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A literatura de Graciliano Ramos afirmou, no Brasil, a imagem crítica e austera
do criador das figuras emblemáticas de Fabiano e Paulo Honório. Cinquenta anos
depois da morte deste escritor e quase 70 desde seu último romance, a cada ano surgem novas teses e artigos sobre essas personalidades e sobre o escritor que lhes deu vida. Esse interesse contínuo se deve a muitos fatores, como a experiência narrativa original de cada um de seus livros, a densidade de suas personalidades, o conteúdo de seus enredos, a complexa psicologia das criaturas colocadas em cena e outras dimensões da obra graciliana. Esse fichamento utiliza seu último romance, Vidas Secas, para analisar como Graciliano Ramos interpretou o Brasil e o processo de modernização do país. A escolha dessa obra ficcional como material de análise, e não de suas memórias ou outros documentos primários, foi feita para refletir sobre como o autor incorporou sua visão do Brasil ao texto literário, sem transformá-lo em uma narrativa panfletária. Como romancista, Graciliano Ramos foi capaz de apresentar as questões mais voláteis de sua geração dentro da economia narrativa. Ou seja, concentrou-se em uma reflexão sobre a realidade brasileira. Mais precisamente, sobre a dualidade entre o sertão e a civilização costeira e moderna, e as utilizou para criar seu material artístico. Essa intersecção entre história e literatura orientou este artigo. A narrativa graciliana ocupa um lugar especial em que a literatura é magnificamente associada à crítica social oportuna. Graciliano converteu o conteúdo histórico em literatura pura e rigorosa.
Vidas Secas e sua escrita
Vidas Secas foi o quarto e último romance de Graciliano Ramos. Publicado
integralmente em 1939, o livro foi escrito inicialmente como contos independentes que foram publicados na imprensa durante 1938, logo após o escritor sair da prisão. Embora o tema não fosse muito original, o da seca, o tratamento dado a ele foi inteiramente novo, integrando, na estrutura narrativa, não apenas os problemas da seca, e seu espaço físico, mas também os dilemas de homens simples oprimidos com hostilidade pela natureza e pela sociedade. A independência dos capítulos não retiraria a estrutura circular do romance, que assim obedecia ao ciclo natural da seca e também da vida dos sertanejos que compõem a família em destaque. Graciliano se preocupou, neste romance, em acentuar o estigma da seca através da mais absoluta concisão das palavras. Entre seus romances, essa qualidade retrataria melhor a obsessão do escritor com a linguagem precisa e a estrutura narrativa como forma de expressão de uma realidade. A escrita seria tão concisa e dura quanto a história descrita, e o modo de vida das criaturas monossilábicas que passam pela obra. Diferentemente dos outros romances do escritor, Vida Secas era narrado em terceira pessoa e não seria focado em um protagonista absorvente como Graciliano habitualmente usava em suas outras obras. Este também seria o único livro em que o processo de escrita não seria enfaticamente discutido. Em seus três romances anteriores, cada um dos protagonistas que narravam as histórias questionava sua própria escrita e a função do escritor. Neste livro o tema emerge, mas ocupa uma posição secundária. A colocação do problema da linguagem em segundo plano não retiraria a importância do tema. É claro que o lugar ocupado por ele é deslocado pela questão levantada e pelo tipo de protagonista que guia a história. Nos outros contos de Ramos, os protagonistas eram homens de letras, intelectuais da província, narradores-personalidades que questionavam a própria palavra. Em Vida Seca, o protagonista vem de uma família de migrantes com apenas um domínio rudimentar da fala. Não obstante essas circunstâncias, o tema da escrita, e mais precisamente o do intelectual ou do homem letrado, surgiu na figura de Seu Tomás da bolandeira. Antes que essa questão e personagem secundária possam ser apresentadas, é preciso primeiro entender o tema central do romance. O escritor alagoano, que conhecia a realidade do sertão, escolheu trabalhar o problema da seca por meio de uma pequena família composta por um pai, Fabiano, sua esposa, Sinha Vitória, e seus dois filhos que não tinham nomes, além de uma cadela chamada Baleia. Do pequeno universo dessas pessoas, Graciliano trouxe luz às muitas formas de miséria vividas pelas famílias pobres que vagavam pelo sertão. aos conflitos e à opressão permanente, bem como ao fatalismo de uma visão marcada por incontáveis infortúnios. Fabiano e seus a vaqueiros que, escapando de outra seca, se instalaram em uma pequena fazenda abandonada quando as chuvas retornaram. O primeiro capítulo descreveria essa passagem pelo sertão. A chegada à fazenda, com a família, foi marcada pelo início das chuvas, em um paralelo inicial estabelecido entre o ciclo da natureza e a vida desses pequenos seres. Com as chuvas o mundo pareceria se encher novamente de esperança e Fabiano poderia se tornar um vaqueiro novamente. Mas a miséria marcou a existência e o destino dessa família. As chuvas, ao trazerem vida, também alimentavam os pensamentos do vaqueiro. Ele devia ser homem, ter a dignidade de um homem, viver como um homem. Mas eles confrontavam mais do que apenas a natureza. Quando as chuvas voltaram, o dono da fazenda também voltou e Fabiano voltou a ser um animal humilhado, acostumado, por infortúnio, a obedecer. Sua permanência na fazenda como vaqueiro foi aceita como base de um acordo dissimulado: Fabiano recebeu na divisão um quarto dos bezerros e um terço dos cabritos. Mas como não tinha terra própria e só podia plantar um punhado de feijão e milho nos bebedouros secos, comprava comida no mercado, vendia os animais, não marcava um bezerro nem a orelha de um cabrito. Pouco a pouco a marca do fazendeiro queimou os animais de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo se endividou. Quando as contas foram feitas, ele estava devendo, e na hora do pagamento só conseguiu uma ninharia. Fabiano estava encurralado entre a seca, o roubo e a exploração a que era submetido pelo dono da fazenda. Desamparado, ele se submeteu à situação e pediu desculpas por reclamar ao perceber a diferença entre o que deveria receber e o que estava sendo pago. A humilhação e o abandono a que foi relegado pela sociedade, que via com desprezo aquele pobre homem quase transformado em uma fera, era até mesmo apoiada pelo Estado. Ramos usa o personagem de um “soldado amarelo” como uma alusão alegórica à forma como o Estado se faz presente nas regiões do sertão. e particularmente para pessoas como Fabiano. A primeira aparição do soldado amarelo está no capítulo “Cadeia”, o terceiro do livro. Não é sem razão que a personalidade é subordinada ao episódio que dá nome ao capítulo. Esta seria a única maneira pela qual o Estado está presente para um cidadão como Fabiano e sua família, naquelas terras abandonadas e inteiramente desconhecidas. O governo e a lei só parecem demonstrar o lugar insignificante em que se encontram homens como Fabiano. Outro personagem que surge de forma secundária, reforçando, no entanto, a ideia de um poder arbitrário que se exerce sobre ou contra Fabiano, foi o do cobrador de impostos municipal. Ele aparece no capítulo 10. quando Fabiano vai à casa de seus patrões na cidade para receber o pagamento por seus serviços. Na memória de Fabiano, o cobrador é associado ao momento em que ele reclamou de ter sido enganado na hora do pagamento, e à humilhação que sofreu por ter a impertinência de discordar de seu patrão. Lembrou-se do que aconteceu anos atrás, antes da seca, lá longe. Em um dia difícil teve que recorrer ao porco magro que não engordava no chiqueiro, que estava reservado para as despesas de Natal: ele o mataria antes do tempo e o venderia na cidade. Mas o cobrador municipal veio com a conta e estragou seu plano, Fabiano fingiu não entender: para não entender nada, foi ríspido. Como o outro explicou que ao vender o porco teria que pagar impostos, tentou convencê-lo de que não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente se irritou, o insultou, e Fabiano se encolheu. Muito bem. Deus os livraria da situação com o governo. Decidiu que poderia ficar com suas coisas. Não entendia de impostos: Ele supôs que a cevada era sua. Agora, se a cidade quisesse uma parte dela, ele estava acabado. Ele iria para casa e comeria a carne. Ele poderia comer a carne? Poderia ou não? Esses são os dois únicos momentos em que Fabiano entrou em contato com o governo. Preso a um mundo e a uma lógica que não entendia, ele, no entanto, sentiu seus efeitos perversos. Fabiano e sua família foram privados de tudo, até mesmo dos próprios meios de defesa, e sentiram-se forçados a ceder: os campos secos, o patrão, os soldados e os cobradores de impostos municipais. Tudo estava contra ele. Preso a esse duplo círculo perverso: o da natureza e o da sociedade, Fabiano se retrairia para uma condição animal. Deve ser duro, ter casco de tatu, senão estaria fadado ao desespero. A zoomorfização conduzida pelo escritor alagoano expressava claramente a desumanização a que estavam submetidos esses seres. A aproximação permanente que o protagonista fazia entre o estado de ser homem ou animal e a linguagem muito bruta, reduzida quase que inteiramente a grunhidos, era, certamente, uma fórmula das mais verdadeiras para representar a realidade do mundo sertanejo. O livro também se destaca pela apresentação inusitada de dois personagens centrais sem nomes. Eles são designados simplesmente como a criança mais nova e a mais velha. As duas personalidades descritas em cada um dos capítulos com esses títulos refletem o grau de desumanização no cotidiano desses indivíduos. Com esses mecanismos, Graciliano Ramos conseguiu o efeito desejado, sem cair no exagero da explicação. É a própria estrutura do romance que melhor marca os problemas levantados. O silêncio era justamente o elemento mais expressivo do livro. Todos os seres seriam igualados como animais em uma vida repetida desde o tempo do avô e dos pais, determinada pela natureza e por um poder que pairava como um demiurgo acima de tudo, determinando todos os destinos. O patrão, o publicano ou o soldado eram todos poderes desconhecidos numa sociedade injusta que condenava o sertanejo a morrer ou a ser forte como um animal. A brutalização que a realidade impôs a esses seres, sua desumanização, foi apresentada por meio de outra linguagem. Ao nomear as coisas, o homem essencialmente se apropria da realidade e lhe dá sentido. A linguagem, dessa forma, distingue os humanos dos demais seres vivos. Em Vidas Secas, essa questão se apresenta de várias formas. Ela surge na zoomorfização dos personagens e na aproximação polarizada entre animal-homem e homem-animal. Fabiano era quase um animal, sentia-se forte como um animal, mas também humilhado como um animal. A ideia e as imagens são quase sempre duplas: Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Seus pés duros quebravam os espinhos e não sentiam o calor da terra. Montado, ele se tornava um com o cavalo, grudado a ele. Falava uma língua cantada, monossilábica e gutural que este companheiro entendia. A pé, não durava muito. Balançava de um lado para o outro, pernas arqueadas, tortas e feias. Às vezes, em suas relações com as pessoas, usava a mesma linguagem com que se dirigia aos brutos, exclamações, onomatopeias. Na verdade, falava pouco. Admirava as palavras longas e difíceis das pessoas da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que eram inúteis e perigosas. Nota-se como nessa passagem há uma duplicidade de significados. Eles podem ser positivos e negativos. Ser um animal também era ser forte, resistir ao ambiente físico intemperante, à seca, às dificuldades de sobrevivência em um clima tão seco. Mas ser um animal era no sentido negativo, não ser um homem, com todos os seus atributos de dignidade. A própria dificuldade da linguagem, ou a completa falta de conhecimento dela, também implicava uma falta de conhecimento de sua realidade. O domínio da linguagem era o domínio do mundo, da realidade, de uma compreensão de seus mecanismos. Conhecer as palavras, permitia entender por que a realidade era do jeito que era, por isso ele afirmava que era perigosa. O sentido positivo de ser um animal era justamente o de conseguir resistir ao ambiente. Um homem não conseguia resistir. Seu Tomás da bolandeira era o exemplo que Fabiano conheceria desse homem e por ser homem, não conseguiu sobreviver à seca: Lembrou-se do Seu Tomás da boleadeira. Dos homens do sertão o mais castigado foi o Seu Tomás da boleadeira. Por quê? Só se fosse porque lia demais. Fabiano, dizia sempre: ‘Seu Tomás, você não tem controle. Por que tanto papel? Quando chegar a hora do acerto de contas, Seu Tomás você vai cair igual aos outros’. Pois veio a seca, e o pobre velho, tão bom e lido, perdeu tudo, andou por aí, manco. Talvez já tivesse morrido. Uma pessoa como ele não sobreviveria a um verão rigoroso. Mas Fabiano era também um animal humilhado, que vivia se arrastando daqui para ali, correndo de canto a canto, escapando como um animal, a quem só atiravam ossos. O zoomorfismo de Graciliano funcionava nos dois sentidos. O único animal que acompanhava Fabiano era um cão quase humano, que quase falava, e que, diferentemente dos filhos, tinha nome. A centralidade da questão da desumanização do homem, que se realizava nas duras condições do sertão. podia ser compreendida por meio dessa polaridade do tema homem-animal, animal- homem. O capítulo “Baleia” foi o primeiro preparado por Graciliano, quando o escreveu como conto para publicar em jornais. Os demais foram desenvolvidos a partir deste. Este capítulo, portanto, contém todos os temas que mais tarde seriam expostos detalhadamente. A importância dessa personalidade-animal podia ser encontrada em sua presença constante ao longo do romance. Dos treze capítulos que compõem a história da família, o escritor mencionou a cadela Baleia nas frases finais de nove deles. O ser-animal estava relacionado à natureza arcaica da linguagem de Fabiano e de sua família. As palavras poderiam fazê-lo homem, pois lhe permitiriam compreender sua realidade, entender a exploração a que estava submetido e contestá-la, ou seja, elevar-se acima da condição de animal. Fabiano entendia que essa realidade poderia ser melhorada se ele tivesse mais do que apenas os rudimentos da linguagem. Ele pensava na educação de seus filhos. Nos sonhos de Fabiano e Sinha Vitória, um dia os meninos aprenderiam as “coisas difíceis e necessárias”. Mas isso só aconteceria quando as secas acabassem. A visão de mundo que Fabiano conhecia era marcada pelo fatalismo total, fruto de uma experiência que se repetia por gerações. Ele só conhecia uma realidade, a mesma de seus antepassados, e ela era tão cíclica quanto a natureza, a seca e as chuvas. A própria organização do livro obedeceria a esse ciclo que começava no capítulo “Mudança”, passava pelo “Inverno” e terminava na “Fuga”. Ou seja, começava na seca, passava pelas chuvas e retornava à seca para concluir. Nota-se que o capítulo “Inverno” seria justamente o ponto central de convergência, precedido e seguido por seis capítulos: A vida da família obedeceria ao mesmo curso, escapando de uma seca anterior e acabando tendo que sair mais uma vez, para escapar da seca mais uma vez. O romance contaria esse momento essencial de parada e descanso, marcado pelas chuvas, da mesma forma que “Inverno” foi o capítulo central. Um conceito a-histórico de tempo estaria impresso na perspectiva de Fabiano, causa e efeito do próprio processo de sua animalização. Em nenhum momento Fabiano conseguiu entender o lugar que ocupava na sociedade, mas entendeu o lugar que ocupava na natureza. Tudo parece natural para Fabiano, tudo obedece a um processo cíclico indeterminado, semelhante aos processos da natureza. Na verdade, seria a natureza que determinaria suas vidas. Tanto sua mudança quanto sua fuga foram impostas por eventos climáticos. A vida na fazenda também era consequência de um processo natural marcado pelas chuvas. O ciclo monótono de suas vidas seguia a circularidade do tempo no sertão. o retorno contínuo dos mesmos eventos naturais - seca-chuva-seca. Da mesma forma, a vida para Fabiano estava presa nesse processo eterno. Tudo lhe parecia natural e ele aceitava seu destino passivamente. No capítulo dedicado a Fabiano, quando ele chega à fazenda e ali se instala, desenvolve-se um monólogo interior do protagonista. Podem ser extraídos vários trechos que lançam luz sobre seu fatalismo profundamente arraigado. Nesse capítulo, Fabiano, recém-chegado e com a promessa de chuva, busca refletir sobre sua condição de vaqueiro e sertanejo fugindo da seca. O leitor toma consciência não apenas de sua condição diante das dificuldades da natureza, já apresentadas no primeiro e no anterior capítulo, mas também de sua condição social como peão de fazenda. Nesse monólogo interior, quatro trechos, apresentados a seguir, revelam o determinismo de Fabiano. Com a cabeça inclinada, a espinha curvada, ele balançava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro. o pai do vaqueiro. o avô e outros ancestrais mais velhos estavam acostumados a percorrer a trilha, empurrando o mato para trás com as mãos. As crianças já começaram a reproduzir esse gesto herdado. Seu destino era vagar pelo mundo, divagar sem rumo daqui para lá, como um judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. O gado aumentou, o trabalho correu bem, mas o patrão maltratava o vaqueiro. Isso era natural. Maltratava porque podia. Se a seca chegasse, não haveria plantas verdes. Ele estremeceu. Chegaria, naturalmente. Sempre fora assim, desde que ele conseguia se lembrar. E antes que ele conseguisse se lembrar, desde antes de ele nascer, continuou assim, anos bons misturados com anos ruins. Para Fabiano, seus gestos e reações humanas ou a exploração do patrão, como a seca ou a chuva, eram todos processos naturais e necessários que obedeciam a uma ordem superior e indecifrável. Só se repetiam os destinos seculares de homens como ele e seu pai e avô. Como seriam as vidas de seus filhos, todos nascidos para serem vaqueiros e trabalhar em fazendas alheias, ou para vagar pelo sertão quando chegasse a seca. Esse destino ficaria marcado por gerações. O menino mais novo, em seus sonhos, admirava Fabiano e o imitava. Sonhava em ser grande como o pai e montar no lombo de um cavalo feroz.
A modernidade brasileira em Graciliano Ramos
Este romance de Graciliano Ramos apresenta um conceito geral do Brasil que
é interessante destacar aqui. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o escritor era um homem com claras convicções políticas que tinha um propósito para sua literatura. Quais eram precisamente essas propostas? Graciliano foi um homem e, sobretudo, um escritor que pertenceu a uma geração marcada pelo engajamento. Não havia dúvidas de que sua literatura não falava apenas de uma região, mas, sobretudo, de uma crítica social ao Brasil. A maestria de Graciliano foi a forma como ele realizou esse propósito, mantendo, ao mesmo tempo, uma qualidade literária inigualável. Vários artigos de Ramos deixam claras suas intenções, assim como a visão que ele tinha da sociedade brasileira. Antes de se tornar um romancista conhecido no Brasil e no exterior durante as décadas de 1930 e 1940, o escritor alagoano publicaria artigos nos quais analisava a cultura política brasileira e o tipo de sociedade que se desenvolvia, particularmente no Nordeste. Em relatórios escritos em 1929-1930, quando era prefeito de Palmeira dos Índios, ele mencionava suas dificuldades, quase todas relacionadas ao poder dos chefes locais. Com essas referências, ficavam claras as preocupações de Graciliano Ramos, assim como sua visão da esfera governamental, suas relações com o poder privado, assim como as críticas que ele tinha ao tipo de sociedade que no Nordeste parecia bem definido. Nos artigos escritos em 1921, Graciliano falava do feudalismo, do autoritarismo e das relações de dependência e favores que faziam dos empregos públicos uma moeda de troca muito valorizada. Por sua vez, os coronéis (como eram conhecidos os proprietários de terras) demonstravam poderosa influência junto aos políticos dos mais altos escalões. Nessa época inicial, o escritor alagoano já se mostrava um crítico familiarizado com a rede desse jogo de influência e com suas consequências para o interior do país. Seus relatórios como prefeito também apresentam a visão do escritor sobre o Brasil. Ele escreveu sobre os obstáculos para eliminar os inúmeros parasitas inúteis que atrapalhavam a administração municipal; dos chefes locais que controlavam o governo municipal; ao desvio de fundos; os altos preços e a corrupção que eram conduzidos por meio de contratos municipais e fornecedores de energia elétrica, a extorsão, etc. Como prefeito, Graciliano teve dificuldade em acabar com esse favoritismo. Sua atitude manifesta um conceito de serviço público que não era comum na região naquela época, indicado por tremenda integridade e uma noção do bem público distinta do interesse próprio e da manipulação de influência que negociava empregos e posições na máquina do Estado. Nessa fase de sua vida, antes de começar a escrever romances, ele revelou, por meio de suas ações à frente do governo municipal ou dos demais cargos públicos que ocupou, uma inconformidade radical com os hábitos e a organização política da sociedade brasileira. Seus ideais e raciocínios diante dos problemas que enfrentava iam além do atraso local e das práticas rotineiras de favoritismo. Esses seriam temas frequentes quando ele começasse a escrever ficção. No entanto, a produção literária de Graciliano Ramos se destacou não apenas por seu conteúdo social e crítica à injustiça e à pobreza predominantes no Nordeste, mas também por sua pesquisa e análise das contradições da sociedade brasileira. Na verdade, esses dois temas faziam parte de um único foco: o primeiro era consequência do segundo, resultado do processo de desenvolvimento do Brasil. Esse enfoque se repetiu diversas vezes em sua obra. Ao se esforçar para criar uma literatura que representasse o Nordeste e particularmente o sertão. Graciliano enfatizava a ideia de um Brasil real em oposição a outro moderno e caricato. Para esse escritor alagoano, o Brasil moderno não passava de uma imitação mal organizada dos países europeus. A questão era apresentada de várias maneiras. A insistência na boa literatura seria uma das fórmulas preferidas do escritor, pois com ela debatia a presença marcante no país, e em particular no interior, de uma cultura culta artificial que via no culto às letras uma moda obrigatória para aqueles que pretendiam permanecer no topo da pirâmide social. Personagens representativos dessa tendência estavam presentes em Caetés. São Bernardo. Angústia e Vidas Secas, embora, neste último, de forma secundária, através da personalidade de Seu Tomás da bolandeira. As cenas que levantam o problema da contradição da modernidade brasileira são enfáticas. A análise dos artigos que escreveu na juventude revela a presença explícita dessa questão, notáveis pela linguagem contundente. As expressões “macaquear” e “papagaiar” eram comuns à sua escrita, retratando a desorganização da sociedade brasileira, que se esforçava muito para associar a realidade nacional a práticas e discursos completamente artificiais e estranhos, principalmente ao universo local. As palavras papagaiar e macaquear referem-se a imitar ou falar sem associação ou sentido. No caso da literatura de Graciliano, referem-se à distância entre o discurso e a realidade discutida. Essa distância, assim como a imitação, reaparece em suas crônicas, contos e memórias. A insistência no tema não deixa dúvidas sobre o pensamento do escritor. Ramos questionava não apenas o destino de seus personagens, mas inequivocamente o destino do país. Sua literatura, comprometida em ser um estudo da realidade e um método para compreendê-la, esforçava-se por conduzir, a cada experiência literária, um estudo da modernidade brasileira e suas consequências mais graves e profundas para a vida cotidiana. Os romances de Ramos transportavam para o interior da personagem o drama de uma existência vivida entre a humilhação e a miséria, assim como os mecanismos de sobrevivência de uma sociedade dividida entre o horror do progresso e a vergonha do atraso; Falando particularmente de uma região onde a pobreza e o atraso eram uma norma constante, Graciliano destacaria a maneira como esse progresso e modernidade se sobrepunham a uma realidade radicalmente construída e se edificavam sobre os alicerces do latifúndio e da escravidão. É importante lembrar que o escritor falava justamente da década de 1930, quando se intensificava a modernização do país. Graciliano observava a marcha dos acontecimentos com um olhar inquisitivo radical e desconfiado. Sua obra “descascava os fatos”, para examiná-los com cuidado e procurar sentido neles. Seu objetivo como escritor era interpretar o mundo que conhecia e chamar a atenção para sua incoerência, assim como fez Paulo Honório, personagem de São Bernardo. que por meio de uma tentativa de escrita, buscava entender sua vida. Era essa a compreensão que Graciliano tinha da escrita. Era uma forma de conhecer e analisar a realidade do homem. A intransigência que marcaria sua atividade política como prefeito e diretor de educação pública seria a mesma que marcaria sua escrita e a visão que apresentava por meio dela. A aridez e a intransigência faziam parte de um comportamento e de uma forma de perceber a realidade que confrontaria a chamada cultura da malandragem. A herança colonial, ao estigmatizar a estrutura social brasileira com a escravidão, criou um espaço de interação entre os não escravos e os grandes proprietários de terras, o que se concretizava por meio de inúmeras mediações e subterfúgios. Sustentada na base de favores em suas diversas configurações, esse tipo de relação social tinha como uma de suas principais expressões um modo de ser e agir em sociedade, marcado por um padrão pessoal, que buscava essencialmente o ganho e o benefício individual, evitando a lei ou as regras impessoais. Graciliano Ramos resistiria criticamente à cultura da malandragem. A aridez intensamente refletida em sua escrita era, na verdade, a expressão dessa intransigência para com as regras aceitas. Quando foi prefeito e diretor da educação pública, ele se posicionou rigorosamente diante de uma sociedade completamente acostumada às práticas de favores. É interessante notar que a manifestação mais perversa do favor foi destacada em Vidas Secas. assim como em São Bernardo. Angústia ou Caetés. O soldado amarelo faria valer o poder da lei contra os mais fracos e desprotegidos. Em São Bernardo a justiça sempre se mantinha em favor do fazendeiro e protagonista Paulo Honório. Em Angústia e Caetés seria o elemento de dependência expresso pelo pistoleiro de aluguel, que definiria o curso da vida de cada um dos personagens que circulavam pelo cenário dos dois romances. A perspectiva sobre o Brasil sempre se caracterizou por uma intransigência expressa pela ironia. Uma compreensão das ideias que norteiam o escritor pode ser obtida também por meio das crônicas que escreveu para a revista Cultura Política. publicada pela administração do Estado Novo, ou por meio de seu livro infantil Pequena História da República. Esses textos, escritos na década de 1940, revelam com grande força a perspectiva crítica e acrimoniosa do escritor de Vidas Secas caca Mesmo colaborando com uma revista distribuída pelo governo do Estado Novo, Graciliano manteria sua autonomia, ainda que de forma menos explícita. A pergunta, que país é este? era repetidamente levantada em uma situação persistente, embora crua, que indicava uma preocupação atual, arrastando consigo contradição e absurdo. Para Graciliano não era uma apresentação orgulhosa do sertão. Sua visão emagrecida oscila entre a melancolia e um pessimismo rude, recusando-se a romantizar o sertanejo. Apontava para o atraso e a pobreza dos homens que viviam como animais. A crítica ao moderno, que parecia uma busca obstinada das raízes nacionais no sertão. nada mais era do que uma crítica à artificialidade do projeto modernizador que o Brasil conhecia desde o início do século XX. Essa pequena República “fundamentalmente carnavalesca”, como ele a descreveu em uma das crônicas escritas aos 29 anos, quando ainda estava em Palmeira dos Índios, “imitava, adaptava e reproduzia” as fórmulas modernas. Os escritos de Graciliano foram consistentemente marcados por uma crítica ácida e insistente, atenta às transformações sociais e econômicas que norteavam o país, e pelas quais o Nordeste se movia a passos lentos. O tema dessa modernização desafinada em seus romances é expresso pela composição de seus personagens que exploram o homem comum, aniquilado pelo meio, forçado a viver como e se tornar semelhante aos animais. Insidiosamente, o tema se torna mais denso e profundamente esculpido em Vidas Secas. A inserção social da personalidade compõe a trama em alto relevo. Luís da Silva, Paulo Honório e Fabiano têm seus destinos aprisionados. Graciliano leva essa inserção ao limite, explorando seus efeitos com força e consistência interna, sem sacrificar a matéria estética. O infernal, o fatalismo derrotaria toda possibilidade de ressurreição. Em sua literatura está presente o Brasil residual formado por um mundo que não estava incluído no projeto moderno. Um mundo que nem sequer poderia ser alternativa ou oposição ao outro. A visão desencantada do escritor revelaria uma empatia melancólica por aqueles seres bárbaros que eram meros espectadores da marcha do progresso quando não eram derrotados por ele. A alegoria da contradição entre este Brasil moderno e o sertão. ou o atraso, é encontrada em claros detalhes em Vidas Secas. Nesta sua última obra de ficção, o capítulo “A festa”, revela ao leitor as fraturas que separam esses dois mundos e a imposição desproporcional e artificial do moderno. Fabiano, Sinha Vitória e os meninos vão a uma festa de Natal na cidade. Suas roupas e sapatos são apertados e mal ajustados. Essas criaturas acostumadas a andar descalças e quase nuas compõem a própria caricatura do projeto de modernidade brasileira. Suas roupas, como as dos citadinos, eram “curtas, justas e cheias de remendos”. No entanto, era preciso usá-las a todo custo para parecer civilizado, mesmo que não passasse de um arranjo desconfortável. Entre o último romance, Vidas Secas. e a escrita de suas memórias, Graciliano escreveu Pequena História da República e crônicas para a revista Cultura Política nas quais a desordem se expressava com irreverência. Em sua história da República, o deslocamento das situações e personalidades, bem como da linguagem, relataria as características do país e seus traços distintivos, estabelecendo o absurdo, o díspar e a contradição. Rigorosamente adepto da ironia, ele se expressava não apenas com antífrase, mas em tom sombrio e impassível. Isso dava um grau de artificialidade a fatos ou ideias cuja importância exigia termos mais fortes. Nas crônicas, a sobriedade magra e amarga convertia o discurso panegírico do governo do Estado Novo, em um caráter desafinado. Por fim, a análise e o registro desse tempo, o entrelaçamento do contexto histórico e da experiência de Graciliano, revelaram que esse exercício de abuso e provocação era o método talentoso para a sobrevivência do autor. Seus vínculos com um órgão governamental do Estado Novo, como era a revista Cultura Política. não poderiam ser realizados sem aguçar o senso de contradição e absurdo explorado na Pequena História da República. Por isso, foi decisivo que ele usasse tons irreverentes de ironia e deboche para expressar uma rejeição ao projeto arrogante e acrítico do governo do Estado Novo. Graciliano Ramos chamava a atenção para o quanto a realidade nacional era distinta do modelo que ela insistia em aplicar. A vestimenta moderna nunca pareceu se adaptar ao corpo desarticulado do país. A fantasmagoria de Angústia revelou-se uma alegoria da realidade fatasmagórica do Brasil. Note-se que o escritor buscava o elemento brasileiro, o homem, quase transformado em animal, perseguido pelas agruras extraordinárias da natureza e de uma sociedade injusta. Era preciso circunscrever todo o universo e as circunstâncias adjacentes dessa realidade. Graciliano insistia justamente, pela apresentação de seus personagens e dramas, na especificidade real do Brasil do sertão. destacando os conflitos objetivos entre esses dois Brasis.