A melhor imagem para ilustrar o impacto que as revoltas de 1968 exerceram na sociedade ocidental talvez seja a da bomba de nêutrons, que vaporiza materiais leves (como tecidos orgânicos) enquanto deixa as estruturas intactas.
Quem lê os manifestos da mais famosa daquelas insurreições urbanas, a de Paris, fica surpreso com a convicção de seus redatores de que faziam uma revolução social, como a bolchevique, da qual tomavam emprestado o jargão. Logo se revelaria que, além dos estudantes de humanidades, apenas uma franja radicalizada dos sindicatos operários aderia a objetivo tão drástico.
O movimento foi efêmero e inócuo, o capitalismo seguia sua marcha triunfal. A revolução de que maio de 1968 se tornou o signo máximo não afetava, porém, a estrutura da sociedade, mas as mentalidades e atitudes, que se tornavam mais livres e fluidas do que nunca antes. Nem tampouco se restringiu a um mês, estendendo-se por grande parte dos anos 1960 e 1970.
Mais do que o maio passageiro, o que imantou essa fecunda corrente de opinião, conhecida como contracultura, foi a bem-sucedida campanha pelo fim da intervenção norte-americana no Vietnã, que funcionava como abreviatura algébrica de várias causas que empolgavam o setor politizado da juventude.
Nesse sentido amplo, o espírito de 68 era moldado por pelo menos quatro vertentes: contra o capitalismo, contra a autoridade, pela paz mundial e pela libertação sexual. Como todo movimento de cunho romântico, comportava uma idealização da natureza e da vida em comunidades idílicas.
Seus êxitos foram bastante díspares em cada aspecto. A vida em comunidade praticada pelos hippies logo revelou de modo bem palpável como o inferno pode ser os outros e ficou reduzida a uma excentricidade, enquanto a idealização da natureza se encontra, ao contrário, em seu apogeu.
Mais inequívocas foram as vitórias do pacifismo e da liberdade sexual.
É a recusa crescente de jovens do mundo todo a se deixar matar na carnificina quase sempre inútil das guerras que explica que elas sejam mais raras, mais cirúrgicas e mais dependentes de máquinas. E, nestes 50 anos, as sociedades ocidentais vivem o período de mais ampla aceitação da autonomia e da diversidade sexuais de toda a história.
Mais fascinante ainda foi a rapidez com que desabou aquilo que Max Weber chamava de autoridade tradicional, lastreada no respeito aos costumes e às antigas gerações. Todas as formas de autoridade foram postas sob suspeita, exceto as chanceladas pela legitimidade técnica do “especialista”. Surgiu uma informalidade inédita no trato interpessoal.
Nos anos 60, aliás, a humanidade se desuniformizou. Nas roupas, nos cabelos, no design, na própria arquitetura irrompeu uma imensa variedade de opções; desde então a estética de cada década é um pastiche das anteriores.
Esse traço sempre foi utilizado para argumentar que o espírito de 68, sob as aparências de solapar o capitalismo, na verdade preparava o terreno para a multiplicação de oportunidades de consumo em escala antes impensável.
O raciocínio é plausível, mas o principal golpe sofrido pelas concepções alternativas ao capitalismo foi a dissolução quase espontânea dos experimentos coletivistas na China e na Rússia nos 20 anos seguintes, numa demonstração vigorosa de como funcionam mal as fórmulas que o socialismo prescreve para a economia.
Talvez o espírito de 68 tenha trazido, no entanto, uma contribuição menos evidente àquilo que o sociólogo canadense C. B. Macpherson, escrevendo em plena contracultura, qualificou de individualismo possessivo. Apesar das comunidades hippies, a mentalidade de 68 valorizava sobretudo a liberdade pessoal, a busca de caminhos, como psicanálise, meditação e drogas, que permitissem uma reconexão do eu consigo mesmo.
É a raiz da atitude predominante em nossos dias, que poderíamos chamar de hedonismo calculista. Hedonismo porque preza a maximização do prazer individual acima de tudo; calculista porque se empenha em estender o usufruto do prazer pela mais longa existência possível.
Nação, classe e etnia são fantasias poderosas, capazes de mobilizar multidões e mudar a história, mas são fantasias: o que existe afinal são indivíduos concretos, em comunicação precária uns com os outros, a viver a única vida de que jamais disporão.
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