• Amar até a morte

    Uma das características mais bizarras de nossa espécie é a capacidade de amar tão intensamente sem perceber quando o amor torna-se destrutivo. Não me refiro necessariamente a relacionamentos humanos. Ao contrário, acho que os exemplos mais óbvios são quando amamos algo.

    Por exemplo, quando nos apaixonamos por alguma atividade, como Yoga ou algum outro tipo de prática, nos dedicamos tanto que acabamos por destruir exatamente o que nos atraiu. A Yoga deixa de ser aquela atividade física-espiritual e torna-se comercial (começamos a comprar roupas e acessórios supérfluos) ou competitiva (queremos fazer mais do que nosso próprio corpo suporta). Ao visitarmos um lugar bonito, uma praia deserta, passamos a ir ao local com mais frequência, levamos amigos, amigos dos amigos, e uma série de lixo. Assim como a Yoga perde sua essência, a praia deixa de ser única, maravilhosa. Destruímos aquilo que mais amamos.

    Muitas de nossas ações são contrabalanceadas por outras que, várias vezes, tentam compensar a presença humana. Uma dessas iniciativas é a Operation Migration, uma parceria entre EUA e Canadá. Essa associação tenta evitar a extinção de algumas espécies de pássaros, como um tipo gigante de grua selvagem, que teve sua população dramaticamente reduzida devido à caça ilegal e ocupação de seu habitat. A operação tem como objetivo a re-população desses pássaros com a criação em cativeiro e migração para áreas de futura colonização. Fazem isso de uma maneira pouco ortodoxa, eliminando ao máximo o contato humano com a espécie, afinal são espécies selvagens. Os envolvidos chegam a se fantasiar como pássaros e são proibidos de conversar durante os turnos de treinamento (sim, eles ensinam cada indivíduo a se tornar independente e migrar para as regiões-santuários, usando ultraleves mamães).

    O projeto multimilionário ficou famoso pelo método radical, conseguiu elevar o número de indivíduos da espécie de grua, foi tema de filme e teve milhares de aparições na mídia mundial. O sucesso do programa depende muito de como os pássaros se comportam após migrarem para as regiões de isolamento, onde devem começar a procriar novamente. Durante anos tudo caminhou bem e parecia que a humanidade havia conseguido finalmente salvar uma espécie animal da beira da extinção. Até que...

    A primeira geração de pássaros nascidos em seu novo habitat passou a ter um comportamento inesperado, estavam sendo atraídos para uma casa em um condomínio ao redor do lago no santuário. A razão era óbvia, a dona da casa mantinha diversos recipientes com sementes e outras comidas de pássaros espalhados pelo quintal. O medo dos ambientalistas era que os pássaros ficassem acostumados com a presença humana, colocando-os novamente em perigo. Logicamente, a disponibilidade de comida colocava em risco todo o esforço da operação. A dona da casa, por sua vez, recusou o pedido da organização para que retirasse os alimentadores do quintal.

    Segundo a mulher, a visita dos pássaros sempre foi um passatempo dela e do marido. Casados há mais de 50 anos, o marido fora diagnosticado com o mal de Alzheimer, fazendo com que sua memória fosse sendo apagada aos poucos e ele entrasse num estado vegetativo. A única ocasião em que o marido conseguia sair desse estado era quando os pássaros apareciam no quintal. Por um breve instante durantes as visitas, a mulher conseguia novamente interagir com ele, eram momentos de felicidade pura. Segundo ela, esses pássaros eram como se fossem um milagre divino.

    Para a mulher, não havia nada de errado em deixar os pássaros se alimentar ali. Ela era uma amante da natureza, sempre fora uma apreciadora das aves, e tinha todo interesse em mantê-los vivos e saudáveis. Essa mulher ama os pássaros, com a mesma intensidade que os próprios ambientalistas, porém de uma forma diferente. É interessante notar que a sobrevivência de toda uma espécie por simplesmente acabar por amor. A lição é válida para todas as iniciativas de conservação da vida selvagem que existem mundo afora, não temos mais como isolar as outras espécies da influência humana. A única forma de preservar é aprender a coexistir.

  • Induzindo orgasmos femininos

    Click, de Milo ManaraA história do estudo dos mecanismos sexuais humanos é repleta de observações acidentais que acabam por contribuir no tratamento das disfunções sexuais. O viagra, grande salvador da indústria farmacêutica, não surgiu originalmente como um tratamento para disfunção erétil, mas foi desenvolvido inicialmente para tratar hipertensão. O efeito colateral é que chamou a atenção e permitiu sua recolocação com outra finalidade.

    Com orgasmos femininos a história é semelhante. Talvez a melhor forma de tratar anorgasmia feminina tenha surgido em estudos de um anestesiologista e especialista em dor. O médico americano Stuart Meloy trabalhava na concepção de um aparelho implantado no paciente para controle de dor crônica nas costas, quando percebeu que sua invenção ajuda as mulheres a atingir o clímax. Isso foi há 15 anos e, desde então, ele tenta levar a "máquina de orgasmo" para o mercado.

    Para auxiliar os pacientes com a dor nas costas, Stuart implanta eletrodos nos canais da espinha, estimulando os nervos eletricamente e prevenindo a propagação dos sinais de dor. Devido à variabilidade individual, o implante tem que ser realizado com o paciente acordado, ajudando o médico a encontrar o lugar ideal para colocar os eletrodos. É o relato do que o paciente sente que permite e auxilia a posição ideal. Mas em diversos casos femininos, a dor passou a ser o de menos...

    Estima-se que cerca de 12 a 43% das mulheres sofra com algum tipo de disfunção sexual. A falta de precisão nessa incidência reflete o tabu e o silêncio sobre o assunto. Usando sua máquina de gerar orgasmos, o médico publicou resultados de um pequeno estudo clínico em 2006 (Neuromodulation, 9:34-40). Das mulheres que tinham anorgasmia secundária (que tiveram pelo menos um orgasmo na vida), 80% conseguiu voltar a ter orgasmos funcionais. Interessante notar que em mulheres com anorgasmia primária (aquelas que nunca tiveram orgasmos na vida) o aparelho não funcionou, reforçando a causa biológica.

    Existe pelo menos uma dúzia de tratamentos para disfunções sexuais masculinas, mas nenhum para mulheres. Algumas drogas, desenhadas especificamente para o público feminino, estão ainda em ensaios clínicos, mas nada pronto no mercado até o momento. Alguns tratamentos hormonais existem, mas não são específicos e, em geral, direcionados para o período pós-menopausa.

    Desde 2001 Stuart tenta comercializar sua invenção, mas tem encontrado resistência nas empresas médicas para testar o equipamento em larga escala. Parte do problema é que o equipamento é dividido em duas partes, os eletrodos que são implantados no paciente e um gerador externo, que funciona como um controle remoto, ligando e desligando os eletrodos. O preço desse gerador ainda é caro, cerca de U$ 25 mil dólares, e é uma das grandes barreiras na comercialização do produto. E mesmo que o produto passe as exigências do FDA (órgão regulamentador médico americano), irá encontrar oposição dos seguros-saúde, que enxergam o problema como meramente psicológico.

    Ainda vejo um outro problema para a falta de, huh...penetração (foi mal), nesse mercado. Imagina se o tal do controle remoto cair em mãos erradas. Quem conhece a história do CLICK, saga fenomenal do desenhista italiano Milo Manara, pode se surpreender em como a ficção pode nos alertar sobre a realidade.

    Foto: Divulgação

  • Congelando seu Mini-me

    Engenharia de tecidos e órgãos é setor que tem crescido no mundo e está em desenvolvimento em diversas universidadesFaz quase dez anos da publicação original da maior descoberta dos últimos tempos na medicina, a fenomenal reprogramação celular, por Shinya Yamanaka. O marco cientifico fez história e levou Shinya ao prêmio Nobel de medicina em 2012.

    A essa altura só não vê quem não quer. As famosas células-tronco de pluripotência induzida, ou células iPSC (do inglês) vieram pra ficar. Devido à facilidade da técnica, diversos bancos dessas células-tronco têm se proliferado exponencialmente, criados tanto pela iniciativa privada quanto por órgãos governamentais. O fenômeno é mundial e, apesar de ainda não ser um tipo de negócio com rendimentos projetados a curto prazo, o futuro é promissor. Compare com as viagens espaciais, o sonho astronômico vai deixar de estar restrito à alta sociedade e voos estarão no roteiro de férias da classe média. Investir em áreas de risco requer conhecimento do produto, espírito empreendedor, capital e (muita) paciência.

    Com o custo da reprogramação celular diminuindo consideravelmente, diversos investidores americanos estão prontos a produzir uma versão embrionária de seus consumidores pra uso futuro. Células iPS podem ser manipuladas e induzidas a se especializar em qualquer célula ou tecido do corpo humano. Do ponto de vista da medicina regenerativa, é o bicho! Com elas, seria possível reconstituir qualquer tecido danificado do corpo humano. De fato, o primeiro ensaio clínico com células iPS está sendo realizado no Japão, para doença macular degenerativa. Pacientes receberão células da retina criadas em laboratório, derivadas das iPS reprogramadas da sua própria pele. Essa tecnologia combinada com a bioengenharia tem também contribuído para a organogenese, ou cultura de órgãos inteiros em laboratório. A prova de princípio já foi mostrada para diversos outros órgãos humanos. O futuro é personalizado.

    Mas hoje em dia, o maior uso clínico dessas células ainda está restrito à triagem de drogas. Eu explico. Com essas células, é possível originar um infindável número de outras células com a mesma carga genética do indivíduo para teste de medicamentos. Encontrar o medicamento certo na dosagem correta leva tempo. Pergunte aos médicos e aos próprios pacientes que acabam servindo de cobaias a si mesmo. A mesma idéia já é aplicada no tratamento do câncer. Basta colocar uma biópsia do câncer numa placa de petri e testar qual droga reduz o seu crescimento, evitando-se testá-las diretamente no paciente. Funcionou com o Steve Jobs, vai funcionar pra você também. Agora imagina poder fazer isso com doenças mentais ou do coração, cujo acesso às células-alvo (no cérebro) não é tão simples assim e o tecido é precioso.

    Pensando nisso, diversos bancos hoje estão oferecendo células iPS, derivadas das mais diversas doenças, para companhias farmacêuticas. Afinal, é muito mais barato do que financiar ensaios clínicos. Além disso, o material é humano, algo muito apreciado por esse setor depois de anos e alguns bilhões de dólares investidos em pesquisas com animais sem resultado algum. Esses biorepositórios já existem e devem ter cerca de 200 linhagens celulares para uma doença específica. Estima-se que esse número suba para 10-20 mil linhagens em cinco anos. Muitas dessas células virão de pesquisadores que já trabalham com essa tecnologia.

    Agências de fomento americanas passaram a exigir que células iPS derivadas com suporte público, sejam depositadas em algum banco celular. Mas isso não inibe investidores privados, interessados em grupos ou populações humanas com interesse comercial. Os maiores bancos de células-tronco iPS estão nos EUA (RUDCR, NYSCF, CIRM, Coriell e CDI), Japão e Europa (European Bank for Induced Pluripotent Stem Cells, UK). As doenças com maiores números de células estocadas são o mal de Parkinson, Huntington e Esclerose Lateral Amiotrófica.

    Mas, e o Brasil? Será que valeria a pena entrar nessa no Brasil?

    Depende de como for feito. Academicamente já não somos competitivos nessa área, pois demoramos muito a perceber essa mudança de paradigma (enquanto a reprogramação celular explodia no resto do mundo, ainda estávamos discutindo a liberação de células-tronco embrionárias humanas para pesquisa...). Porém, o material genético do brasileiro é misturado e heterogêneo, o que é atraente para definir ou estratificar mercados farmacológicos. Isso sim seria um bom investimento caso o número de células iPS fossem representativos. E o teste para doenças? Diluir um potencial investimento em pequenos esforços seria jogar dinheiro fora. Jamais conseguiríamos competir com bancos nos EUA, com milhares de amostras para uma determinada doença. Ao meu ver, a janela de oportunidade seria investir em apenas um tipo de doença e nos destacar por isso. Por exemplo, há dois anos foi proposta a criação de um banco de células iPS derivadas de 200 autistas brasileiros e 100 controles para o Ministério da Casa Civil e Ministério da Saúde. Até hoje não houve resposta, o que demonstra um desinteresse nesse tipo de doença ou falta de percepção estratégica nessa área.

    Apesar do desânimo brasileiro, investidores e inovadores estrangeiros trabalham com uma margem de risco maior, pois o retorno financeiro e tecnológico seria transformador. No final, o mundo todo irá usufruir dessa tecnologia, obviamente com um custo maior do que os pioneiros na área.

    * Foto: Matt Dunham/AP

  • Excesso de medicamentos em crianças?

    Uma análise recente do CDC (Centers for Disease Control and Prevention) americano mostrou que mais de 10 mil crianças recebem medicamentos psicoestimulantes, como Ritalina. Estimativas sugerem que cerca de 8% das crianças americanas entre 6 e 17 anos foram medicadas por problemas comportamentais ou emocionais entre 2011 e 2012. O CDC descreve um aumento de 5 vezes quando comparamos crianças nas décadas de 80 e 90 com as de 2007-2010. Além disso, 1,3% das crianças tomam antidepressivos. Em crianças menores que 5 anos, o número de prescrições psicotrópicas chega a 1%.

    Esses números alarmantes chamaram a atenção da mídia, que tem reportado a situação como um surto de tratamento exagerado. A interpretação mais óbvia: crianças com problemas emocionais e comportamentais estão sendo medicadas por médicos que estão muito ocupados e sem tempo de oferecer terapias extremamente caras, a pedido de pais, também muito ocupados para manter um ambiente saudável em casa. De quebra, culpa-se a escola, que não oferece as condições e atividades ideais para essas crianças. Por fim, culpa-se a indústria farmacêutica, cujo interesse é vender mais remédios em busca de lucros cada vez maiores.

    Pode até parecer uma justificativa razoável de primeira, mas tem algo aí que me incomoda. Primeiro, culpar os pais é fácil, mas a realidade é que a maioria resiste em medicar os filhos e prefere tentar algo alternativo. O argumento das escolas também é fraco, pois a maior parte dessas crianças sendo medicadas está apenas começando a vida acadêmica. Quanto às indústrias farmacêuticas, o lucro delas tem, na verdade, diminuído nos últimos anos no mercado americano. Então de quem é a culpa? Talvez de ninguém.

    Uma visão alternativa seria pensar que não existe um surto de crianças medicadas sem necessidade e sim um aumento no número de crianças doentes. É lógico imaginar que se detectarmos um aumento no tratamento de diabetes em crianças, jamais culparíamos as famílias ou outros profissionais. Estaríamos a nos perguntar o porquê do aumento da diabetes em crianças. Entendo quem duvide que o número de crianças com problemas emocionais e comportamentais esteja realmente aumentando, com uma aceleração mais dramática nos últimos anos, afinal não temos marcadores claros pra isso. O diagnóstico nesse caso ainda é muito subjetivo. O que um pai ou médico considera um garoto superativo, outro pode considerá-lo enérgico e cheio de vitalidade. O contexto é importante.

    Mas, mesmo assim, esse argumento não elimina a chance de que doenças emocionais e comportamentais estejam realmente atingindo mais as crianças. Uma explicação plausível são os fatores ambientais que, em contato com uma predisposição ou susceptibilidade genética, favoreça o surgimento dos sintomas. Ainda essa semana, um trabalho da universidade de Rochester nos EUA, mostrou que a exposição à poluição no ar, produz alterações neurológicas significativas no cérebro de cobaias, semelhantes a aquelas que são encontradas em humanos com autismo e esquizofrenia. Se o aumento do número de crianças afetadas estiver realmente correto, é possível que muitos estejam sofrendo com a falta, não excesso, de medicamentos.

  • Naturalmente loiras

    Nascida Norma Jeane Mortenson em 1º de julho de 1926, em Los Angeles, Estados Unidos, Marilyn Monroe não conheceu o pai e conviveu pouco com a mãe, que tinha problemas psicológicos e deixou a filha num orfanatoDesvendado o segredo das loiras!

    A cor dos cabelos é, com certeza, um dos exemplos mais óbvios de variação fenotípica entre os humanos. O cabelo escuro é comumente encontrado em populações africanas e asiáticas, enquanto que o cabelo claro é mais comum no norte da Europa.

    Cabelos naturalmente loiros são encontrados apenas em uma pequena fração da população humana e já foram relacionados a aspectos tanto positivos quanto negativos durante a história da humanidade. Em algumas culturas africanas, por exemplo, o cabelo claro é frequentemente associado a anormalidades, bruxaria e sinal de promiscuidade. Em contraste, a cultura clássica grega sempre ressaltou cabelos claros como sinal de beleza e juventude, sendo imitada com auxilio de coloração artificial e perucas em culturas ocidentais antigas e contemporâneas.

    O interesse nas bases moleculares da coloração dos cabelos não é recente, mas um exercício de genética populacional de longa data. Durante anos, os geneticistas acreditavam que o pigmento dos cabelos era determinado por alterações genéticas distintas, em lugares diversos do genoma humano. Mas para surpresa dos cientistas, o mecanismo genético por trás dos cachos aloirados é muito mais simples do que isso.

    Num trabalho publicado essa semana na revista Nature Genetics (Guenther e colegas, 2014), um grupo de pesquisadores da universidade de Stanford na Califórnia mostrou que a coloração dos cabelos loiros é devida a uma única modificação genética num elemento regulatório, ou enhancer do inglês. Ou seja, nesse caso, a variação genética dos loiros naturais está localizada numa região distante do gene responsável pela pigmentação nos folículos capilares.

    Regiões regulatórias do genoma são sequências específicas do genoma responsáveis por modular a atividade de um determinado gene. Muitas dessas sequências estão localizadas fisicamente próximas ao gene alvo, o que torna fácil sua identificação. Outras regiões regulatórias, como no caso dos loiros, o gene fica localizado a uma distância muito grande de qualquer gene, o que chamamos de “desertos de genes”, dificultando estabelecer a relação entre o enhancer e o gene alvo.

    Para mostrar que essa região regulatória realmente controla a coloração dos cabelos, o grupo alterou geneticamente camundongos. Com isso, conseguiram provar que quando a variante loira era inserida no genoma de animais com pelos escuros, esses passavam a ter pelos mais claros. O enhancer conseguia reprimir a atividade de um gene que produz a pigmentação nos folículos pilosos, deixando os pelos aloirados. Interessante, essa alteração não afeta a coloração dos olhos ou pigmentação da pele, desmistificando a ideia de que a pressão seletiva desses fatores estivessem correlacionadas geneticamente.

    Como essas variações genéticas não têm efeito negativo nos indivíduos portadores, é possível que o estudo consiga evoluir para a criação de moduladores artificiais, simulando o efeito dessas regiões regulatórias. Não sei ao certo qual seria a grande vantagem de um produto assim além de uma validação acadêmica em humanos, mas tenho certeza que seria um cosmético de sucesso.

  • Detector de incesto

    Lena Headey como Cersei Lannister, em Game of thrones

    Se você é um dos milhões de fãs da série “Game of Thrones” (HBO), inspirado no romance fictício de George R. R. Martin, já deve ter percebido que o incesto é frequentemente utilizado como ferramenta estratégica para garantir direitos familiares aos tronos de cada reino. Na verdade, nada disso é novidade na vida real.

    A prática e os efeitos nocivos do incesto são amplamente conhecidos da realeza europeia. O último rei da dinastia dos Harbsburg, Charles II da Espanha, era tão fisicamente incapacitado que mal conseguia mastigar a própria comida. Obviamente, era infértil e não deixou descendentes. Atualmente, diversas sociedades humanas ainda apresentam um alto número de casamentos consanguíneos como parte de sua cultura e tem, como consequência, alta frequência de alterações genéticas recessivas.

    Hoje sabemos que um dos princípios evolutivos do sexo é gerar diversidade, embaralhando os genomas materno e paterno nas células dos filhos que irão nascer. Quanto mais distante geneticamente os pais, menores as chances do filho carregar alterações genéticas recessivas (mutações semelhantes vindas do pai e da mãe). Por isso, o incesto é algo raro na natureza, principalmente entre indivíduos de parentesco próximo que convivem em grupo. O incesto é algo a ser evitado evolutivamente, pois traz um custo genético alto (probabilidade de apresentar doenças e más-formações genéticas).

    O problema é tão sério que temos embutido em nosso cérebro um “detector de parentesco” que nos força a resistir e rejeitar qualquer tipo de relação incestuosa, evitando um desastre evolutivo. De acordo com um trabalho publicado em um artigo na revista "Nature" em 2007, humanos conseguem perceber o grau de parentesco de forma imediata, automática e inconsciente. Ao detectar um possível parentesco, nosso cérebro estimula duas reações: proteção e aversão sexual. Não importa o quanto o individuo é atraente para outras pessoas, ao perceber parentesco próximo, nosso cérebro imediatamente bloqueia qualquer pensamento libidinoso.

    Os testes foram feitos com 600 participantes que responderam a questionários sobre os respectivos irmãos biológicos ou não. Os resultados mostraram que aqueles que presenciaram as mães criarem os filhos, eram mais tendenciosos a ajudar o irmão, mais inclinados a achar o incesto moralmente inaceitável e com maior grau de nojo ao imaginar uma possível relação sexual entre irmãos. Quanto maior era a convivência na infância, maior era a aversão ao incesto e maior o nível de altruísmo entre irmãos. Aparentemente, cerca de 15 anos de convivência é o tempo necessário para que alguém considere outro individuo como irmão biológico.

    Como brilhantemente descrito pelos gregos na tragédia de Édipo, o sistema as vezes falha. Irmãos separados ao nascer não irão apresentar a mesma aversão sexual do que irmãos criados juntos. Defeitos no detector de incesto do cérebro também aparece em outros animais, incluindo jovens chimpanzés que copulam com as próprias mães. Esse comportamento é tolerado pela mãe como uma forma de terapia, principalmente quando os filhos estão assustados ou com medo. Relatos semelhantes já foram feitos em golfinhos, o que mostra que o sensor cerebral não é restrito aos primatas, mas aparentemente funciona melhor em espécies sociais que possuem uma convivência próxima.

    (Foto: Divulgação/HBO)

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

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No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.