anfitriã dos Jogos.   

Em quase 30 anos de profissão, já perdi a conta de quantas reportagens já fiz sobre o assunto. Já cobri inauguração de Estação de Tratamento de Esgoto (com direito a banda de música, placa e fitinha) sem esgoto por falta de tubulações ligando a estação às casas das pessoas. Já registramos inúmeras vezes a ruptura de envelhecidas tubulações de esgoto nos costões rochosos da Urca e da Avenida Niemeyer, precipitando o aparecimento de cascatas de merda.

Os temidos coliformes fecais têm sido encontrados em proporções avassaladoras nos chuveirinhos das praias, nas areias da orla, nas cascatinhas das Paineiras, e entre uma onda e outra disputada pelos surfistas no Leblon (próximo à Visconde de Albuquerque), em São Conrado (próximo à Rocinha) e na Barra (onde há três meses alguns dos principais surfistas do mundo, entre eles o maior campeão de todos os tempos, Kelly Slater,reclamaram do mau cheiro da água e relacionaram o odor forte aos sintomas típicos de intoxicação que derrubaram esses atletas em plena competição).

Não é possível passear pelo Rio de Janeiro sem uma involuntária degustação olfativa com diferentes gradações de odores fétidos de esgoto liberados pelos bueiros, valas, lagoas, rios, praias e alguns pontos da baía. Não importa em que lugar da cidade você esteja. O “futum” poderá lhe alcançar assim de repente, em áreas mais ou menos nobres, para seu desencanto.        

Enquanto improvisamos soluções (“ecobarco” para coletar lixo flutuante, Unidades de Tratamento de Rio/UTR para reduzir a carga de poluentes despejada impunemente nos corpos hídricos etc) os problemas persistem e precipitam as autoridades na direção do ridículo de torcer para que não chova durante os jogos, o que agravaria a situação sanitária das raias olímpicas. Mergulhar de roupa na Baía de Guanabara para “garantir”a não periculosidade das águas é desespero. Mas o pior é assumir publicamente o não cumprimento formal de promessas feitas por escrito, como a não redução em 80% do lançamento de poluentes na Baía.

O fato é que perdemos o direito de errar. O saneamento não é “básico” por acaso. Se 16 cidades da Região Metropolitana do Rio não tratam seus esgotos, que acabam sendo vertidos impunemente para a Baía de Guanabara, o que pretendemos fazer? Se não há recursos públicos suficientes para resolver o gigantesco passivo sanitário dessa região, quais as chances de organizar PPPs (Parcerias Públicos Privadas) ou licitar concessões para a iniciativa privada de forma inteligente, ética, respeitando a Lei e o interesse público?

Pior do que bactérias ou vírus são os mesmos políticos de sempre que prometem “mudar” essa situação e não cumprem o que prometem. É a “normose” - a doença da normalidade - que acomete parte da população descrente de tudo e de todos.

Tolerância zero para o “business as usual”. A emergência sanitária do Rio já não é apenas prioridade política. É a condição moral para vivermos com dignidade neste pedacinho especial do mundo.

Foto: O virologista Fernando Spilki analisa a qualidade da água da Marina da Glória, no Rio, pelo programa da Universidade de Feevale (Fernando Spilki/AP)