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  • O fim do autismo

    Ivan, filho de Alysson Muotri

    Nos últimos anos, o fator genético do autismo tem se consolidado como o maior agente causal do espectro. O sequenciamento genético de indivíduos autistas estão revelando quais os genes relacionados aos mais diversos tipos de autismos. A diversidade genética explica também o porquê desse espectro autista: nem todos os genes-alvo atuam da mesma forma no cérebro humano. Existem alterações genéticas que resultam num quadro clinico mais severo do que outras.

    Apesar da velocidade das analises genômicas, o conhecimento das vias moleculares afetadas por essas mutações genéticas ainda engatinha. Isso acontece porque desvendar como cada gene atua no cérebro humano requer um tempo maior, pois ainda não temos modelos ideais para isso. A revolução das células-tronco, permitindo a criação de minicérebros em laboratórios tem ajudado em muito esse tipo de investigação. Mas isso ainda é um trabalho longo, sistemático, caro e altamente especializado. Simplesmente não temos tantos cientistas vivos que possam dar conta de compreender como atuam os cerca de 20 mil genes que temos (menos de 1% do genoma humano). Mesmo assim, toda semana são publicados diversos artigos científicos contendo evidencias sobre a função de determinados genes e sua relação com os diversos sintomas do autismo.

    Porém, mesmo com o pouco que sabemos já é possível ajudar o tratamento em alguns casos. Quando fazemos o sequenciamento genético de um individuo autista o resultado pode vir de três formas:

    1-A informação genética não permite concluir qual o gene alterado. Isso acontece porque as mutações podem não estar presentes em nenhum dos genes do genoma, mas sim em regiões regulatórias (99% do genoma). Se o conhecimento da função dos genes anda devagar, nossa compreensão de como as regiões regulatórias estão envolvidas com o autismo, ainda engatinha. Mesmo assim, toda semana saem trabalhos científicos nessa área. Outra possibilidade é que nesse caso, o autismo não tenha origem genética, mas seria decorrente de algum fator ambiental (lesão cerebral, infecção fetal, etc).

    2-Descobrimos qual o gene afetado e já conhecemos o suficiente desse gene para propor alguma intervenção farmacológica. Isso acontece apenas numa minoria dos casos. Mas quando acontece, os resultados são impressionantes, testemunhamos crianças literalmente saindo do espectro, melhorando a qualidade de vida e tornando-se independentes. São ocorrências específicas, muitas vezes não reportados pela literatura cientifica pois são estudos de caso únicos, mas que são apresentados em congressos científicos todos os anos. A empolgação com esses casos faz com que as agências de fomento continuem a investir no sequenciamento genético de autistas. A iniciativa da Autism Speaks pretende concluir 10 mil genomas de indivíduos autistas nos próximos anos.

    3-Descobrimos qual o gene afetado, mas não conhecemos como ele funciona. Quase que a metade dos indivíduos autistas sequenciados hoje em dia acabam caindo nessa categoria. Sabe-se qual é o gene, mas não existe ainda conhecimento cientifico suficiente para propor algum tratamento, mesmo que experimental. Meu filho autista, Ivan, está nessa categoria. Cerca de um ano depois do sequenciamento, foram publicados dados genômicos de outros indivíduos com o mesmo gene afetado na Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e África. As famílias passam a se conectar, criam paginas em redes sociais e trocam experiências. Alguns grupos buscam formas de se arrecadar verbas para acelerar o conhecimento naquele gene especifico, na esperança de que o conhecimento das vias moleculares tragam possíveis medicamentos. Foi o que aconteceu com a síndrome de Rett (gene causador MECP2), com a síndrome de Cdkl5 (gene causador CDKL5), ou com a síndrome de Phelan-McDermid (gene causador SHANK3) entre outras. Conforme fica claro, a relação entre o gene causador e a condição clinica, vemos uma tendência dessas condições em se tornarem síndromes distintas do que chamamos simplesmente de autismo. Pode-se então personalizar o tratamento.

    Segundo essa lógica, o espectro autista estaria com os dias contados. O fim do autismo como o conhecemos hoje será decorrência dessa revolução genética e acessibilidade a esse conhecimento. Num futuro não muito longe, iremos olhar para o que acontece hoje e nos surpreender como fomos ingênuos em achar que todos os autistas eram iguais e tinham as mesmas necessidades.

  • 50 tons de azul

    O conceito “autismo” vem se modificando com os anos, é um alvo em movimento. Já não representa o mesmo que era há alguns anos. A abrangência do autismo serve a propósitos diferentes e até como ferramenta politica. Por exemplo, a democrata e candidata ao governo dos EUA, Hillary Clinton, lançou recentemente seu plano de ação para os autistas.

    Diferentemente do que acontecia no passado, o plano agora foca a oferta de serviços, principalmente para a população adulta, negligenciada por muito tempo, através de escolas e trabalhos que sejam mais acessíveis. Isso é ótimo, mas existe outra coisa que chama atenção. Não se fala abertamente em cura dos sintomas ou tratamento como se falava antes. Existe um contraste com planos propostos no passado, tanto pelos republicanos como democratas. É uma mudança radical de postura que não aconteceu com o mal de Parkinson, Alzheimer, câncer ou qualquer outra condição patológica humana. Para essas doenças, o tratamento ainda é o carro chefe.

    A atitude de Hillary é influenciada pelo movimento da neurodiversidade. O único problema com esse movimento é que ele pode ser polarizador, principalmente no que diz respeito a prioridade de verbas públicas. A questão da neurodiversidade tem sido defendida principalmente por diversos autistas menos severos, que não percebem o autismo como algo completamente negativo e argumentam que a sociedade se beneficiaria ao celebrar mais essa inclusão. Até ai tudo bem, estamos de acordo. Mas o espectro autista não é só formado por eles. O espectro abrange também os casos mais severos, muitos não verbais e incapazes de se manifestar, seja pela fala, seja pelo voto. Para esse outro polo autista, a independência do autismo é prioridade. A busca dessa independência não deve jamais ser confundida com uma atitude eugenista, como pregam alguns extremistas.

    Para ajudar os autistas mais severos, é preciso estudar a biologia do autismo e procurar formas de encontrar a cura dos sintomas, tratar ou reverter os efeitos mais corrosivos do autismo e buscar soluções para as co-morbidades do espectro, como problemas gastrointestinais ou risco de epilepsia, por exemplo. Para que isso aconteça, porém, é necessário um investimento significante e continuo em pesquisa fundamental para que se encontre perspectivas translacionais. Além disso, esse investimento deve cobrir os custos com ensaios clínicos, o que no autismo é sabidamente mais caro, justamente por causa da variabilidade clinica. Dá pra entender porque os mais radicais da neurodiversidade evitam falar em doença ou cura dos sintomas e levantam a bandeira da acessibilidade e inclusão a qualquer custo.

    Num mundo ideal, com fontes de fomento grandes o suficiente, seriam feitos investimentos nas duas frentes: na inclusão e serviços, assim como na pesquisa e cura do autismo. O autismo nos faz pensar em adversidades e diversidade ao mesmo tempo. A dicotomia do mundo digital, somado a intolerância humana, são ingredientes perigosos demais e com o potencial de agravar ainda mais o discurso polarizado e radical. Mas sou otimista. É muito provável que no futuro o autismo como definição não exista mais e seja lembrado apenas como um conceito nebuloso, numa era pré-génetica personalizada. A estratificação genética dos casos de autismo irá, com toda certeza, ajudar a todos no espectro.

  • Conversa com o Nicolas

    De 1 a 5% dos autistas conseguem uma trajetória clinica positiva, ou seja, são casos severos mas que com o tempo melhoram, alguns até saem do espectro. Sabemos que esse fenômeno acontece já faz tempo através de relatos clínicos e estudos científicos. A própria internet está cheia de exemplos de autistas não verbais que passaram a falar, casos severos que tornam-se indivíduos produtivos e independentes. O que não sabemos é  por que isso acontece com alguns, mas não com todos.

    Desde que me envolvi com o universo autista, procuro conhecer cada um deles que cruzam o meu caminho, sempre à procura de pistas que possam auxiliar a ciência a encontrar uma maneira de ajudar os menos favorecidos. Uma forma muito legal de fazer isso é dialogando com autistas que passaram a se comunicar, como a canadense Carly Fleischmann, que aprendeu a digitar, ou o japonês Naoki Higashida, autor do livro “The Reason I Jump”.

    Estive no Brasil recentemente para o pré-lançamento da Tismoo e tive o privilegio de conhecer o Nicolas Brito Sales, um adolescente autista que passou a ser verbal e hoje dá palestras pelo Brasil. O resultado desse encontro você acompanha no vídeo abaixo:



Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.