Paraiso Perdido - John Milton - Iba Mendes
Paraiso Perdido - John Milton - Iba Mendes
Paraíso Perdido
Tradução
Antônio José de Lima Leitão
John Milton
(1608 — 1674)
Livro 402
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É isso!
Iba Mendes
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ASPECTOS BIOGRÁFICOS
“John Milton (Londres, 1608-1674) iniciou seus estudos na St. Paul’s School,
indo posteriormente para o Christ’s College da Universidade de Cambridge,
onde ele se graduou como Bacharel e Mestre em Artes em 1632. Nesse período,
além do estudo de matemática, de música e de composição poética, a leitura de
Dante, Petrarca, Tasso e outros clássicos foi de notável importância para seu
crescimento cultural.
Em 1649, apesar do sério distúrbio visual que em três anos o levaria à completa
cegueira, ele aceitou encargos públicos, tornou-se secretário de assuntos
estrangeiros do estadista inglês Oliver Cromwell e, a partir desse período,
dedicou-se à defesa de Cromwell e do puritanismo, compondo diversos escritos
polêmicos. Ainda nesse ano, em janeiro – um mês após a execução do rei
Charles I –, Milton escreveu “The Tenure of Kings and Magistrates”, em que
defendia ser inevit vel a retirada do poder de um rei injusto e corrupto.
Em 1652, Milton ficou totalmente cego e, apesar disso, insistia que seus olhos
eram “as clear and bright, without a cloud, as the eyes of men who see most
keenly”. Em 1658, iniciou a composição de seu poema que, de acordo com a
promessa feita para seu povo, seria um “doctrinal and exemplary to a nation”.
Dois anos mais tarde, com a restauração da monarquia, perseguido e tendo
perdido boa parte de sua fortuna, ele se retirou à vida privada, dedicando-se à
composição de sua grande obra. Sua perseguição chegou ao fim quando
Oblivion”.
Ainda em 1674, seis meses antes de sua morte, Milton foi procurado por John
Dryden, que idealizava o lançamento de uma ópera – “The state of inocence” –,
baseada em Paradise Lost. No final do século XVII, na Inglaterra, as óperas eram
um gênero moderno, cujos libretos eram geralmente derivados de textos
clássicos. Desse modo, Dryden já declarava o poema épico de Milton com o
status de um clássico, e esse reconhecimento foi extraordinário, uma vez que
Milton ainda era vivo. Apesar da atitude laudatória de Dryden, sua oferta tinha
uma implicação: o desejo desse escritor de mudar a técnica poética dos versos
brancos de Milton para o modelo tradicional de versos rimados. Inicia-se, na
tentativa de Dryden, um questionamento sobre o estilo poético inovador de
Milton.”
---
Referência bibliográfica:
Miriam Piedade Mansur Andrade: “Machado de Assis e John Milton: Diálogos pertinentes”.
(Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da
Faculdade de Letras da UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em
Letras. Área de Concentração: Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando
Ferreira Sá). Belo Horizonte, 2013.
ÍNDICE
LIVRO I........................................................................................................... 1
LIVRO II.......................................................................................................... 28
LIVRO III......................................................................................................... 61
LIVRO IV......................................................................................................... 85
LIVRO V.......................................................................................................... 120
LIVRO VI......................................................................................................... 150
LIVRO VII........................................................................................................ 177
LIVRO VIII....................................................................................................... 196
LIVRO IX......................................................................................................... 217
LIVRO X.......................................................................................................... 256
LIVRO XI......................................................................................................... 294
LIVRO XII........................................................................................................ 322
LIVRO I
Proposição do assunto do poema: a desobediência do homem, resultando-lhe
daqui a perda do Paraíso em que fora colocado; a Serpente, ou antes Satã
dentro da Serpente, motivou esta desgraça, depois que ele, revoltando-se
contra Deus, e metendo em seu partido muitas legiões de anjos, foi expulso do
Céu e arrojado ao Inferno com toda essa multidão por ordem de Deus. Depois
lança-se logo o poema para o meio do assunto, e mostra Satã com seus anjos
dentro do Inferno, descrito não no centro da criação (porque Céu e Terra devem
então supor-se ainda não feitos), mas nas trevas exteriores mais propriamente
chamadas Caos. Ali Satã, boiando com seu exército num mar de fogo, crestados
todos pelos raios e perdido o tino, afinal torna a si como de um letargo, chama
pelo que era o seu imediato em dignidade e poder, e que ali perto jazia;
conferem ambos acerca de sua miserável queda. Satã brada por todas as suas
legiões que até então se conservavam na mesma confusão e letargo: levantam-
se elas; mostra-se o seu número e ordem de batalha; dizem-se os nomes de
seus principais chefes que correspondem aos ídolos conhecidos depois em
Canaã e países adjacentes. Satã dirige-lhes a palavra, anima-os com a esperança
de ainda reconquistarem o Céu, e ultimamente noticia-lhes que vão ser criados
um novo mundo e nova qualidade de criaturas, atendendo a uma antiga
profecia ou rumor em voga pelo Céu (pois que, segundo a opinião de muitos
antigos Padres, existiam os anjos muito antes da criação visível). Para achar a
verdade desta profecia e o que se há de fazer depois, ele convoca uma plena
assembléia. Procedimento de seus sócios. O Pandemônio, palácio de Satã,
ergue-se subitamente construído no Inferno; os pares infernais ali se assentam
em conselho.
1
Decidido a galgar com vôo inteiro
Muito por cima da montanha Aônia,
De assuntos ocupado que inda o Mundo
Tratados não ouviu em prosa ou verso.
2
Mas da altura da abóbada celeste
Deus, coa mão cheia de fulmíneos dardos,
O arrojou de cabeça ao fundo Abismo,
Mar lúgubre de ruínas insondável,
A fim que atormentado ali vivesse
Com grilhões de diamante e intenso fogo
O que ousou desafiar em campo o Eterno.
3
Do centro do orbe à abóbada estrelada.
Oh! como esse lugar, onde ora penam,
É diverso do Céu donde caíram!
4
Nas planícies do Céu, em prélio dúbio,
As forças próprias às opostas forças
Fazendo-lhe tremer o empíreo sólio.
Que tem perder-se da batalha o campo?
Tudo não se perdeu; muito inda resta:
Indômita vontade, ódio constante,
De atras vinganças decidido estudo,
Valor que nunca se submete ou rende
(Nobre incentivo para obter vitória),
Honras são que jamais há de extorquir-me
Do Eterno a ingente força e inteira raiva.
Perdão de joelhos suplicar-lhe humilde,
Acatar-lhe o poder, cujo alto império
No âmbito inteiro vacilou há pouco
Pelo impulso e terror das minhas armas,
Fora abjeta baixeza, infâmia fora,
Muito piores que este infando estrago.
Já que, segundo ordenam os destinos,
Não pode ser em nós aniquilada
Esta empírea substância e empírea força,
Já que pela experiência desta ruína
Muito ganhado em previsão nós temos,
Condição que na guerra é de alta monta,
Tentar podemos com mais fausto agouro,
Por força ou por ardis, sem fim, sem pausa,
Contra o excelso Inimigo eterna guerra,
Ele agora que, em júbilos nadando,
Nímio se ufana, vencedor soberbo,
Porque dos Céus no sublimado trono
Administra absoluto a tirania!”
5
Em tão pesada perdição nos lança
Com tamanha vergonha e tanto estrago;
Vejo, e punge-me assaz, que a tal baixeza
Chegasse nosso exército tão forte,
A ponto de sofrer quanto é possível
Que substâncias do Céu e Deuses sofram.
Porém, quanto ao valor e aos brios d’alma,
Invencíveis nós somos; dentro em breve
Recobraremos o vigor antigo,
Inda que extinta jaz a nossa glória,
E aqui a nossa dita se sepulte
Nesta horrível miséria interminável.
Mas, se o Conquistador (que hoje não posso
Deixar de reputá-lo Onipotente,
Pois que com força pôs em plena ruína
Nossas forças, que invictas eu julgava),
Se ele, digo, nos quis deixar quais eram
Nossos grandes espíritos e forças
Para podermos suportar o peso
Dos flagícios cruéis com que nos punge,
Para podermos a medida toda
Encher-lhe da vingança em que se abrasa,
Ou fazer-lhe um serviço mais penoso
Como cativos seus por jus de guerra
(Seja aqui trabalhar em vivo fogo
No doloroso coração do Inferno,
Seja levar-lhe as hórridas mensagens
Pelas mansões do tenebroso Abismo),
Então... aproveitar-nos como podem
Nossos grandes espíritos e forças,
Posto que tais quais eram as sintamos,
Eternas só para castigo eterno?”
6
Fazendo de tal bem fonte de males.
Muitas empresas destas são possíveis
Que hão de por certo o coração ralar-lhe,
E muitas vezes no estudado plano
Hão de turbar-lhe o entendimento irado.
7
O mais corpo, boiando ao longo, ao largo,
Por essas ígneas águas se estendia
Muitos estádios, sendo no volume
O que a Fábula diz das vastas moles
De Briareu e de Tifon (que ocupa
Junto da antiga Társea um antro ingente),
Filhos da terra que investiram Jove;
Ou como o Leviatã, marinho monstro,
Que Deus fez o maior dos entes vivos
(O qual, dormindo da Noruega em mares,
Ilha o crê o piloto de chalupa
Colhida em vendaval noturno, — e lança,
Como é dos nautas voz, no escâmeo dorso
Da âncora o dente, e a sotavento escapa
Enquanto é noite e pelo dia almeja).
8
Neste comenos se afigura o monstro
Penedo enorme que tufões subtérreos
Expelem do Peloro derrocado
Ou do horríssono bojo do Etna em fúrias,
Cujas entranhas, que abrasadas dentro
Té’li ferviam em cachões de fogo,
Erguem-se agora de tufões pungidas
Furibunda explosão jogando aos ares,
Crestando largo espaço que povoam
De mefítico cheiro e negro fumo;
Tais os malditos pés ali pousaram!
9
Não quererá daqui lançar-nos fora:
Poderemos aqui reinar seguros.
Reinar é o alvo da ambição mais nobre,
Inda que seja no profundo Inferno:
Reinar no Inferno preferir nos cumpre
À vileza de ser no Céu escravos.
10
Que da Noruega em montes é cortado
Para mastro de altiva capitânia),
E nela os passos trabalhosos firma
Por tão ardente chão, mui diferentes
Do que eram percorrendo os Céus cerúleos:
Para abatê-lo mais, concorre o clima
Sobrepondo-lhe abóbada de fogo.
11
Té que vos vejam dos celestes muros
Os satélites seus aqui prostrados,
E ousem, descendo, vir de vós zombando,
Mais para dentro vos calcar do Abismo,
Ou c’os buídos farpões de presos raios,
Deste ígneo golfo vos cravar no fundo?
Despertai, levantai-vos, companheiros,
Ou ficai para sempre aqui submersos!
12
Ali em tronos nítidos sentadas,
Posto que hoje o registro de seus nomes
Nos celestes arquivos se não ache,
Que dos livros da vida a traição negra
Fez que apagados para sempre fossem.
13
Moloch adiante vem, monarca fero,
Tinto de humanas vítimas no sangue,
Nunca farto de lágrimas maternas,
Posto que — dos tambores, dos adufes
C’o turbulento estrondo, — não se ouvissem
Os gritos das misérrimas crianças
Arrojadas (oh! dor!) às labaredas
Em honra do seu ídolo iracundo!
O Amonita cruel o adora em Raba
E em seu longo distrito aquoso e plano.
Em Basã, em Argobe, até às fontes
Donde o longínquo Árnon se forma e mana.
Cioso por ver de Deus o altar vizinho,
Com fraudulenta sedução pôde ele
De Salomão levar o peito egrégio
(Salomão o mais sábio dentre os homens)
A edificar-lhe um majestoso templo
Na montanha do Opróbrio, bem defronte
Do Templo do grão Deus, e a consagrar-lhe,
Como parque, de Hinon o vale ameno
Que ficou desde então, sob o atro nome
De Tofet e Geena, emblema do Orco.
14
Com estes vêm os que por nome tinham
Baalim e Astarote: o seu império
Era dos lagos junto ao velho Eufrates
Té ao rio que é meta à Síria e Egito.
Estes têm fêmeo o sexo, aqueles o outro:
Os espíritos podem, quando querem,
Um dos sexos tomar, e ambos num tempo;
A essência que os compõe presta-se a tudo,
Tão pura e simples é, tão branda e dócil!
Qual do gênero humano a inerte carne,
Não a estorvam nem membros, nem junturas,
Nem dos ossos o esteio quebradiço;
Mas para a forma, que a seu gosto escolhem,
Crescem, mínguam, fulguram, escurecem,
Seus rápidos desígnios executam,
Já de ódio ultimam, já de amor os atos.
Por estes de Israel a miúdo a prole
Do seu altar sagrado se deslembra,
Curvando-se humilhada a deuses brutos;
Nas batalhas assim suas cabeças,
Como vis, se abateram derrotadas
Por lanças de inimigos vergonhosos.
15
Todos os anos o ídolo falsário;
Este amoroso canto o ardor ateia
De Sião nas filhas (cujos vícios torpes
Viu Ezequiel dos templos nos alpendres,
Quando, pela visão de todo abertos,
Seus castos olhos de Judá insana
Presenciaram a negra idolatria).
16
Quando o ouro seu franqueou para fundir-se
No alto do Orebe o estúpido bezerro;
E o monarca rebelde inda duplica
Em Betel, logo em Dã, esse atentado.
Cultos negando ao Criador do Empíreo
Para dá-los ao boi que pasta e muge:
Mas Jeová, o Egito atravessando,
Matou, numa só noite e num só golpe,
Todos os primogênitos viventes
E todos esses deuses mugidores.
17
E descendência enorme dele parte;
Porém Saturno, seu irmão mais novo,
Da primogenitura o desapossa;
E Jove, de Saturno e Réia filho,
Fez-lhe violência tal por ser mais forte.
É como usurpador que Jove impera.
(Foi conhecido e sua imensa prole
Primeiro em Creta e no Ida, e logo invade
Os frios cumes do nivoso Olimpo,
O délfico rochedo a ampla Dodona
E da dórica terra o longo espaço,
Donde a média região, partilha sua,
Que encerra os altos Céus, rege e domina).
O ancião Saturno e os seus fugiram todos,
Atravessando do Ádria as torvas ondas,
Para os campos da Hespéria, e se espalharam
Na plaga Celta e nas remotas ilhas.
18
Um aplauso estrondoso que enche os ares,
Penetra o fundo Inferno, e vai dar sustos
Ao Caos tenebroso, à Noite antiga.
Num momento, através dos fuscos ares,
Dez mil bandeiras tremular se viram
Fazendo fulgurar do oriente as cores;
E floresta vastíssima de lanças,
Bastos escudos, apinhados elmos
Apareceram num maciço corpo
Que ostenta profundez imensurável.
19
E por fim todo o número lhes conta.
Então, enchendo o coração de orgulho,
Por ser tão poderoso se gloria;
E por certo, depois de feito o Mundo,
Nenhum corpo se uniu que merecesse
Com este comparar-se, nem juntando
Todos os que houve nos diversos tempos.
20
Em seu poder temendo algum desfalque).
Obscurecido, mesmo assim fulgura
Mais que os outros arcanjos, seus consócios;
Mas dos raios profundas cicatrizes
Aram-lhe o rosto macerado, aonde
Mil cuidados contínuos se aposentam
Sob o ouropel de intrépida coragem,
De ultriz tenção, de refletido orgulho.
21
Mas... que mental vigor, que altiva ciência,
O presente e o passado combinando
Co’os presságios incertos do futuro,
Temer podia que tamanha força
De Numes imortais composta e unida,
Como a que estamos vendo aqui agora,
Havia ser de estragos susceptível?
E quem pode inda crer que estas falanges,
De valentia tal, de tanto vulto
Que sua falta fez no Céu vazios,
Recusaram, depois mesmo da queda,
Subir de novo e conquistar a posse
Dos pátrios reinos, doação dos fados?
Quanto a mim, digam as celestes hostes
Se riscos, se outras táticas mostraram
Que jamais eu perdesse esta esperança.
O monarca dos Céus té’li sentado
No trono seu, unicamente firme
Por consenso, por fama, por costume,
Sim nos mostrava sua imensa pompa,
Mas suas forças ocultou-nos sempre:
Deste modo incitou a empresa nossa
E a queda nos urdiu. De agora em diante
A sua e a nossa força conhecemos;
Que provocar a guerra nos não cumpre,
Nem temê-la, uma vez que a provocarmos.
Nosso melhor recurso hoje consiste
Em formar, no segredo o mais severo,
De enganos e de ardis um firme plano,
Já que efeituá-lo não é dado à força.
O tirano por fim de nós aprenda
Que vencer só por força um inimigo
É somente vencê-lo por metade.
Podem nascer no espaço novos mundos;
E corria nos Céus notória fama
Que ele um ia criar ali em breve,
Onde poria geração ditosa,
A quem daria, com prazer ingente,
Favor qual o que obtêm do Céu os filhos.
Sobre esse Mundo, para vê-lo ao menos,
A primeira irrupção julgo precisa,
Ou noutro rumo; o tudo é pô-la em obra,
Que aos infernais abismos não é dado
Deter na escravidão entes celestes,
22
Nem muito tempo em trevas obumbrá-los.
Mas estes ponderosos pensamentos
Numa plena assembléia se discutam,
Nada de paz! e quem se atreveria
Pensar em submeter-se? Guerra, guerra,
Seja por força aberta ou trama oculta!”
23
E a lhe rasgarem ímpios as entranhas,
Por obterem tesouros que a virtude
Quisera que inda ali ocultos fossem.)
24
E fica em breve um templo majestoso
Rodeado de pilastras, que sustentam
Vasta série de dóricas colunas
Com arquitrave de ouro guarnecidas;
De relevos magníficos se adorna
Da cornija e do friso o brilho ingente;
É todo o teto de ouro cinzelado;
E o suntuoso edifício, altivo, imenso,
Tem fixa a base em rocha de diamante.
(Nunca o Grão-Cairo, Babilônia nunca
Tal riqueza, tal pompa, tal grandeza
Puderam igualar nos altos templos
Dos pátrios deuses seus, Belo e Serápis,
Nem de seus reis nos paços estupendos
Quando um mais que outro na riqueza e luxo
A Assíria, o Egito, se julgavam ambos.)
25
De um remessão, — e que a cair esteve
De um dia estivo pelo inteiro espaço.
Té que ao sol posto, despenhado a prumo
Como vagante estrela, em Lemnos pára.
Mas foi tal crença errônea, que muito antes
Com seus sócios revéis fora ele expulso,
Sem que lhe aproveitasse haver no Empíreo
Soberbíssimas torres fabricado,
E no infortúnio nem valer-lhe pôde
Tudo que tinha em si de engenho e de arte.
Lá foi arremessado de cabeça
Com todo o bando seu, fértil de indústrias,
Para erguer torres no profundo Inferno.
26
Subúrbio da colmada cidadela,
Perfumada de fresca mangerona,
De seu governo os planos conferindo.
Exatamente assim tão bastos eram
Os espíritos maus na sala voando.
27
LIVRO II
Começa o conselho. Satã propõe que se questione como se há de combater
para recobrar o Céu. Uns querem guerra, outros a dissuadem. Prefere-se
terceira proposta, mencionada antes por Satã, consistindo em indagar se era
verdadeira a profecia ou tradição do Céu que se referia a um novo mundo e a
uma nova sorte de criaturas (iguais ou não muito inferiores aos anjos e que por
esse tempo já deviam ter sido criadas). Duvidam sobre quem seria mandado a
tão árdua empresa. Satã, chefe dos demônios, toma sobre si só a viagem, e
recebe por isso honras e aplausos. O conselho finda assim: cada qual segue o
caminho ou se emprega conforme sua particular inclinação para entreter-se até
à volta de Satã. Prossegue ele a sua viagem em direção às portas do Inferno que
acha fechadas e guardadas por dois fantasmas (que eram o Pecado e a Morte),
os quais finalmente lhas abrem e mostram o grande abismo posto entre o
Inferno e o Céu. Dificuldades que vence dirigido pelo Caos (que reina sobre
estas regiões), até que dá vista do novo mundo que procura.
28
Também me honro do jus a tal grandeza
Por vossa livre escolha conferido,
E do que nos conselhos, nas batalhas,
Meu mérito prestante me granjeia.
Até por fim os infortúnios nossos,
Em grande parte reparados hoje,
Nesta suprema altura mais me firmam
Pois que num sólio estou da inveja a salvo.
Possuindo alto poder, honras, delícias,
Pode invejado ser dos Céus o trono;
Mas quem no Inferno invejará tal sítio
Que mais erguido, qual baluarte vosso,
Mais do Deus vingador se expõe aos raios
E a ter maior quinhão na infinda pena?
Onde bens faltam, que ambição provoquem,
Não há de que temer a rebeldia:
Ninguém põe mira na realeza do Orco,
Nem ambicioso quer que mais avulte
A pena atual que diminuta sofre.
Fortes desta vantagem, procuremos
Com mais acordo e união, com mais lealdade
Do que vimos no Céu, ganhar de novo
De nossa herança justa o ancião domínio,
Mais certos do sucesso afortunado
Do que se ele viesse da fortuna.
Versa o debate sobre qual dos modos
Convém, se guerra aberta ou trama oculta.
Falai, exponde os pareceres vossos.”
29
Eu não blasono de perito em tramas:
Quem delas precisar, embora as urda;
Sempre as detesto e muito mais agora.
Que? milhões de anjos, empunhando as armas,
Esperar deverão, do Céu os trânsfugas,
Que em vil descanso as tramas se combinem
E que a seu tempo se efetue o assalto?
Que?! Deverão sofrer o encerro infame
Desta hórrida masmorra tenebrosa,
Onde os retém soberbo o seu tirano
Que reina em paz por nossa cobardia?
Não, não! Brandindo fogo e fúrias do Orco,
De uma vez atiremo-nos em massa
A derrocar do Empíreo as altas torres,
E, abrindo larga estrada irresistíveis,
Fazer ousemos dos tormentos nossos
Contra seu fero autor terríveis armas!
Quando de seu alcáçar prepotente
Trovões dispare, simultâneo escute
Dos trovões infernais o rudo estrondo,
E veja, dos relâmpagos em frente,
Com raiva igual lançando entre seus anjos
De negras flamas hórrido dilúvio,
E até seu estranho trono imerso
Em fogo e fumo de tartáreo enxofre:
Dest’arte restituamos-lhe os tormentos
Que o gênio seu nos inventou sublime.
Crer-se-á talvez difícil a escalada,
Com perpendicular férvido vôo,
De altura tanta, alcantilada a prumo,
Guarnecida por válido inimigo:
Mas atentemos, — se as bebidas águas
No turvo lago do torpente olvido
Nosso imortal vigor inda não tolhem, —
Que devemos subir com próprio impulso
Para nosso natal etéreo assento;
Descer, cair, repugna à essência nossa.
Quando o fero inimigo, debruçado
Da alta margem do Céu sobre o amplo Abismo,
Nosso exército imenso fulminava
Do Caos através té do Orco às portas,
Qual de nós não sentiu que, indo descendo
Por impulsões violentas compelido,
Natural resistência lhes opunha?
30
Para nós logo eis fácil a subida.
Também talvez se tema êxito infausto:
Mas... demos que por nossa valentia
O atroz imigo, que nos vence em forças,
Outra vez altamente provocado,
Achava em seu furor pior astúcia
Para levar a extremo o nosso estrago,
Se a pode haver pior que as penas do Orco;
Que estrago mais violento do que, expulsos
Do Céu, votados a total desdita,
Habitar nesta lúgubre masmorra,
Sem esperança tendo e sem recurso
De inextinguível fogo a pena infinda,
E ouvir, de seu feroz capricho escravos,
Assim que troam do tormento as horas,
O doloroso látego implacável
Chamar-nos à terrível penitência?!
Se passa o estrago a mais, certo de todo
Seremos consumidos, morreremos.
Então que mais receamos? quem nos obsta
Seu furor compelir ao grau mais alto?
Da raiva ardendo nas mais fortes chamas,
Se conseguir a todos arrasar-nos
A nada reduzindo a essência nossa,
Condição mais feliz alcançaremos
Do que eterno viver à dor votado:
E, se esta nossa divinal substância
Não é decerto súdita da morte,
Atuais sentimos as maiores penas
Que possíveis estão aquém do nada.
Bem entendestes que asselei com provas
Termos forças por cálculo, bastantes
Para o Céu perturbar com dura guerra,
E com perpétuas incursões dar sustos
De Deus ao trono, posto que inacesso:
E, se não conseguirmos a vitória,
Pelo menos vingança tomaremos.”
31
O anjo mais belo que perdeu o Empíreo;
Todo era graças, era grados todo.
Tal dignidade ostenta no semblante
Que só rasgos de heroísmo em si inculca;
Era em tudo porém frívolo e falso.
A sua voz, de que o maná goteja,
Tantos encantos tem, tanto arrebata
Que mostra puras as razões mais torpes,
E torna embaraçados e perplexos
Os mais previstos e maduros planos:
Com perspicácia suma induz ao vício,
Ante as altas ações afrouxa e treme;
Aos ouvidos apraz quanto ele exprime;
Cobre alma vil com porte de grandeza.
32
Inabalável, inacesso, intacto,
E, nosso assalto repelindo em breve,
Desnevoaria, vencedor prestante,
De tão grosseiros, desprezíveis fogos,
Sua etérea substância imaculada.
Com tal repulsa as nossas esperanças
Em desespero vão por fim se fundam:
Exasperar nos cumpre um Deus ovante
Que, dos furores seus largando as rédeas,
Nossa existência rábido termine,
Para nós sendo a morte o único anelo.
Que triste anelo! Quem, mesmo pungido
De cruas aflições pelo árduo acúleo,
A vida intelectual perder deseja
E os pensamentos que sublimes voam
Por toda a vastidão da Eternidade?
Quem deseja que morto o engula e esconda
Da incriada Noite o seio imenso, escuro,
E estar latente ali sem fim, sem termo,
Imprestável, imóvel, insensível?
Quem sabe, mesmo a ser um bem a morte,
Se nosso grã contrário enraivecido
Com ela nos brindar ou possa ou queira?
Que possa... é dúbio! que não queira... é certo!
Quer ele, sendo tão previsto e sábio,
Terminar de uma vez sua vingança,
E de inépcia ou fraqueza dando visos,
Aos inimigos seus cumprir o gosto,
Em seu furor com eles acabando,
Se pode em seu furor puni-los sempre?!
Da guerra aberta os partidários clamam
Que aguardar é fraqueza, — e que, votados
Sem dó, sem remissão, à pena eterna,
Impossível será que mais soframos,
Quaisquer que sejam os distúrbios nossos,
Porque quanto há de pior hoje sofremos.
Sofrer o pior consiste em, muito a salvo,
De armas na mão tramar quais ora estamos?
O pior isto é — quando arrancado vôo,
Do Céu fugidos, pávido trouxemos,
E, por dilúvio de fulmíneas farpas
Transpassados, envoltos, perseguidos,
Suplicamos do Inferno o abrigo escuro,
O Inferno parecendo-nos nessa hora
33
De tão cruéis feridas o refúgio? —
Ou quando nos conteve submergidos
De estuosas flamas o profundo lago?
Então quanto há de pior (certo é) sofremos!
Fora isto o pior, se o sopro, que aturado
Estes horrendos fogos cria e nutre,
Com setêmplice raiva os agitasse
E em seus feros cachões nos imergisse?
Se do Eterno a vingança, hoje interrupta,
Alçasse, novamente armada, acesa,
A mão fúlmine-rubra em nosso alcance?
Se, a seus inteiros arsenais dando uso,
Abrisse deste firmamento do Orco
Os profundos, flamívomos algares
(Horrores que iminentes nos assustam
Coa torva imagem de propínqua queda),
E, enquanto nós aqui nos exortamos
De tão ilustre guerra ao brio, à glória,
Com rápido tufão nos impelisse
Cravando-nos cada um em rocha aguda,
Onde o furor dos desbridados ventos
Ousasse divertir-se em flagelar-nos, —
Ou para sempre em nosso ardente oceano
Sumindo-nos, de algemas carregados,
Onde, sem dó mover, sem pausa ou trégua,
Vivêssemos em ais, sempre pungidos
Por nova dor, por desespero eterno?
Então quando há de pior nos avexara!
Assim, por voto meu e igual motivo,
Dissuado a guerra aberta e a trama oculta.
Que força ouse arrostar de Deus a força?
Que astúcia ouse iludir sua prudência,
Ele que em toda a direção abrange
Co’um lanço de olhos o Universo inteiro?
Quantos projetos vãos aqui urdimos
Vê, rindo-se de nós, no Empíreo excelso,
Tão forte em rebater nossos assaltos
Quão sábio em nos baldar ardis e tramas.
Porém (perguntam) nós no Céu nascidos
Viver devemos nesta hedionda furna,
Assim expulsos, vis, atropelados,
Debaixo de grilhões, entre tormentos?
É tudo isto melhor (conforme eu julgo),
Que esses horrores em que o pior consiste:
34
O destino infalível nos subjuga,
Suprema lei do Vencedor potente.
Para sofrer e combater possuímos
O mesmo brio e valentia a mesma:
Nem semelhante lei tacho de injusta,
Que fixa estava, dês que os tempos correm,
A nossa queda se com dúbia audácia
(Oxalá que então fôssemos previstos!)
O poder investíssemos do Eterno.
Move-me a riso ver os valerosos,
Que tão ardidos foram nas batalhas,
Tremerem de pavor, tendo-as perdido,
E com tal cobardia deplorarem
O exílio, o cativeiro, a dor, o opróbrio,
Do vencedor disposições sabidas,
Nossa condenação inevitável.
Talvez, se ousarmos suportá-la humildes,
Nosso inimigo, pelo andar dos tempos,
Seu supremo furor minore, abrande:
Talvez, longe de nós, de nós se esqueça
Se com ofensa nova o não pungirmos,
E, satisfeito das sofridas penas,
Mais não sopre estas flamas irritadas,
Que assim afrouxarão sua fereza.
A essência nossa então, porque é mais pura,
Triunfará de incêndio tão danoso,
E incombustível não terá mais penas;
Ou, gradualmente ao sítio acomodada
Por natureza e têmpera factícias,
Há de habituar-se a clima tão urente,
E hão de nos parecer, coa dor mais branda,
Claras as trevas, suportável o Orco.
Inda mais: na esperança nos alenta
O giro eterno dos futuros dias,
Que nos pode talvez trazer mudança,
Mudança em que mais meiga aponte a sorte
Dando ares de feliz a nosso estado,
Que certo o pior não é, posto que horrível.
Mas desgraça maior não provoquemos.”
35
Depois dele Mamon assim se exprime:
“Se o partido melhor temos na guerra,
Cremos ou destronar o rei do Empíreo,
Ou recobrar o jus que ele nos rouba.
Esperar destroná-lo poderemos,
Quando o destino indômito, imutável,
Sob o acaso inconstante a fronte curve
Ou for juiz desta luta o antigo Caos.
Fútil dos dois projetos o primeiro
De fútil o segundo denuncia.
Ser-nos grato, dos Céus dentro no espaço,
Que sítio pode, se do altivo trono
O tirano dos Céus não derribamos?
Supondo que ele mitigasse a fúria,
E perdão compassivo a todos desse
Sobre protesto de obediência nova, —
Diante dele com que olhos estaremos
O orgulho seu humildes acatando,
Rígidas leis impostas recebendo,
Hinos trinando de seu sólio em torno,
E à sua vangloriosa Divindade
Descantando forçados aleluias
Enquanto ele, rei nosso aborrecido,
Com soberana pompa está sentado,
Enquanto seu altar recende, brilha,
Da empírea ambrosia co’o perfume e esmalte,
Ofertas vis do servilismo nosso?
Tais devem ser as que no Céu teremos.
Honrosa ocupação, brilhante glória.
Quão tediosa reputo a eternidade
Gasta em dar culto ao ser que se aborrece!
De mão sim demos pois, não prossigamos,
Inacessa à violência, essa alta pompa,
(Essa alta pompa — escravidão contudo
Que nem nos Céus a quer uma alma nobre):
Antes o nosso bem de nós tiremos,
Do que for nosso, para nós vivamos,
Mesmo nesta prisão sejamos livres
Recusando qualquer alheio mando,
E ao fácil jugo de servil grandeza
Prefiramos custosa liberdade.
A mais fulgente glória alcançaremos
Se com tenaz denodo conseguirmos
De poucos meios extrair portentos,
36
Do mal o bem, da desventura a dita,
Medrar em qualquer parte ao dano expostos,
Maciar as penas com paciência e lida,
Temeis do Abismo a escuridão profunda?
Por que a miúdo o Senhor, que os mundos rege,
Está, sem que se ofusque a sua glória,
Dentro de espessas, tenebrosas nuvens,
E, o trono seu em derredor cobrindo,
Com majestosa escuridão se adorna,
Donde trovões profundos rugem, bramam
Parecendo no Céu do Inferno a imagem?
Se pode ele imitar as trevas nossas,
Imitar sua luz nós não podemos?!
Deste deserto nas caudais entranhas
Se esconde o lustre dos diamantes, do ouro;
Nem carecemos nós de indústria e de arte
Para os erguer em máxima opulência:
E que pode ostentar de mais o Empíreo?
Co’o andar dos tempos os tormentos nossos
Decerto hão de servir-nos de elemento;
Há de ficar este pungente fogo
Tão manso, como agora está ferino;
Na sua a nossa essência temperada,
A têmpera há de ser a mesma de ambos;
Então prazer assim na dor teremos.
A conselhos de paz tudo convida
E de ordem fixa ao venturoso estado:
Eis pois a salvação mais ponderosa
Em que estes males serenar nos cumpre,
Visto o que somos e o local que temos.
Não mais façamos guerra: este o meu voto.”
37
Com tanto medo os avexavam inda
O alfanje de Miguel, do Eterno os raios!
Também não menos os pungia o anelo
De um grande império levantar no Abismo,
Que, por ótimas leis e em prazo justo,
Êmulo fosse do invejoso Empíreo.
38
Jamais míngua terá (crede-me), nunca,
No império seu coa rebeldia nossa:
Sobre os Infernos seu domínio estende
E com cetro de ferro os tiraniza,
Bem como adita os Céus com cetro de ouro.
Que estamos projetando? paz ou guerra?
A guerra nos fadou este infortúnio
E abismou-nos em perda irreparável:
Da paz nem mesmo as condições prevejo
Que paz alcançaremos nós escravos
Senão grilhões, flagelos, tiranias?
Que paz também retribuir podemos
Senão traições, ardis, vinganças, ódios,
Intermináveis sempre, inda que tardos?
Conjuração contínua trabalhemos
E, quanto mais pudermos, desluzamos
Ao Vencedor os frutos da vitória,
E o bárbaro prazer que goza ufano
Em nos fazer tragar tão crus tormentos.
Estai seguros; ocasiões não faltam,
Sem precisarmos da arriscada empresa
De arremeter do Empíreo aos altos muros
Que não receiam do profundo Averno
Os assaltos, os cercos, as ciladas.
Mais fáceis meios socorrer-nos podem:
Um lugar, outro mundo (se no Empíreo
Anciã fama profética não falha)
Deve agora existir, próspera estância
De novos entes nominados “Homens”,
Semelhantes a nós, posto nos cedam
Em poder, em fulgor, mas favoritos
O mais possível do Tonante excelso
Que às jerarquias a vontade sua
Exprimiu, confirmou, jurou grandioso,
Com tanta intimativa que abalado
Tremeu e retremeu inteiro o Empíreo.
A ele assestemos os tentames todos,
Saibamos que habitantes o possuem,
Seus dotes, seu poder, substância, forma,
Qual é seu fraco, se melhor contra eles
Guerra aberta utilize ou trama oculta.
Posto se nos fechar o Céu radiante,
E assentar-se do Céu o Árbitro altivo
De todo firme em sua própria força,
39
Pode expor-se essa plaga ao nosso alcance
Como de seu império estando na orla,
Guardada por seus próprios habitantes,
Talvez que alguma empresa vantajosa
Com súbita incursão conseguiremos, —
Ou do Inferno co’o fogo devastando
Toda a recente máquina do Mundo,
Ou toda conquistando-a, e seus senhores
(Quais nós fomos do Céu) dela expelindo:
E, a não podermos aspirar a tanto,
Ao menos obteremos seduzi-los
À traição nossa; por tamanha ofensa
Seu Deus há de tornar-se em seu contrário,
E, arrependido da bondade sua,
As próprias obras destruirá furioso.
De muito este sucesso sobrepuja
Toda a vingança que até’gora urdimos:
Quando seus filhos, que extremoso amara,
Amaldiçoassem sua fraca origem
E murcha glória (tão depressa murcha!)
Precipitados nos tormentos nossos, —
Quanto do Eterno a bárbara alegria
Que sente em nosso mal, se desfizera!
E quanto, contemplando o seu desgosto,
Se exaltará nossa alegria ufana!
Pesai portanto o que melhor nos cumpre,
Se acometer ou se neste atro Abismo
Ficar de vãos impérios cogitando.”
40
Nos olhos todos a alegria fulge;
Todos com pleno assentimento votam.
41
Mas todos silenciosos se conservam
Em profundo pensar pesando o p’rigo, —
E cada qual. atônito, perplexo,
Dos outros vê no rosto o próprio susto.
42
Quanto mais gozam de grandeza e de honras?
Ora sus! prole excelsa, heróis valentes,
Que medo ao Céu meteis mesmo vencidos,
Na pátria tende conta; — e, enquanto a pátria
Consistir nesta lúgubre caverna,
Lidai por seu horror tornar mais brando
Fazendo menos dura a pena do Orco,
Se pode haver aqui remédio, encanto
Que tais tormentos suste, engane, afrouxe!
Contra inimigo que vigia sempre,
Não cesseis de vigiar enquanto rompo
Da negra destruição por entre os riscos,
De todos nós buscando a liberdade.
Ninguém de tal empresa admito à glória.”
43
Cheios de tanto júbilo terminam
Glorificando o chefe incomparável
(Assim, — depois que, erguendo-se das serras,
Cobrem, no entanto que adormece o norte,
Do Céu a face linda as pardas nuvens,
O tristonho elemento derramando
Sobre as escuras lavas neve e chuva, —
Se o Sol brilhante ao despedir-se estende
Seus vespertinos, deleitosos raios,
Pelos campos de novo fulge a vida,
As aves sua música prosseguem,
E o balido das greis contente se ouve
Pelos montes e vales repetido).
44
E as legiões infernais, todas de acordo,
Aplaudem-na com hórrido alarido.
45
Maldizendo a fortuna que escraviza
A virtude e valor à força e acaso.
A vaidade orgulhosa enchia o canto;
Contudo (e que menor seria o efeito,
Quando imortais espíritos cantavam?!)
A harmonia deixou suspenso o Inferno
E extasiou do concurso a mó imensa.
46
Raiva enrolada em borbotões de flamas.
Destes mui longe, silencioso e tardo,
Seus fluidos labirintos vai volvendo
O Letes, rio do torpente olvido:
Quem dele bebe, logo esquece tudo,
Tudo, té mesmo a si; nem mais lhe lembram
Dores, prazeres, alegrias, mágoas.
47
Vão com olhos atônitos notando
Seu mal horrendo, e alívio não lhe encontram:
Regiões passam de dor, vales de pranto,
Alpes de cru regelo, Alpes de fogo,
Rochas, lagos, pauis, cavernas, matos,
Da negra Morte pavoroso mundo.
Lá pervertida cria a Natureza
Só prodígios, só monstros mais terríveis
Que os Dragos, Hidras, Górgones, Cerastes,
Sonhos dos vates, ilusões do medo:
Lá do Eterno a justiça vingadora
Fez para bem o mal que os maus castiga, —
E (que horror!) morre a vida, e vive a morte!
48
Em serpe escâmea que se enrosca imensa.
E com mortal farpão guarnece a cauda;
De negros antros, na cintura abertos,
Ladra-lhe com perene e rudo estrondo
De mastins infernais ampla matilha
Abrindo as vastas cerberinas bocas:
Se fora a seu latido estorvos acham,
A seu prazer introduzir-se podem
Na ventral amplidão e ali seguros
Ladrar e uivar da vista além do alcance
(Menos raivosos os mastins marinhos
Cila assaltaram no funesto banho
Do mar que entre a Calábria espúmeo troa
E as praias de Trinácria enrouquecida!
Menos hediondos a noturna maga
Seguem os cães, quando ela voando oculta
Vem, de sangue infantil dando-lhe o faro,
Dançar coas feiticeiras da Lapônia
Que, à força de terríficos encantos,
Eclipsam fatigada a irmã de Febo!).
49
Vai-te, foge, ou da insânia o prêmio toma:
Tu, filho do Orco, aprende exp’rimentado
Que espíritos do Céu ombrear não podes.”
50
Uma sobre outra, do ar na área espaçosa.
Tanto os dois combatentes afamados
De raiva a catadura escureceram,
Que mais medonha noite o Inferno envolve.
Em tudo iguais, só desta vez lhes cumpre
Achar a seu valor tão alto emprego;
E proezas fariam estrondosas
Nos tartáreos espaços retumbando,
Se o serpentino monstro, que se assenta
Às portas infernais feroz e firme
Nas mãos guardando a temerosa chave,
Se não erguesse! E entre eles se arrojando,
Assim lhes brada com fremente grito:
51
Súbita dor te decepou terrível,
E, teus lânguidos olhos deslumbrados
Nadando às tontas pelo horror das trevas,
Tua cabeça espadanou ao largo
De labaredas turbilhão furioso;
Depois, do lado esquerdo um vácuo abrindo,
À luz sair me fez, deidade armada,
Toda a ti semelhante em vulto, em porte,
De formosura celestial brilhando.
Eis medrosos de mim logo recuam
Tomados os celícolas de espanto, —
E, presságio fatal então colhendo,
Deram-me de Pecado o triste nome:
Habituados porém a ouvir-me, a ver-me,
De mim gostaram; conquistei ovante
Com minhas graças os contrários todos,
Principalmente a ti que, olhando a miúdo
A tua imagem própria em meu semblante,
Possuíste-te por mim de amor violento,
Que, em oculto prazer à larga solto,
Entranhou no meu seio hórrida estirpe.
No entanto ateou-se a guerra que estrondosa
Enfureceu dos Céus pelas campinas;
Colheu nosso inimigo ilustres palmas;
E as nossas perdas, os desastres nossos,
Foram completos pelo Empíreo inteiro
(Quem outros fados esperar devia?!).
Lá caem os espíritos rebeldes
Das alturas do Céu precipitados
De envolta co’eles neste abismo caí.
Deu-se-me logo esta tremenda chave;
Guarda destes portões cerrados sempre,
Sem que eu os queira abrir... ninguém os passa.
Solitária sentei-me e pensativa
Por tempo curto aqui; meu seio em breve,
Mui grande já, por ti grávido, sofre
Abalo enorme, lúgubre agonia.
Por fim, essa progênie truculenta
Que ali notando estás, teu próprio filho,
Com fúria ardente rompe-me as entranhas
Já de hórridos tormentos retorcidas, —
E, dando-me esta mísera figura,
Nasceu, por dano meu, de mim tal monstro,
Brandindo o dardo seu, de tudo estrago.
52
Assim que o vejo, grito “Morte!” e fujo:
A tão horrível nome o Orco estremece
E, por suas cavernas ribombando,
Pavoroso repete “Morte! Morte!”
Fujo, mas para mim corre o fantasma
(Creio que mais lascivo do que iroso);
Veloz me apanha, — e sem horror, sem pejo,
A mim, própria mãe sua, espavorida,
Em torpe abraço cinge-me por força:
Gerei do feio rapto estes, que observas,
Tétricos monstros que incessantes uivam
De mim em torno, — e dor contínua, imensa,
Aferram-me nas íntimas medulas.
De mim saindo e entrando de contínuo,
Devorando-me as vísceras trementes,
Seu pasto interminável, pululante:
Dest’arte seu prazer sem freio cumprem;
Nem pausa ou trégua a meu tormento encontro.
Senta-se o Monstro-Morte a mim fronteiro:
Dali, vendo meu filho e meu contrário,
Dos feros cães açula-me a matilha;
Mesmo a mim, de outras vítimas em falta,
Inda não devorou — porque harto entende
Que ambos os nossos fins mútuo se envolvem,
E que eu bocado amargo, atroz veneno,
Ser-lhe-ia sempre: assim decreta o fado.
Mas... ó pai! vigilância! Não provoques
(Aviso-te eu) do monstro o hórrido dardo:
Não podem tuas armas fulgurantes,
Mesmo feitas com têmpera celeste,
Para ele constituir-te invulnerável:
De fúteis esperanças não te iludas;
A seu golpe mortal ninguém resiste,
Ninguém... só lá do Empíreo o Árbitro excelso!”
53
Não venho (digo-to eu) como inimigo,
Mas para libertar desta caverna,
Tenebrosa mansão de dor terrível,
Ele, a ti, e a celeste imensa turba,
Que, do jus nosso por defesa armados,
Do Céu comigo despenhados foram:
Venho por eles a tamanha empresa;
Exponho-me a mim mesmo, um só por todos,
A percorrer com solitária planta
O não sondado Abismo, o horror do vácuo,
Buscando em vagabunda descoberta
A profética plaga, ingente globo,
Que hoje, pela ocorrência dos sucessos,
Criado deve estar, sítio ditoso,
Dos Céus nas vizinhanças colocado,
Formosa habitação dos novos entes
Que no Empíreo talvez nos substituam:
Contudo, o Onipotente os pôs mais longe,
Receoso de que o Céu movesse acaso
Outras desordens, outra rebeldia,
De multidão tamanha carregado.
Seja este ou outro oculto o seu desígnio,
Vou já sabê-lo, — e, tão depressa o saiba,
Aqui volto, e comigo ireis vós ambos
A ditoso lugar viver contentes,
Onde encobertos, sem que alguém vos sinta,
Há de afagar-vos o ar cheio de aromas.
Franqueio-vos ali manjar sem termo;
Ali poder fatal tereis em tudo.”
54
Funesto o dardo seu tem pronto alerta
Contra os furores de agressivo impulso.
Mas eu... por que obedeço ao Rei do Empíreo,
Que me aborrece atroz, e aqui me prende
Na eterna escuridão do Orco profundo,
Para ter este ofício abominável
Em perpétua agonia, em dor perpétua,
Em roda ouvindo os uivos temerosos
Da minha própria prole furibunda
Que as entranhas contínuo me devora,
Habitante eu do Céu, no Céu nascida?
Tu, meu pai, meu autor, que o ser me deste,
Que ordens hei de cumprir, de ti ou de outrem?
De ti, de ti que em breve hás de levar-me
Ao novo orbe de luz, de paz ditosa,
Onde entre deuses, que contentes vivem,
À destra tua reinarei sentada,
Novas delícias respirando sempre
Qual cumpre à tua filha e doce amante.”
55
De artilharia e de corcéis flanqueado;
E, iguais à boca de fornalha ardendo,
Vomitam, longe a negridão rasgando,
Flamas e fumo em furibundos rolos.
56
Então Satã aqui na orla do Inferno
Com cautela sagaz pára, — e medita
A viagem sua, não de estreito breve
Mas de incógnito Abismo imensurável:
O estrondo que ouve turbulento e fero
Não era menos (se contudo grandes
Bem se comparam coas pequenas coisas)
Do que troveja quando em bateria
Dispara a um tempo mil canhões Belona
Sobre cidade altiva que se arrasa, —
Ou do que se ouviria sendo expulso,
Pelos amotinados elementos,
Dos seus eixos o térreo, firme globo.
E se em pedaços mesmo o Céu caísse!
57
Com cabeça, com pés, com mãos, com asas;
Anda, nada, mergulha, trepa, voa.
58
Restituídos a vós, da antiga Noite
Hão de o estandarte ver de novo erguido.
Tendes na empresa minha imenso ganho:
Quanto a mim, coa vingança me contento.”
59
Que erriçam longe o Bósforo medonho,
A nau Argos vogou! Com menos p’rigos
O cauto Ulisses, evitar tentando
Os vórtices vorazes de Caríbdis,
Ia de Cila submeter-se às fúrias!)
60
O Empíreo Céu, que nos sentidos todos
Vai a perder de vista e excelso encobre
A sua forma na grandeza sua:
Observa-lhe, com hórrida saudade,
De opala as torres, de safira os muros,
Sua (noutrora) deleitosa pátria!
E neles firme por cadeia de ouro
Descobre logo pendurada, a Terra,
Vizinha à Lua e igual na redondeza
Aos mais pequenos dos celestes orbes.
LIVRO III
Deus, assentado em seu trono, vê Satã que voa em direção ao Mundo (então
criado havia pouco); mostra-o ao Filho que se assenta à sua mão direita; prediz-
lhe como Satã há de perverter o gênero humano; purifica de toda a imputação a
sua própria justiça e sabedoria, mostrando haver criado livre o homem e
suficientemente apto para resistir ao seu tentador: contudo declara o seu
propósito de graça em favor do homem, atendendo a que ele não caiu por
malícia própria, como sucedeu a Satã, mas seduzido por este. O Filho de Deus
agradece ao Pai a manifestação do seu propósito de graça em favor do homem;
porém Deus declara então que a graça não pode valer ao homem sem a
satisfação da justiça divina, — e que o homem, tendo ofendido a majestade de
Deus por querer aspirar à divindade, e por isso votado à morte com toda a sua
descendência, deve morrer caso não haja alguém suficiente para responder por
sua ofensa e suportar o seu castigo. O Filho de Deus oferece-se
espontaneamente como resgate do homem. O Pai o aceita; ordena sua
encarnação; pronuncia-lhe a exaltação acima de todos os poderes do Céu e da
Terra: — manda a todos os anjos que o adorem; eles obedecem e, cantando ao
som de harpas em coro pleno, celebram o Pai e o Filho. No entanto Satã desce
sobre a descoberta convexidade do orbe exterior que inclui a criação; por ali
vagando, acha ele primeiramente um lugar chamado no futuro “Limbo de
Vaidade”, e onde nada existia ainda; de lá dirige-se para as portas do Céu.
Descreve-se a escada que para elas sobe e o mar que a cerca ficando sobre o
firmamento. Passagem de Satã até o orbe do Sol, junto ao qual encontra Uriel, o
guarda daquele astro; mas primeiro toma ele a figura de um anjo de segunda
ordem, — e, pretextando um fervoroso desejo de ver a nova criação e o homem
61
que Deus ali havia colocado, inquire do arcanjo o lugar onde ele habita; Uriel o
dirige; ele prossegue e vai primeiramente pousar no monte Nifate.
62
Pelas sapientes Musas frequentados:
Porém a todas, Sião, eu te prefiro
Quando visito, na mudez da noite,
Os flóridos ribeiros murmurantes
Que a teus sagrados pés manso deslizam.
Não me escapando nunca da memória
Tamires e o Meônide afamados,
O áugur’ Tirésias, e Fíneo vidente,
Cegos, — iguais a mim neste infortúnio,
Mas que eu (oh! dor!) na glória não igualo, —
Nutro-me ali de altivos pensamentos,
Donde como espontâneos, nascem, correm
(Quais o mel do Hibla) deliciosos versos:
Assim pousada em resguardado ramo,
Cerrando-a da alta noite o manto escuro,
A ave sonora cantilenas trina.
63
Mais alto está que todas as alturas, —
Baixa os olhos ao Mundo e vê de um golpe
Inteira a criação e efeitos dela.
Postas de pé, tão juntas como estrelas,
Rodeiam-no as celestes jerarquias,
E à destra se lhe assenta o Filho excelso,
De sua glória imagem fulgurante.
64
Conseguirá Satã a queda do homem,
Que, a suas vãs lisonjas dando ouvidos,
Transgredirá com prontidão ruinosa
O só preceito que lhe impus benigno,
O só penhor da submissão humana.
Lá se vai despenhar o homem no crime
E sua prole infiel consigo arrasta!
Formei-o judicioso, justo e livre;
Quanto ele ter podia, eu dei-lhe tudo:
Estava em seu poder, co’o mesmo arbítrio,
Cair no crime ou ter-se na virtude.
De quem, senão de si, queixar-se deve?
Ingrato! Fi-lo igual dos Céus aos anjos,
Dos quais uns na virtude se firmaram,
À rebeldia se arrojaram outros,
Ambos obrando em liberdade plena.
E como de obediência voluntária,
De verdadeiro amor, de fé constante,
Fariam prova se não fossem livres?
Por coação fora assim, não por vontade,
Quanto de bom ou mau neles se visse:
Mereceria o bom assim louvores?
Assim mereceria o mau castigos?
Se a vontade e a razão, que tem na escolha
Dos atributos seus o mais sublime,
Fossem privadas de tão nobre prenda,
Ambas sem liberdade, ambas passivas,
Sendo a necessidade que as movesse
E não o livre amor que me votassem, —
Que prazer neste caso eu tiraria
De obediência tão cega e tão forçada?
Logo, segundo as leis da sã justiça,
Livres foram por Deus assim criados,
Tendo em si perfeição a mais excelsa,
A mais que em criaturas é possível.
Nem seus desastres imputar-me podem,
Nem sua construção, nem seu destino;
Mesmo eles, e não eu, determinaram
Todo o furor da rebeldia sua.
Minha presciência vê como presentes
Quantos sucessos no porvir se envolvem:
Deles porém nenhum dela depende:
De maneira que, se eu a não possuísse,
Sempre tais quais existiriam eles.
65
Sem coação pois, sem sombras de destino.
Sem força alguma que de mim emane,
Transgrediram, motores de si próprios,
Sua obediência os anjos rebelados.
Homens e anjos formei de todo livres, —
E livres serão sempre, inda que insanos
Queiram na escravidão envilecer-se:
De outra sorte, mudar-lhes eu devia
A natureza unida à liberdade,
A irrevogável ordem revogando
Que as criou para sempre inseparáveis.
Os anjos, que a si mesmos se impeliram
Para a depravação, votados se acham
A irremissível punição eterna:
O homem, que sendo deles iludido
Pecou, refúgio em minha graça encontra.
A justiça e bondade no orbe e Empíreo
Assim hão de exaltar a minha glória;
Mas no princípio e fim sempre a bondade
Ver-se-á em mim brilhar mais refulgente.”
66
O teu mais jovem filho tanto amado,
Se a mais negra traição com vis astúcias
Pôde iludir seu ânimo inatento?!
Longe de ti, meu Pai, de ti, oh! longe
Dureza tal! a retidão, teu timbre,
Preside, eterno juiz, aos teus julgados.
Consentirias que o falsário imigo
Obtivesse o seu fim e o teu frustrasse?!
Perpetraria o mal que urdiu na mente,
Ficando inútil a bondade tua?!
Inda que de mais penas carregado,
Contudo cheio de feroz vingança,
Voltaria arrogante ao torvo Inferno
Arrastando consigo a humana prole
Por seus ardis malvados corrompida?!
Arruinarias tu, por causa dele,
Da criação o primoroso ornato
Que para tua glória só fizeste?!
Se o conseguisse, incertas ficariam
Tua bondade, a majestade tua,
E mesmo sem defesa blasfemadas!”
67
Para de graça especial muni-los:
Assim me apraz; ao resto ouvir incumbe
A minha voz atento que incessante
As suas culpas lhes porá patentes,
Para que a tempo sossegar procurem
Da minha divindade as justas iras,
Da graça enquanto lhes franqueio as fontes.
Dest’arte quero a mente iluminar-lhes
E o férreo coração embrandecer-lhes:
Se a mim erguerem preces fervorosas,
Se me prestarem obediência humildes
E com pura intenção se arrependerem,
Nem surdos hão de achar os meus ouvidos,
Nem os meus olhos hão de ver fechados.
Dentro da alma hei de pôr-lhes a consciência,
Guia infalível, árbitro divino:
Se puros lhe seguirem os ditames,
Usando bem de sua luz primeira,
Terão logo de luz ondas sobre ondas, —
E, persistindo assim, hão de salvar-se.
Mas quem zombar da tolerância minha,
O meu dia de graça desprezando,
Nunca mais há de obtê-la; e sem remédio
Sua dureza se fará mais dura,
Sua cegueira se fará mais cega.
Seus tropeços serão quedas profundas;
Tem de abismá-lo a perdição eterna.
Mas no que hei dito não se encerra tudo:
O homem rebelde, sua fé quebrando
E louco pretendendo o grau de Nume,
Contra o Poder pecou dos Céus supremo,
E por isso perdeu quanto era e tinha.
Para seu crime expiar, nada lhe resta:
Votado à destruição, será sem falta,
Ele e a progênie sua, entregue à morte:
Morrerá; tal o quer minha justiça;
Livrá-lo pode só vítima ilustre
Que, em vez dele, a morrer se sacrifique,
Pagando cabalmente a grave afronta
Pela satisfação, morte por morte.
Dizei, dos Céus augustas potestades:
Onde tão grande amor encontraremos?
Para remir coa morte o crime do homem,
Que imortal quererá mortal fazer-se?
68
Para alcançar a salvação do injusto,
Que justo quererá sofrer a morte?
Dos Céus por toda a vastidão imensa
Haverá caridade tão sublime?”
69
Tu não consentirás que, paga a ofensa,
Abandonada fique esta alma pura,
Como presa do tétrico fantasma,
Do corrupto jazigo entre os horrores: —
Mas hei de vitorioso levantar-me:
Meu próprio vencedor porei em ferros,
Despojá-lo-ei do blasonado espólio.
De seu dardo mortal assim privada
A Morte, reduzida a humilde serva,
Será pungida do mais fero golpe:
De todo arruinarei com teu auxílio
Dos inimigos meus a inteira turma,
E do éter puro pelos largos campos
Em grão triunfo levarei cativas
Do Inferno as relutantes potestades,
Tendo arrojado a descarnada Morte
Dentro das ermas trevas do sepulcro
Que encherá com seu pálido arcabouço.
Sobre esta perspectiva tão jucunda
Em vívido prazer hás de banhar-te:
Então, de meus remidos indo à frente,
Os umbrais entrarei do Céu sublime, —
Vindo, depois de ausência dilatada,
À face tua, ó Pai, onde veremos
A reconciliação e a paz seguras,
Nem restando sequer vislumbres de ira.
Do Empíreo desde então no imenso alcáçar
Plena alegria reinará eterna.”
70
“Ó tu, que só na Terra e Céus podias
A salvação achar da prole humana,
Pelo seu crime exposta aos meus furores!
Ó tu, meu prazer único! Bem sabes
Todas as minhas obras quanto eu prezo;
Mas a última prefiro a todas... o homem!
Por ele te permito que te apartes
Do seio meu, da minha destra, um tempo,
Para a perdida estirpe lhe salvares.
Tu, que és o só que resgatá-lo pode,
A junta dele a natureza à tua:
Entre os homens na Terra faze-te homem,
Encarnando, lá quando aponte o prazo,
No puro seio de escolhida Virgem
Que tem de dar-te à luz com pleno assombro.
Sê do gênero humano o grande chefe;
Mesmo filho de Adão, toma-lhe o posto:
Se os homens todos pereceram nele,
Restaurados serão quantos restaures.
Sua origem segunda em ti contemplem;
Sem ti... nenhuma redenção aguardem.
Participantes da paterna culpa,
São os filhos de Adão todos culpados;
Mas remissão teus méritos franqueiam
A quantos, de injustiças se isentando,
Das ações próprias o valor desprezem,
E, de ti recebendo vida nova,
Dentro em teu grêmio transplantados vivam.
Sendo Homem tu, satisfarás pelo homem:
Julgar-te-ão, sofrerás de morte a pena;
Ressurgirás, ressurgirão contigo
Os teus irmãos por tua morte salvos.
Assim alcançará plena vitória
Contra a raiva infernal o amor divino
Sacrificando a vida generoso
Para remir os que perdera o Inferno,
Que inda tem de perder quantos desprezem
A graça no momento em que ela os busque.
Nem, porque tomas natureza humana,
Serás menor do que és; não te degradas:
Entroneado no Empíreo, igual do Eterno,
Gozando glória igual, — tu deixas tudo
Para o Mundo eximir de inteiro estrago:
Mais o mérito teu, que a tua origem,
71
Por filho do alto Nume te comprova;
Mais que tua magnífica grandeza,
Demonstra-te o melhor tua bondade;
O amor excede em ti tua alta glória:
Por isso a tua humilhação consigo
Exaltará a humanidade tua,
Sentando-se ambas nesse trono excelso.
Homem-Deus, Filho igual de Deus e do homem,
Aqui tu reinarás sobre o Universo:
Todo o poder te dou; impera, e goza
Dos predicados teus o fruto eterno;
Como ínclito monarca tu domina
Coros, dominações, poderes, tronos;
Dos Céus, da Terra, e Tártaro profundo,
Hão de adorar-te os habitantes todos.
Quando, vestido de radiante glória,
Dos Céus entre as inteiras jerarquias
Apareceres sobre o firmamento,
E intimares, por voz de teus arautos,
Que o teu terrível tribunal abriste, —
Súbito dos quatro ângulos do Mundo
Virão prontos ouvir suas sentenças
Vivos e mortos desde as eras todas.
Forçados pelo estrondo das trombetas.
Rodeado do congresso de teus Santos,
Hás de julgar com imparcial justiça
Os anjos maus, os pervertidos homens:
Segundo a força das sentenças suas,
Os condenados sofrerão a pena;
E, de imensos malditos cheio, o Inferno
Fecha-se então para não mais abrir-se.
Depois será queimado inteiro o Mundo;
De suas cinzas brotarão mais belos
Novo Céu, nova Terra, — onde, já livres
De longos males, morarão os justos,
De altas virtudes desfrutando em prêmio
Dias dourados, alegria pura,
Do amor celeste e da verdade os mimos.
Então, estando o Eterno todo em tudo,
Depões teu cetro real já não preciso.
No entanto, ó todos vós, empíreos Numes,
Prostrai-vos, adorai o Deus que morre
Para salvar da perdição o Mundo:
Como a mim adorai e honrai meu Filho.”
72
Do Onipotente assim que a voz acaba,
Nos Céus ressoa, enchendo os campos do éter,
Altissonante, universal aplauso,
Que exprime com toada melodiosa
Dos Bem-aventurados a alegria.
Curvam-se humildes ante o duplo trono.
73
Sempre imutável rei, autor de tudo,
Fonte de luz! Assentas-te invisível
Num inacesso trono que se imerge
Em fulgores de glória deslumbrantes:
E, quando misterioso em roda obumbras
De teus raios o mar ignipotente,
Côa das abas nítidas das nuvens,
Que de argentino pavilhão te cercam,
Fulgor tão vivo que o mais nobre arcanjo
De ti não se aproxima sem que esconda
Os olhos seus nas asas embuçado.”
74
Tu, de misericórdia e graça cheio,
Mais propenso à piedade que à dureza,
Poupaste-o a pena, ó Pai, tão rigorosa.
Assim que o Filho teu, único, amado,
Viu em ti compaixão do frágil homem,
Não hesitou em aplacar tua ira
E em findar o conflito doloroso
Que de misericórdia e de justiça
Se via afigurado em teu semblante,
Com esse fim, deixando a imensa dita
Onde imediato a ti se assenta e fulge,
Para o homem resgatar se of’rece à morte.
Oh! grande amor de que não há exemplo!
Amor que só num Deus podia achar-se!
Salve! Filho de Deus, resgate do homem!
Do canto meu será copioso assunto,
Dora em diante, o teu nome sacrossanto:
Nunca tem de esquecer minha harpa, nunca,
Juntos aos de teu Pai os teus louvores.”
75
Que (deixando regiões faltas de presas,
Para ir fartar-se nas mimosas polpas
De anhos e de cabritos desmamados
Por onde as greis arquejam de gordura),
Voa para as ribeiras deleitosas
Do sacro Ganges, do ruidoso Hidaspe,
Porém, no curso da derrota, pousa
Nos estéreis areais de Sericana,
(Onde conduzem Chins com vento e velas
Seus leves carros de bambu tecidos), —
Assim em largo espaço o rei das trevas,
Acima, abaixo, solitário, ansioso
Vagava, nesse bravo mar de terra!
Solitário!... que então nessas paragens
Vivo ou sem vida nenhum ente havia;
Mas ai!... depois, pelo correr dos tempos,
Quando o pecado envenenando os homens
As obras lhes encheu de atroz vaidade,
Povoaram-se de néscias aparências
Idas da terra, iguais ao leve fumo,
Emanadas de fúteis entidades.
Lá vão ter indiscretas esperanças,
Que, por bases tomando vãs quimeras,
Glória, perene fama ou dita, aguardam
Ou cá no Mundo ou na futura vida.
Ações que o galardão terreno buscam,
Frívolos ademães do cego zelo,
Os tão penosos, tão nojentos frutos
Da atroz superstição, da hipocrisia,
Ao justo ali retribuição encontram.
Da Natureza as obras incompletas,
Desvios da razão, falazes sonhos,
Vão para ali (té que afinal se esvaem), —
Mas para a Lua não, como há quem forje
(Deste astro belo os argentados campos
É mais provável que povoados sejam
De entes — espécie média entre anjos e homens).
As vãs proezas posto que afamadas
Dos antigos, aspérrimos gigantes, —
De Babel a demente arquitetura
De Senaar nos campos elevada,
Que inda empresários acharia agora
Se co’o próprio fabrico deparassem, —
Empédocles que, um nume simulando,
76
Loucamente saltou nas flamas do Etna, —
Cleômbroto que ansioso ao mar se arroja,
Gozar querendo de Platão o Elísio, —
Os eremitas vãos e inúteis frades
(Sejam quais forem da roupeta as vistas,
De sua eivada ciência as bagatelas
Com que embusteiros a ignorância aturdem), —
Andam ali vagando! e os peregrinos
Que ao Gólgota distante caminharam
Para achar morto o que no Empíreo reina, —
E esses que, ao ver aproximar-se a morte,
Se envergam dentro de hábitos fradescos,
Acreditando que por tal disfarce
Entram seguros nos empíreos reinos!
Mas, — os planetas sete e os fixos lumes,
A esfera cristalina balançada
Formando em si trepidação famosa,
E o primo-móbil, uma vez que passam, —
Lá do Céu num postigo avistam Pedro
Que os espera na mão coas chaves prontas,
E já do Empíreo no degrau primeiro
O levantado pé firmar procuram...
Eis que atro furacão súbito os sopra
A dez mil léguas longe em rodopios
Pelo espaço confuso de ínvios ares!...
Então veríeis hábitos, capuzes,
Contas, relíquias, bulas, indulgências,
Beatos, bonzos, peregrinos, frades,
Em mil juntos montões, brincos do vento,
No exterior do Universo andando às tontas
Por largo limbo então sem habitantes,
Mas que depois, por muitos conhecido,
Chamou-se — o “Paraíso dos dementes”.
77
Dos reis não vista nos umbrais ufanos:
Era a fachada de diamantes e ouro;
De flamívomas gemas marchetado
O inimitável pórtico fulgia;
Não pudera na Terra modelar-se,
Não houvera pincel para exprimi-lo!
A escada parecia-se à que outrora
Viu Jacob, onde os anjos sem quantia
A subir e a descer passando andavam,
Quando ele, de Esaú então fugindo,
Na presença dormia das estrelas,
E, apenas acordou, disse exclamando
— “Além estão do Céu as sacras portas.”
78
Desde a nascente do Jordão sagrado
Té Bersabe, onde a Terra-Santa findam
Do Nilo o grão país, da Arábia os mares.
79
Nos flóreos vales, nos amenos bosques.
80
Também menos formosa se imagina
A pedra que os filósofos debalde
Compor por muito tempo têm querido, —
Debalde, não obstante congelarem
Por arte insigne o líquido mercúrio
E reduzirem ao normal estado
Este velho Proteu tão vário em formas!
E causa maravilha que em seus campos
O mais puro elixir o Sol exale,
E ouro potável em seus rios volva,
Quando de nós tão longe ele origina,
Co’os humores terrestres misturando
Só de seus raios vívida virtude,
Produtos tão gentis, tão lindas cores?
81
(Suave habitação do homem ditoso),
Onde o caminho seu findar devia
E a série começar dos males nossos.
Porém primeiro muda o próprio aspecto
Que empecê-lo podia ou ser-lhe infausto:
Finge-se querubim de ordem segunda;
Em seu belo semblante está sorrindo
A vívida, celeste juventude,
E nos seus membros se difunde a graça
Que a semelhante jerarquia é própria;
Tão sagaz representa o seu disfarce!
Nas faces ambas em anéis lhe brincam
Os cabelos gentis de c’roa ornados:
De cores várias entremeadas de ouro
Asas tem; apanhado acima, traja
Vestido acomodado a leve vôo;
E, por que melhormente se dirija,
Com gravidade empunha argêntea vara.
82
Em qual dos orbes que nesse éter fulgem
Tem o homem fixa estância, ou se a seu gosto
Pode em todos morar! vê-lo procuro
Para admirar, com porte recolhido,
O que possui pela mercê do Eterno
Tantos mundos e graças tão subidas.
No homem então adoraremos todos
O Autor de tudo, — que arrojou no Inferno
A revel multidão de seus contrários,
E, para deles reparar a perda,
A progênie feliz criou dos homens
Que o servirão com fido acatamento.
Os caminhos de Deus são todos sábios.”
83
Decerto, são de Deus as obras todas
Da maior perfeição e maravilha:
Conhecê-las, passá-las na memória,
Sempre causa prazer inexprimível.
Mas qual criado entendimento pode
Compreender de todas a quantia,
E a ciência sem limites donde nascem,
Que oculta causas e só mostra efeitos?
Eu vi a massa de que é feito o Mundo
Inda bruta, inda informe, unir-se em globo:
Assim que a voz de Deus foi proferida,
O Caos obediente ouviu-a, — e logo
Seu estrondoso horror fica regrado;
Do infinito a amplidão confins recebe.
À sua voz segunda as trevas fogem,
Brilha a luz, ordem da desordem nasce.
Confundidos té’li os elementos,
Ar, água, terra, fogo, eis que se apressam
Buscando os sítios que lhes são marcados,
Do Céu a etérea quinta-essência sobe
Em diferentes formas animada;
De rotação o movimento imprime
Nos astros, nas inúmeras estrelas,
Que têm espaço e giro destinados;
O resto dela em círculo sustenta
Deste Universo as côncavas muralhas.
Para baixo, olha além: — naquele globo,
Que fulgura do lado a nós fronteiro
Coa refletida luz daqui mandada,
A Terra vês, feliz morada do homem;
Essa luz é seu dia; a ausência dela
Lhe forma a noite, que lhe invade agora
O outro hemisfério: assim a noite e o dia
Giram por ela sempre e sempre opostos.
Mas ali vê que brilha argêntea, a Lua
(O astro vizinho à Terra assim se chama):
Pelo meio dos Céus passeando airosa
Seu círculo mensal finda e começa,
Luz recebendo no triforme rosto
Emprestada do Sol e que despende
Em alumiar a Terra enquanto é noite,
De alvo clarão as trevas abafando.
E tão lindo lugar, que além te aponto,
O Paraíso; nele Adão habita;
84
Estão no seu jardim aquelas sombras.
Não tens que errar. Adeus: vou-me a meu cargo.”
LIVRO IV
Satã, — à vista do Éden, e perto do lugar onde devia lançar-se à empresa
atrevida que ele só tomara a si contra Deus e o homem, — entra consigo
mesmo em diversas dúvidas: o medo, a inveja, a desesperação, o combatem;
mas por fim confirma-se no mal, caminha para o Paraíso (cuja perspectiva
externa e situação se descrevem), salta-lhe por cima das muralhas, e na forma
de abutre pousa sobre a Árvore da Vida, como a mais alta do jardim, para olhar
em redor. Descrição do jardim. Satã vê pela primeira vez Adão e Eva; maravilha-
se de sua excelente forma e feliz estado, mas sempre com a resolução de
tramar-lhes a perda; ouve os seus discursos, dos quais conclui que lhes era
proibido sob pena de morte comer dos frutos da Árvore da Ciência; daqui parte
para achar-lhes a tentação, seduzindo-os a transgredir aquele preceito; no
entanto por algum tempo os deixa para por outros meios indagar mais
miudamente as suas circunstâncias. Então Uriel, descendo num raio do Sol,
avisa a Gabriel (que a seu cargo tinha guardar a porta do Paraíso) de que um
mau espírito escapara do Inferno e passara por sua esfera ao meio-dia, na forma
de um bom anjo, em direção ao Paraíso, — e de que ele o conhecera depois no
monte por seus furiosos trejeitos. Gabriel promete achá-lo assim que
amanheça. Vem a noite; Adão e Eva tratam de ir descansar; o seu aposento; a
sua oração da noite. Gabriel dispõe as colunas para fazerem a ronda noturna do
Paraíso, destina dois fortes anjos ao aposento de Adão para que o Espírito mau
não cause algum dano aos dois esposos que dormiam: ao ouvido de Eva o
encontram tentando-a em um sonho, — e levam-no por força à presença de
Gabriel, pelo qual é interrogado e a quem responde com desprezo. Satã
prepara-se para resistir; mas, estorvado por um sinal do Céu, retira-se do
Paraíso.
85
Até os ouvidos do inspirado em Patmos,
Prorrompeu o — “Ai dos habitantes do orbe!” —
Dando sinal de que o dragão do Averno
Vinha, depois de perdição segunda,
Nos homens exercer crua vingança...
Que dor! Não dar-se aos pais da humana estirpe
Agora ouvirem tão funesto brado!
Avisados assim da traição negra
Que seu oculto imigo lhes tramava,
Seu dano minorar talvez pudessem,
Mesmo escapar-lhe do funéreo laço!
86
De vez em quando ao Céu e ao Sol os vira
Que em todo o seu fulgor então se assenta
Na meridiana altura majestoso.
E depois, engolfado em pensamentos,
Nestas palavras suspirando rompe:
87
Assim nunca esperança desmedida
Me ateara da ambição o horrendo fogo!...
Que digo?! Outro poder de igual grandeza
Igual tentâmen em meu lugar fizera;
Mesmo eu, como inferior, me unira co’ele.
Mas porventura não ficaram firmes
Outros grandes poderes, rechaçando
Todas as tentações próprias ou de outrem,
Ganhando imensa glória em tal repulsa?
E não possuías tu, como eles todos,
Suficiente valor, vontade livre?
Possuía-los decerto: então... como ousas
Queixas fazer sem teres de que as faças,
A não ser desse amor que, igual e livre,
Um Deus benigno repartiu com todos?...
Amor, que é para mim o mesmo que ódio,
Esta desgraça eterna em mim causando!...
Então seja esse amor também maldito!
Mas não!... Maldito eu seja porque injusto
Livremente escolhi contra meu senso
O que tão justamente agora eu sofro!
Quanto sou infeliz! Por onde posso
Fugir de sua cólera infinita
E de meu infinito desespero?...
Só o Inferno essa fuga me depara:
Eu sou Inferno pior! o outro, cavando
No fundo abismo, abismo inda mais fundo,
E ameaçando engolir-me em tais horrores,
Para mim fora um céu se o comparasse
Com este Inferno que em mim mesmo sofro!
Ai de mim! que afinal ceder me cumpre!
E como hei de mostrar que me arrependo?
Por que modo o perdão obter eu posso?
Só pela submissão... Palavra horrível!
Meu nobre orgulho atira-te bem longe,
Repele-te a vergonha que eu sentira
À vista dos espíritos imensos
Que seduzi, fazendo outras promessas
Que de vil submissão muito distavam,
Blasonando-lhes pôr em cativeiro
O Onipotente Regedor do Empíreo.
Que dor infanda!... Pouco eles conhecem
Quão cara a vã jactância hoje me custa!
Imerso em que tormentos se debate
88
Meu triste coração no entanto que eles
Por monarca do Inferno hoje me adoram!
Subi mui alto com diadema e cetro;
Depois... cheio de horror caí tão baixo:
Eis-me só na miséria soberano;
É própria da ambição esta alegria!
Inda mais: — se eu pudesse arrepender-me
Ou, por decreto da divina graça,
Alcançar meu estado primitivo,
Logo essa elevação em mim erguera
Pensamentos de orgulho que anulassem
Quanto jurara submissão fingida:
Anularia a prístina grandeza
Votos que entre torturas se exprimiram
Como írritos e vãos, — que nunca pode
A reconciliação ser verdadeira,
Quando do ódio mortal o ervado acúleo
Tão profundas feridas tem aberto!
Seriam deste modo mais horríveis
A recidiva culpa, a nova pena;
Comprara intermissão de pouca dura,
E obtida mesmo assim com dor dobrada,
Para afinal curtir mais crus tormentos!
O meu flagelador tudo isto sabe:
Assim, de dar-me a paz dista ele tanto
Como eu de lha pedir; eis para sempre
Perdida toda a sombra de esperança!
Em vez de nós, expulsos, exilados,
Criada já existe a prole humana,
Prazer novo de Deus, e este amplo Mundo
Para morada deleitosa dela.
Foi-se a esperança... e não regressa nunca!...
Co’ela o medo se foi, foi-se o remorso!
Para mim não há bem que já exista!
Serás meu bem, ó mal! por ti ao menos
O império universal com Deus divido,
E na porção maior talvez eu reine:
O homem e o Mundo o saberão em breve.”
89
Pareceria logo esse semblante
A quem quer que o notasse; empíreos gênios
Não têm desordens tais, sempre estão puros.
90
Esmaltam das ramagens a verdura,
Onde o Sol mais vistoso emprega os raios
Do que nas belas, vespertinas nuvens,
Ou no arco multicor que enfeita o pólo
Quando Deus benfazejo a chuva manda.
91
Muros formando em círculos fechados,
De homem ou de animal o passo impedem.
Uma porta somente ali havia
Do lado oposto que ao nascente olhava.
Assim que o rei das sombras a percebe,
Despreza entrada que mui fácil julga,
E, para prova do desprezo, salta
Co’um breve pulo, galga de improviso
Do monte a altura, o muro inda mais alto, —
E logo lhe cai dentro, em pé ficando.
92
De cima da árvore olha, e em longo alcance
Vê todos os prodígios destinados
Para o deleite e precisões dos homens;
Num distinto lugar acha em resumo
Da Natureza as opulências todas, —
Ou, melhor, vê ali um Céu na Terra:
Era o jardim de Deus, o Paraíso,
Que ele mesmo plantou no oriente do Éden.
93
Ganhando o rio o prístino volume,
Em quatro grandes rios se reparte
Que, por muitas regiões, famosos reinos,
Cuja notícia agora inútil fora,
Em direções diversas vão correndo.
94
Do outro lado sombrias, cavas grutas
Amena fresquidão do seio exalam;
E por fora as arreia, em teor de manto,
Viçosa vinha de purpúreos cachos
Pomposo luxo rastejando, — ao tempo
Que de outeiros declives água pura
Com brando murmurinho vem descendo,
Dispersando-se aqui, além num lago
Formando largo, cristalino espelho,
Cujas bordas franjadas orna o mirto.
95
Tudo a seus olhos novo, tudo estranho!
96
Fazendo conceber-lhe que é pureza
O que de formas frívolas não passa),
Nem banido, o melhor da vida do homem,
A simples inocência imaculada.
97
O pesado elefante, pondo em obra
Seu poder todo por fazer-lhes festa,
Torce em mil voltas a flexível tromba;
Perto ali deles a serpente astuta,
Insinuando-se meiga, tece airosa
Um laço górdio na brunida cauda
E ostenta provas da fatal malícia,
Que mesmo assim nem era suspeitada;
Outros já fartos dormem sobre a relva,
Ou despertos se assentam ruminando.
98
Não obstante de mim tu não o teres:
Busco em estreito nó a ti unir-me;
Quero contigo ter mútua amizade,
Tão vinculada que moremos ambos,
Tu em mim, eu em ti, por todo sempre.
Talvez a minha estância não agrade,
Como este Éden tão belo, a teus sentidos;
Mas, tal qual é, recebe-a por ser obra
Desse teu Criador que tanto exaltas;
Deu-ma ele assim, assim eu ta franqueio.
As vastíssimas portas há de abrir-te
O Inferno ovante, e seus monarcas todos
Hão de vir fora delas receber-te:
Terás ali morada mui diversa
Deste circuito exíguo: nela pode
Tua inúmera estirpe acomodar-se.
Se não achares grata essa vivenda,
Deves agradecê-la ao que me obriga
A tramar contra ti, que não me ofendes,
Esta vingança atroz que só devia
Recair nele que me ofende tanto.
Pela inocência pura que te adorna
Enterneço-me assaz; porém, contudo,
O público interesse, a honra empenhada,
O ardor de me vingar engrandecendo
Coa conquista do Mundo o meu império,
Obrigam-me a fazer coisas agora
Que eu, inda que votado às penas do Orco,
Em outras ocasiões abominara.”
99
Perfaz, deles em torno, um lento giro:
Já tigre se afigura, quando o acaso
Dois mui bonitos gamos lhe descobre
Que ao pé de um bosque ou num aceiro brincam;
Debruçado se cose então coa terra,
Depois a miúdo se ergue, abaixa, ajeita,
Buscando pouso donde em breve pulo,
Sem medo de os errar, consiga logo,
Em cada garra o seu, colhê-los ambos.
100
Prosseguindo a tarefa deleitosa
De cortar estes ramos pululantes,
De estas flores suster: sendo isto lida,
Fora doce contigo partilhada.”
101
Perpétuo sócio é teu, tu dele imagem:
Dar-lhe-ás, de ambos igual, prole infinita;
Serás chamada mãe da humana espécie.”
Que faria senão seguir de pronto
Meu guia oculto? Avanço; eis que te vejo:
Perto estavas de um plátano frondoso;
Achei-te belo e grande, — mas, contudo,
Menos mimoso, menos engraçado,
Menos encantador, menos fagueiro,
Que a figura no lago há pouco vista.
Mas logo me retiro... e tu gritando
Segues-me e dizes: — “Vem, vem cá, ó Eva!
De quem foges? Dos meus (atende, ó cara)
Teus ossos são, da minha carne a tua:
Dei-tos do lado meu que se coloca
Mais junto ao coração, fonte da vida;
Quero-te unida a mim agora e sempre:
Em ti procuro parte de minha alma
Como a consolação de mais ternura:
De mim procuro em ti a outra metade.”
Com tua mão gentil então te apossas
Da minha mão; cedi: desde esse tempo
Conheci quanto cede a formosura
Aos varonis primores, à sapiência
Que de homens é o verdadeiro ornato.”
102
Vê de relance tão ditosa cena.
Logo a si mesmo queixa-se dest’arte:
103
Que esses curtos prazeres vão sumir-se
Num pélago de longos infortúnios.”
104
Sabe que hoje ao mei’-dia veio ansioso
À esfera minha um anjo, pretendendo
Reconhecer melhor (segundo disse)
De Deus as obras e mormente o homem
Que certo é dele a mais recente imagem.
Ensinei-lhe o caminho: eis que ligeiro
Partiu. Mas pus-me a pesquisar seu porte;
Na montanha que fica ao norte do Éden
Pousou primeiro; ali diviso pronto
Por terríveis paixões escurecidos
Os olhos seus em que ressumbram planos
Ao Céu contrários: continuei a vê-lo
Té que se me ocultou sob estas sombras.
Temo que algum dos réprobos ousasse
Sair do Abismo a nos fazer mais guerras.
A vigilância tua deve achá-lo.”
105
Com prodigiosa rapidez girasse
Durante o dia do ocidente em rumo, —
Ou seja que esta nossa humilde Terra,
Menos veloz por menos amplo giro,
Rolasse então na direção do oriente).
106
Os Céus do oriente, levantar-nos cumpre
E às nossas gratas lidas entregar-nos.
Reclamam acolá pronta reforma
Das flores as latadas; mais adiante
Com ramos tão crescidos escarnecem
Nosso mesquinho trato as verdes ruas
Onde passeamos pelo ardor do dia,
E carecem mais mãos além das nossas
Que os renovos tão nímios lhes cerceiem:
Estas flores e bálsamos cheirosos,
Que jazem toscos, ásperos, torcidos,
Desenredar-se pedem se queremos
Sem estorvos passear. No entanto a noite,
Por lei da Natureza, o ócio nos dita.”
107
Nem da agradável tarde a perspectiva,
Nem da noite o silêncio entrecortado
Coa voz do rouxinol, — nem o passeio
No albor da Lua, ao brilho das estrelas, —
Ter poderiam para mim encantos
Se os eu gozasse sem estar contigo!
Mas por que luzem toda a noite os astros?
Para quem tão magnífico prospecto,
Enquanto os olhos nos encerra o sono?”
108
A milícia do Céu, juntando a miúdo
Empíreo instrumental e vozes de anjos,
Em cheia orquestra, com potente arroubo,
Não nos eleva aos Céus o pensamento?”
109
Do que a fatal Pandora enriquecida
Coas abundantes dádivas dos Numes
(Pandora, tanto parecida co’ela
Na perdição que ocasionou aos homens
Quando, trazida a Epimeteu por Hermes,
Co’os olhos belos estragou o Mundo,
Para que fosse assim vingado Jove
Por lhe roubarem o animante lume,
Que era dele somente privativo).
110
Do conjugal amor Eva se exime, —
Embora a hipocrisia austera e falsa,
Fonte de abusos, a seu modo entenda
A inocência, a pureza, a dignidade,
E de impuro coa mancha vitupere
O que o supremo Deus declara puro,
Impõe a muitos, deixa livre a todos.
(Existe a geração por lei divina:
Quem abstinência dela nos ordena,
Destrói a humana espécie, a Deus insulta.)
111
Deixam-se então dormir ao som que trinam
Os rouxinóis por toda a noite amena,
E imensas chovem do florido teto
Nos alvos membros nus purpúreas rosas
Que a manhã prontamente recupera.
112
Que vão tapando no ar o albor da Lua.
113
E não qual vosso igual, me entronizava
Onde erguer-vos jamais vos foi possível:
O não me conhecerdes vos inculca
Lugar muito inferior na vossa classe;
Mas se me conheceis, vossa pergunta
De nada vale e tão inútil fica,
Como a mensagem cujo encargo tendes.”
114
Em renhido combate à sós contigo:
Fez-te cobarde a perda da virtude.”
115
“Gabriel, tinhas no Céu fama de sábio
(Satã com cenho mofador lhe torna),
E eu tal te cria; mas... põe-me perplexo
Quanto hoje me perguntas desvairado.
Gostará de sofrer quem vive no Orco?
Quebrar prisões para sair do Inferno
Quem recusara, achando ensejo próprio,
Mesmo a prender-se ali por mil sentenças?
Tu mesmo, tu decerto te arriscaras
Valente a procurar outro algum sítio,
De tão feros tormentos bem distante,
Onde esperasses que a terríveis penas
Sucederiam cômodos profícuos,
Que agra, perpétua dor se convertesse
Nas delícias que vejo aqui profusas.
Do que me ouves dizer, julgar não podes,
Tu, que jamais do mal provaste os gumes
E só idéia tens do bem que gozas.
Quererás objetar-me o mando altivo
Do que lá nos prendeu? Se ele intentava
Conter-nos nesse cárcere maldito,
Mais firmes lhe fechasse as férreas portas!
Assim te respondi sobejamente:
No mais que ouvido tens, dizem verdade;
Mas nada prova em mim violência ou dano.”
116
Com castigo setêmplice te puna
E teu vasto saber flagele no Orco,
Mostrando a ti, que nunca te escarmentas,
Não haver pena que igualar se possa
A seu furor de acinte provocado.
Mas por que vens só tu? Por que contigo
Não vem ser livre todo inteiro o Inferno?
Acompanhar-te os sócios recusaram
Porque os tormentos neles menos pungem?
Para sofrê-los de valor tens míngua?
No abandonado exército expuseste
Qual forte causa, tu, chefe animoso,
O primeiro em fugir, tinhas julgado
Exigir a evasão a que te expunhas?
Decerto não! — Que, a ser assim, não foras
O único tu que do Orco se escapara.”
117
Em distâncias prescritas e ante o sólio,
Lindas canções, significando tudo
Fazer zumbaias, não saber de guerra.”
118
Que o Rei do Empíreo quando neles monta,
Ou que o jugo que obtendes tu e teus sócios,
Quando a carroça triunfal lhe puxas
Pelas ruas do Céu que estrelas calçam.”
119
Eis logo a concha, que a Satã continha,
Acima voa e vai bater com força
No braço da balança. Ao ver o agouro,
Fala Gabriel assim ao rei das trevas:
LIVRO V
Chega a manhã. Eva relata a Adão o seu perturbado sonho: ele não o aprova
mas anima e consola a esposa inocente. Vão-se entregar a seus trabalhos
quotidianos: seu “Hino da Manhã” à porta do aposento. Deus, para fazer
indesculpável o homem, envia Rafael a admoestá-lo a que permaneça
obediente, — e a declarar-lhe que seu estado é livre, que seu inimigo está
perto, quem ele seja, e o mais que a Adão convém saber. Rafael desce ao
Paraíso; descreve-se o seu porte; Adão percebe-o de mui longe, estando
assentado à porta do seu aposento, adianta-se para recebê-lo, acompanha-o
até ali, e oferece-lhe os melhores frutos do Paraíso colhidos então por Eva: seus
discursos à mesa. Rafael propõe a sua mensagem, e avisa Adão do seu estado e
de seu inimigo; relata (respondendo a perguntas do primeiro homem) quem
seja este seu inimigo, o modo e razões por que ele o é, — começando desde a
primeira revolta no Céu, narrando o que deu ocasião a ela, como o inimigo
arrastou consigo para as regiões do norte as suas legiões, e ali as incita a
rebelarem-se com ele persuadindo todos, exceto o serafim Abdiel, que por
argumentos pretende dissuadi-lo e se lhe opõe, e depois o abandona.
120
E com pérolas junca ovante a Terra.
121
Quanto me alegro de encarar de novo
A face tua e da manhã o brilho!
Esta noite (não tive outra como esta)
Sonhei (se sonho foi)... mas não contigo,
Nem co’os trabalhos de amanhã ou de ontem,
Como costumo; ofensas e desordens,
Ao pensamento meu desconhecidas,
Com tropel horroroso o perturbaram.
Pareceu-me que junto ao meu ouvido
Alguém, com voz tão doce como a tua,
Me chamava a passear, assim dizendo:
“Eva, inda dormes? Vê quão fresco e grato
“O tempo está: tudo é silêncio, exceto
“Onde das sombras o cantor alado,
“Agora já desperto, aos ares solta
“Suavíssimas canções que amor lhe inspira.
“Fulge de todo cheia a Lua agora,
“Com mais sombria luz e assim mais grata
“Adornando das coisas o prospecto,
“Mas em vão se ninguém põe nela os olhos.
“O Céu atento vela para ver-te
“A ti, da Natureza ó doce encanto.
“Todas as coisas vendo-te se alegram;
“Pela beleza tua arrebatadas,
“Cedendo a teu influxo, em ti se enlevam.”
Crendo que me chamavas, logo me ergo;
Mas não te achei, e para achar-te avanço.
Julguei que ia passeando solitária
Por caminhos que súbito corridos
Me levam junto da árvore vedada,
Que mais formosa então se me afigura
Ao brando luar do que ao fulgor do dia:
E, quando absorta os olhos nela cravo,
Reparei que uma alígera figura,
Como as vindas do Céu que a miúdo vemos,
Ali se achava; seus cabelos de ouro
Ambrosia rescendente destilavam;
E contemplando extática entretinha,
Na mesma árvore, vista e pensamento.
“Bela planta de frutos carregada,”
(Então diz-lhe), “ninguém, nem Deus nem homem
“Esse peso se digna aligeirar-te
“E provar teu sabor delícias todo!
“Justo é que assim a ciência se despreze?
122
“Qual dos dois, ou inveja ou despotismo,
“Nos proíbe gozar tua doçura?
“Proíba quem quiser!... ninguém consegue
“Dos mimos teus, que pródiga me ofertas,
“Invejoso privar-me dora em diante:
“Por que motivo aqui se me apresentam?”
Disse; e com mão audaz e insano arrojo
Apanha e come o proibido fruto.
Tão petulantes vozes escutando
Por tão hórrida ação verificadas,
Gélido susto as forças me decepa.
Mas ela assim de gosto se arrebata:
“Fruto divino, que, de ti tão doce,
“Muito mais doce inda és assim colhido!
“Vedam-te aqui como, segundo entendo,
“Só para os altos Deuses reservado,
“Podendo homens erguer ao grau de Numes.
“Se pela transmissão o bem se aumenta,
“Se nisto nada perde o autor de tudo,
’’Se mais louvores deste modo o incensam.
“Por que dos homens não se fazem Numes?
“Criatura feliz, Eva formosa,
“Participa também do excelso fruto:
“És feliz, muito mais sê-lo inda podes;
“Ninguém mais do que tu de o ser é digno.
“Come, dele, e entre os deuses dora em diante
“Deusa serás, não confinada à Terra,
“Mas, ora no ar subida, ora entre os astros,
“Verás, por teu poder único e próprio,
“A vida que no Céu os deuses passam.
“Que tu também alcançarás como eles.”
Disse, vem para mim, chega-me à boca
Porção do mesmo fruto que apanhara:
Seu grato aroma arrebatou-me tanto
Que libertar-me de o comer não pude.
Súbito vôo coa figura alada
Muito acima das nuvens, donde observo,
Lá baixo a Terra extensa em longo, em largo,
Muito variado, amplíssimo prospecto.
Maravilhei-me da mudança minha,
Do vôo meu a tão remota altura...
Eis, nisto o guia meu desaparece,
E eu caio: o mais se confundiu no sono.
Mas quão alegre despertei agora,
123
Vendo ser isto fábula sonhada!”
124
Começando a sorrir-se, alegra o Mundo.
Levantemo-nos: vamos esmerados
Cuidar das nossas últimas fadigas
Entre fontes e umbrosos arvoredos,
Entre flores que no ar agora expandem
Seus melhores, recônditos aromas,
Juntos por toda a noite em plena cópia
E para ti decerto reservados.”
125
As gratas vozes com que realça o canto.
126
Que formais e nutris as coisas todas,
Variai em honra do Arquitipo eterno
Sempre um novo louvor, manifestado
Nas que fazeis transformações contínuas!
Névoas e exalações (que ides agora
Dos vaporosos lagos, das montanhas,
Pouco e pouco a subir, pardas ou negras,
Até que o Sol com cercadura de ouro
Vossos debruns lanígeros enfeite),
Do Onipotente em honra levantai-vos:
Ou de enroladas nuvens, raras, densas,
O firmamento diáfano cobrindo, —
Ou da sequiosa terra o grêmio entrando
Em despenhadas, abundantes chuvas, —
Ou subindo, ou descendo, — ao Ser eterno
Não cesseis de tecer louvor exímio!
De o louvar não cesseis nem vós, ó ventos,
Que, já bonança, já tufão medonho,
Soprais dos quatro horizontais quadrantes!
Balanceai vossos cumes, ó pinheiros,
E plantas todas, em sinal de aplauso!
Fontes, que ides correndo e murmurando,
Pronunciai seu louvor nesse murmúrio!
Formai coro, viventes criaturas:
Vós, aves, que dos Céus até as portas
Subis trinando, seu louvor excelso
Levai nas asas e no etéreo canto!
Vós todos quantos vos moveis nas águas,
Vós todos quantos percorreis a terra,
Grandes, pequenos, mínimos, enormes,
Testemunhai se, de manhã, de tarde,
Eu deixo de em meu canto repeti-lo
Fazendo ouvir seu nome sacrossanto
Ao monte, ao vale, à fonte, à luz, às sombras!
Salve, Senhor de tudo! Sê grandioso
Para todos os bens fazer-nos sempre;
E, se a noite deixou haver-se a ocultas
Juntado contra nós algum desastre,
Dispersa-o, como a luz dispersa as trevas.”
127
Entram com zelo nas rurais fadigas
Por entre folhas, sob ameno orvalho:
Ali uma ala de árvores de fruto
Nímio longos estende opressa os ramos,
E os convida a que próvidos lhes vedem
Os estéreis abraços: noutro sítio
Estão videiras para unir-se aos olmos
As quais, em torno deles alongando
Seus núbeis braços, levam-lhes o dote
Nos adaptados cachos com que enfeitam
Da árvore estéril a pomposa rama.
128
Não por força, que força a opor-lhe havia,
Mas por vis seduções e arteiro engano.
Tudo lhe explana a fim que não alegue,
Se transgredir por contumaz vontade,
Somente por surpresa ser vencido,
Que avisado não foi de precaver-se.”
129
Parece às aves todas uma fênix
Como aquela que (a só na espécie sua)
Voa direita à nobre, egípcia Tebas,
Para depositar as próprias cinzas
Do fulgurante Sol no templo augusto.
130
No zênite disparava o Sol a prumo
Seus mais férvidos raios sobre a Terra
Que no íntimo introduz calor mais vivo
Do que havia mister a espécie humana;
E Eva lá dentro, às costumadas horas,
Preparava o jantar com doces frutos
Que vista, olfato, e gosto lisonjeiam, —
Não esquecendo os líquidos nectários,
O leite, os sumos vegetais mimosos
Que tão gratos a sede lhes mitigam.
131
Os benefícios seus prodigaliza.”
132
Faz-lhe submissa, afável reverência,
Não com temor mas co’o respeito próprio
A outra mais elevada jerarquia.
“Prole dos Céus (lhe diz), — que tanta glória
Só pode tê-la um ser nos Céus nascido, —
Já que, dos tronos empireais descendo,
Estes sítios honrar te dignas hoje,
Serve-te de fazer-nos companhia
Nesta ampla terra a nós por Deus doada,
Além entrando no vergel sombrio
Onde os mais doces frutos te ofereço
Neste agradável Éden produzidos,
E descansas também até que abrande
Da meridiana calma a força ingente,
E pela fresca tarde o sol decline.”
133
Em número maior que os vários frutos
Nas árvores do Eterno produzidos,
Quais os que ostentas nesta mesa agora.”
134
O semblante redondo of’rece manchas,
Crassos vapores são que inda não foram
Na substância da Lua convertidos;
Também ela de seu mádido globo
Não deixa de exalar algum sustento
Para esses orbes que mais alto giram.
O Sol, que fulgurante se reparte
Por todos eles, deles todos colhe
Nutritiva exalada recompensa
E haure do Oceano as vespertinas ondas.
Se lá nos Céus as árvores da vida
Com frutos ambrosiais se condecoram,
E almo néctar os pâmpanos produzem, —
Se nas manhãs o orvalho sacudimos
Dos ramos feito mel, e o solo achamos
De doces grãos de pérolas coberto, —
Contudo, aqui seus dons o Eterno mostra
Com tanta variedade e tanto brilho
Que podem co’os do Empíreo comparar-se:
Deles comer portanto não duvido.”
135
Estando já saciados sem excesso,
Grande e súbita idéia a Adão ocorre
De aproveitar o ensejo que lhe é dado
Neste feliz colóquio, — perguntando
O que há por cima deste nosso Mundo,
Que essências são as que no Céu habitam,
Cuja excelência e majestoso aspecto,
Cujos poderes e esplendor divino
Tudo quanto era humano superavam.
Assim pois, com palavras cautelosas,
Ao mensageiro empíreo ele se expressa:
136
Forma-se o fruto, nutrimento do homem.
Do assimilado fruto então se extrai
Substância que, por ser sutil e ativa,
De espíritos vitais possui o nome, —
Da qual outra mais tênue se origina
Sendo animais espíritos chamada;
Desta requinta-se outra inda mais nobre
E intelectuais espíritos expressa, —
E de suas funções faz que resultem
Sentidos, fantasia, entendimento,
Cujo complexo constitui a vida
Donde emana a razão, essência da alma.
No homem terreno, no celeste arcanjo,
As almas são iguais por natureza;
Nos graus de perfeição porém diferem:
Pelo discurso enquanto o homem pesquisa,
O anjo pela intuição longe penetra.
Maravilha não é que eu não recuse
O que bom para vós achou o Eterno,
E que, qual vós o converteis na vossa,
Eu o transmute na substância minha:
Tempo virá, sem dúvida, em que os homens
Cheguem a ter a perfeição dos anjos,
E os manjares celestes lhes convenham:
Talvez, mesmo co’os térreos comestíveis,
Seus corpos em espíritos se mudem,
E, melhorados pelo andar do tempo,
Ao éter, como nós, subam alados,
Morando ou no éter, como for seu gosto,
Ou nas plagas do Empíreo rutilantes, —
Se obedientes à lei vos conservardes
E mantiverdes sempre inteiro e firme
O amor do imenso Deus de quem sois obra.
A dita em que viveis gozai no entanto:
Maior por ora não vos é possível.”
137
Mas o que impõe a cláusula que ajuntas
— Se obedientes à lei vos conservardes? —
Nós desobedecer também podemos?
Negar devido amor é-nos possível
Àquele que nos fez do pó da terra
E neste Éden nos pôs onde gozamos
A mor ventura que entender é dado
À fantasia do desejo humano?”
138
Do que ouço os cantos que, na amena noite
Pelos ares trinando docemente,
Os coros querubínicos entoam
Do cimo desses montes circunstantes.
Não sabia que livres se criaram
As minhas obras, a vontade minha;
Contudo, nunca me esqueci que devo
Amar o autor de tudo, e ser exato
Em cumprir seu preceito único e justo:
Razão e instinto assim me encaminhavam
E sempre nesse teor serão meus guias.
Mas do Céu os sucessos, que apontaste,
Em mim alguma dúvida promovem;
Por isso tanto mais ouvir desejo
Deles a narração, se for teu gosto;
Na verdade, será ela estupenda,
Digna de ouvir-se com mudez sagrada.
Do dia espaço largo ainda nos resta
Pois que o Sol, tendo feito meio giro,
A outra metade começou agora
Dos Céus na ampla extensão que nos circunda.”
139
“Quando inda não havia este Universo
(Reinando o rude Caos onde agora
Os Céus se movem e descansa a terra
Sobre seu próprio centro equilibrada),
Um dia (pois que o tempo unido ao moto
Abrange a eternidade, — e tudo mede
Por presente, pretérito e futuro),
Nesse dia em que fausto começava
Um dos anos amplíssimos do Empíreo,
Foram, de Deus por citação solene,
Chamados os exércitos dos anjos
Que, das regiões do Céu todas e logo,
Vêm, e ao redor do trono onipotente
Em ordem fulgurante se colocam,
Seus grandes generais trazendo à testa.
Dez milhões de bandeiras, de estandartes,
Pelo âmbito se erguiam das colunas
E, fuzilando nos sublimes ares,
Distinguiam os graus das jerarquias:
Também nos seus tecidos refulgentes
Divisas sacrossantas se estampavam,
Com veementes expressões mostrando
Do seu amor e zelo os puros atos.
Do exército depois que a massa imensa
Em círculos concêntricos foi posta,
O Poderoso Pai, tendo à direita
O Filho que existido sempre havia
Da Bem-aventurança no almo seio,
Do tope da flamígera montanha,
Que inundações de luz todo encobriam,
Dirigiu ao congresso estas palavras:
140
“Quais de uma alma porções indivisíveis.
“Quem negar-se ao seu mando, ao meu se nega;
“Cerceia toda a união que a mim o enlaça:
“Nesse dia será fora do Empíreo
“E da visão beatífica expulsado,
“E cairá na escuridão eterna,
“Golfo profundo, horrível, tormentoso,
“Sem dó, sem redenção, sem fim, sem pausa.”
141
Alegra-se de ver que eles se alegram.
Nisto a noite, coas nuvens exaladas
Do alto monte de Deus que ao longe verte
Luz e sombra, dos Céus na face pura
Torna o brilho em crepúsculo agradável:
Ela, que ali não traja o véu mais negro,
Já de rosa os orvalhos dispusera
Para o sono que todos necessitam,
Excetuando só Deus que nunca dorme.
Sobre vasta planície, átrios do Eterno,
Mais vasta que deste orbe a inteira face
Se reduzida a terrapleno fosse,
A multidão angélica, dispersa
Em mós de vário vulto, ali acampa
Pelas margens das vívidas correntes
Que da vida entre as árvores sussurram.
Pavilhões, tabernáculos celestes
Armam-se de repente sem quantia,
Onde gozam do sono da inocência
Pelas auras mimosas bafejados, —
Exceto os que em redor do Empíreo trono
Por toda a noite em turnos se revezam,
Do costume cantando os doces hinos.
Porém com este fim Satã não vela
(Tal hoje o chamam; seu primeiro nome
Não mais foi desde então nos Céus ouvido):
Ele que de um dos principais arcanjos
Tinha o lugar, se o principal não era,
Grande em poder, no grau, na estima grande,
Encheu-se de atra inveja aquele dia
Em que o Filho de Deus, com toda a pompa
Feito, aclamado por seu Pai imenso,
Messias foi, universal monarca:
E em seu orgulho suportar não pôde
Tal vista, idéia tal, que o desluziam.
Respirando desprezo e ardente raiva,
Decidiu, tão depressa à meia-noite
(Tempo mais próprio do silêncio e sono)
A hora escura bater a martelada,
Ir-se com todas as legiões que manda
E deixar do alto Deus o trono augusto
Em desprezo, sem culto e sem louvores.
Então o que imediato em mando lhe era
Manso acorda, e em segredo assim lhe fala:
142
— “Dormes tu, companheiro? Como podes
“Os olhos teus pregar? Já te não lembras
“Do decreto que inda ontem proferido
“Nos foi do Eterno pelos próprios lábios?
“Soías-me confiar teus pensamentos,
“E eu te fazia o mesmo: éramos ambos
“Um só; mútua amizade nos unia.
“Por que fatalidade esse teu sono
“Hoje te faz desconcordar comigo?
“Tu vês que novas leis nos são impostas:
“Novas leis de um monarca sempre devem
“Nos vassalos criar idéias novas,
“E promover debates que examinem
“Os resultados que seguir-se podem:
“Aqui dizer-te mais não é prudente.
“As imensas miríades convoca
“De quem somos os chefes e lhes dize
“Que, antes de retirar-se a noite umbrosa,
“Com pressa eu parto, — e que por ordem minha
“As inteiras falanges, que floreiam
“Seus estandartes sob o meu comando,
“Para os quartéis boreais súbito voem.
“Ali as festas preparar nos cumpre
“Com que o nosso monarca, o grão Messias,
“E suas novas ordens recebamos:
“Passar por entre as jerarquias todas
“E dar-lhes leis tenciona vir em breve
“Com triunfante pompa o Nume-Filho.”
Deste modo falou o falso arcanjo;
E perverso infundiu danoso influxo
Do companheiro no ânimo imprudente,
Que logo todos os poderes chama
Subalternos a si, cada um à parte.
Conta-lhes que antes de acabar a noite
O grande chefe em movimento punha
Seu estandarte: inculca-lhes arteiro
As noções que lhe foram sugeridas,
E ambíguas expressões que o ciúme ateiem
Lança entre eles a ver se assim os sonda,
Ou se a fidelidade lhes perverte.
Subitamente obedeceram todos
Ao sinal costumado, à voz do chefe,
Porque o seu nome, a dignidade sua,
Eram, sem hesitar, no Empíreo grandes.
143
O rosto seu, igual da Estrela-d’Alva
Que pelo firmamento pastoreia
Das estrelas o fúlgido rebanho,
Com malicioso embuste os alicia
E para o crime seu consigo arrasta
A terça parte das celestes hostes.
De Deus no entanto os olhos, que discernem
Os pensamentos mesmo os mais ocultos,
Viram (por entre as lâmpadas douradas
Que fronteiras ao sólio ardem de noite,
Mas não delas co’o auxílio) levantar-se
Fora do sacro monte a rebeldia:
Viram por quem e como se espalhara
Entre os filhos aspérrimos da aurora,
E as multidões que então bandeadas eram
Para ao decreto augusto se lhe oporem.
Deus, sorrindo-se, disse ao Filho amado:
— “Filho, em quem jubiloso estou olhando
“Em seu inteiro brilho a minha glória,
“De toda a minha potestade herdeiro,
“Agora mesmo assegurar nos cumpre,
“Lançando mão das invencíveis armas,
“O nosso império, a divindade nossa,
“A nossa onipotência sempiterna.
“Tem tal audácia o rebelado imigo
“Que intenta a par do nosso erguer seu trono
“Nas plagas extensíssimas do Norte:
“E, inda não satisfeito, premedita
“Decidir por batalha, em vasto campo,
“Nosso poder e jus que base tenham.
“Convém-nos ponderar e à pressa opor-lha
“Toda a força que fiel se nos manteve:
“Tudo empreguemos na defesa nossa
“A fim que por surpresa não percamos
“Este monte, este império, este alto sólio.”
Com aspecto sereno, quieto e puro,
Com inefável resplendor divino
Ao Pai o Nume-Filho assim responde:
— “Onipotente Pai, razão te assiste
“Para te rires de teus vãos contrários
“E seguro tratares com desprezo
“Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.
“A sua rebeldia dá-me glória,
“Que por seu ódio tanto mais se ilustra.
144
“De todo o teu poder quando me virem
“Para vencer sua altivez armado,
“Conhecerão pelo fatal evento
“Se menos que eles ser nos Céus me cumpre
“Ou se impor sei o jugo a tais rebeldes”
Disse. No entanto já Satã mui longe
Tinha voado veloz coas forças suas,
Exército que em número supera
As estrelas que fulgem na alta noite,
Ou as gotas do orvalho matutino
Na flor, na planta, pelo sol tornadas
Em pérolas que estrelas afiguram.
Passam regiões e impérios poderosos
De tronos, serafins e potestades,
Três jerarquias mas em grau diversas
(Regiões, às quais se o Mundo teu comparas,
Não é mais amplo do que vês este Éden
Comparado coa terra e extensos mares
De esféricos a plano reduzidos).
Aos limites por fim chegam do Norte:
Então entra Satã seus régios paços
Que, edificados sobre ingente serra,
Afiguram, de longe sendo vistos,
Em cima de montanha outra montanha.
Constam de cubos de diamante e de ouro
As torres, as pirâmides, os muros,
Que de Satã compõem o palácio,
Nome que no dialeto dos humanos
Há de dar-se a parelhas estruturas:
Pouco antes o orgulhoso o construíra,
Querendo ter com Deus toda a igualdade,
Pelo modelo do sagrado monte,
Onde foi o Messias proclamado
Do Céu perante as jerarquias todas:
Então Monte da Aliança o nominara.
Os exércitos seus ali ajunta,
Pretextando que assim o dispusera
Para se concertar com que alta pompa
Seria recebido o grão monarca,
Que ia chegar ali em prazo breve.
E com sutis calúnias procurando
Toldar todas as luzes da verdade,
Fere-lhes com tais modos os ouvidos:
— “Dominações, virtudes, principados,
145
“Tronos, poderes, se são vossos inda
“Estes imensos títulos pomposos,
“Se acaso inda não são nomes inúteis:
“Há quem, por um tirânico decreto,
“Todo o poder a si vem arrogar-se
“Fazendo dele horrível monopólio,
“E, sob o nome de monarca ungido,
“Eclipsa nossa glória e privilégios.
“Toda esta marcha rápida, noturna,
“Esta convocação acelerada,
“Promove-as ele, a fim de vermos como,
“Com que pompas nos cumpra recebê-lo
“Quando vier extorquir de nós — escravos! —
“Tributo genuflexo agora imposto,
“Vil prostração, que feita ante um já cansa,
“Que feita a dois se torna insuportável!
“E não pode outro arbítrio mais sisudo
“Dar-nos mais elevados pensamentos,
“Que a sacudir tal jugo nos ensinem?
“Curvareis vosso colo majestoso?
“Súplice joelho dobrareis humildes?
“Decerto o não fareis, se não me engano,
“Que vosso jus por vós é conhecido:
“Bem sabeis que no Céu nascidos fostes,
“No Céu antes de vós nunca habitado;
“E, se entre vós não sois iguais de todo,
“Iguais contudo sois na liberdade:
“As várias gradações, as jerarquias
“Da liberdade os foros não estragam,
“Antes maior firmeza lhes transmitem.
“Quem dentre iguais na liberdade pode
“Por direito ou razão alçar um cetro
“Sobre consócios seus, posto mostrarem
“Menor poder em si, menos fulgores?
“Não temos leis e nem por isso erramos;
“E quem tais leis impor-nos pode ou deve?
“Ninguém pois pode ser monarca nosso,
“Nem de nós exigir tão vil tributo
“Em desprezo dos títulos excelsos,
“Que atestam destinada nossa essência
“Para ser dominante e não escrava.”
Assim tão virulento, audaz discurso
Foi sem oposição todo escutado.
Mas entre os serafins eis se levanta
146
O impávido Abdiel; ninguém mais que ele
Adorava com zelo a divindade
E as ordens soberanas lhe cumpria.
Severo e santo zelo então o abrasa,
E assim a seu furor lhe solta as rédeas:
— “Oh blasfêmia! Oh soberba! Oh falsidade!
“No Céu ninguém supunha ouvir tais vozes,
“Principalmente a ti, traidor ingrato,
“Que além de teus iguais tão alto te ergues!
“E ousas tu, pronunciando ímpio reproche,
“Condenar o decreto sempre justo
“Em que Deus legislou com juramento
“Que a seu único Filho (a quem dotara
“Co’o cetro real, de seu poder insígnia)
“O joelho dobrariam reverentes
“Dos vastos Céus as jerarquias todas
“Confessando-o legítimo monarca?!
“Tachas de injusto, e grandemente injusto,
“Que se liguem com leis essências livres?
“Que sobre iguais o igual impere, reine,
“Um sobre todos com poder infindo?
“Mas serás tu que leis a Deus promulgues
“E que da liberdade os pontos queiras
“Com ele disputar, — Ele que pôde,
“Só porque o quis, seu gosto sendo a norma,
“Fazer-te a ti qual és, quais são do Empíreo
“Todos os coros, os poderes todos,
“A cada um sua essência prescrevendo?!
“Pela experiência nossa doutrinados
“Imutável e bom o conhecemos;
“E como, sendo bom, coarctar quisera
“O nosso bem, a nossa dignidade?
“Mas... longe disto, e, como previdente,
“Vai de alto chefe às ordens mais unir-nos
“Subindo a mais feliz o nosso estado.
“Mas concedo-te agora como injusto
“Que sobre iguais o igual impere, reine;
“Contar-te-ás, inda que és glorioso e grande,
“Ou juntos num dos Céus os coros todos,
“Como igual do Unigênito do Eterno?
“Por ele, como por seu Verbo, tudo
“O Pai fez, fez-te a ti: formou por ele
“As essências do Céu cheias de glória;
“E, para a glória acrescentar-lhes inda,
147
“Em vários graus as dividiu brilhantes,
“Chamando-lhes virtudes, principados,
“E tronos, e domínios, e poderes.
“Pelo reinado seu o Nume-Filho,
“Longe de nos toldar, mais nos ilustra:
“Se é nosso chefe, é companheiro nosso;
“Dá-nos as mesmas leis que nele imperam:
“E as honras todas que lhe forem dadas
“Com brilho ingente sobre nós redundam.
“Cessa pois teu furor, tua impiedade;
“Cessa pois de iludir os que te escutam:
“Cuida, sem mais demora, de aplacares
“A torva indignação do Pai, do Filho,
“Cujo perdão se obtém pedido a tempo.”
O fervoroso serafim dest’arte
O zelo seu desprega; mas não houve
Quem apoio lhe desse, — e foi julgado
Sem razão, disparate, desatino.
Com isso folga o apóstata perverso,
E com maior audácia assim se explica:
— “Nós temos sido, dizes tu, formados
“Em tarefa que o Pai transfere ao Filho,
“De secundárias mãos sendo feituras?
“Que nova descoberta! essa doutrina
“Desejava eu saber donde a deduzes.
“Quem viu dos Céus fazer a imensa mole?
“Lembras-te tu de como foste feito,
“De quando aprouve a Deus assim formar-te?
“Não conhecemos época nenhuma
“Em que não existíamos como hoje;
“Ninguém antes de nós não conhecemos.
“Quando chegou a sempiterna massa
“Em seu giro fatal ao grau preciso,
“Fermentou: dela assim os Céus brotaram,
“E deles nós; intrínseca virtude
“Nos gerou, nos ergueu da essência própria.
“Nós somos pois do Céu etéreos filhos;
“Em nós mesmos reside a força nossa:
“A nossa própria destra vai ditar-nos
“As mais altas ações e pôr patentes
“Quem de ser nosso igual mereça a fama.
“Verás então se nós nos resolvemos
“A aplacá-lo com súplicas humildes:
“Se sólio onipotente nós cercamos
148
“Para perdão pedir-lhe ou dar-lhe assalto.
“Tal participação e tais notícias
“Leva ao monarca ungido; vai-te, foge,
“Antes que hórrida ruína te obste a fuga.”
Disse. Qual som de catadupa enorme
Pelo espaço troou rouco sussurro
Com que o discurso seu foi aplaudido
Pelas infindas, rebeladas hostes:
Mas assim mesmo de fervor dobrando,
Inda que só no meio de inimigos,
O serafim valente lhe responde:
149
Separá-lo puderam da verdade
Ou mudar-lhe o constante pensamento:
Ele, posto que só, guardou sem mancha
Sua lealdade, seu amor, seu zelo.
Eis foge deles, indo largo espaço
Entre mofas e ultrajes dos perjuros;
Mas ele superior afronta o p’rigo, —
E com desprezo audaz retorque insultos,
Virando costas às soberbas torres
A destruição já pronta destinadas.”
LIVRO VI
Rafael continua a relatar como Miguel e Gabriel foram mandados a combater
Satã e seus anjos. Descrição da primeira batalha. Satã com seu exército retira-se
de noite: convoca um conselho, e inventa máquinas diabólicas, com as quais, na
batalha do segundo dia, lança Miguel e seus anjos em alguma confusão; — mas
eles depois, arrancando montanhas, esmagam com elas as tropas e máquinas
de Satã. Indo o tumulto avante, Deus no terceiro dia manda o Messias, Filho
seu, para quem tinha reservado a glória de vencer ali: — Ele, com o poder do
Pai, chegando ao campo e ordenando a todas as suas legiões que ficassem
firmes, entranha-se com seu carro e com seus raios pelo meio dos inimigos,
persegue esses desgraçados, que não têm ânimo de resistir-lhe, até às muralhas
do Céu: então estas se abrem e eles despenham-se com horror e confusão no
lugar de seu castigo que lhes estava preparado no Abismo. O Messias regressa
vencedor para a destra de seu Pai
150
Ao zênite elevada então a Aurora
De ouro empíreo se arreia, e a noite impele
Diante de si co’os orientais fulgores.
Eis o anjo encara em todo o campo do éter
Linhas brilhantes de esquadrões maciços,
Carros, feros corcéis, flagrantes armas;
Sobre flamas ali refletem flamas;
Já pronta a guerra está, tudo arde em guerra:
Vê que às claras ali se conhecia
Quanto por novas relatar tentava.
Logo entra ovante nos celestes coros
Que, em viva aclamação e gosto intenso,
Recebem-no, ele o só que volta puro
Dentre tantos milhões de reprovados.
Levam-no, alto aplaudindo, ao sacro monte
E em frente o postam do superno sólio.
Eis dentre rolos de douradas nuvens
Este nectáreo acento fez ouvir-se:
— “Servo de Deus, cobriste-te de glória
“Tu que, às sós, contra inúmeros rebeldes,
“A causa da verdade sustentaste:
“Das palmas a melhor na destra empunhas.
“Tens em tua constância mais grandeza
“Do que eles mostram no poder das armas:
“Da alta verdade o testemunho dando
“Chamaste a ti o universal opróbrio,
“Mais duro de sofrer que a dor mais dura:
“Viste que mundos mau te reputavam
“E só de Deus a aprovação quiseste.
“Só resta a teu valor fácil conquista:
“Regressa, ataca as inimigas hostes,
“Que em glória mais subida hoje lhes fulges
“Do que o desprezo foi que te votaram:
“Vence por força os que a razão recusam,
“Os que a reta razão por lei não querem
“Nem por monarca o intrépido Messias,
“Que em mérito e no jus sustém seu trono.
“Parte, ó caudilho das celestes tropas,
“Parte, Miguel, e tu, Gabriel invicto,
“Que nas lides guerreiras lhe és segundo;
“Meus invencíveis filhos ponde em campo,
“Ponde em campo esse exército do Empíreo;
“Milhares e milhões mostrem-se armados,
“Igualem a aluvião de ímpios rebeldes.
151
“Com brio os assaltai, com ferro e fogo.
“E dos Céus perseguindo-os té às orlas,
“Longe de Deus e celestial ventura,
“No antro os lançai da punição eterna,
“Caos Tartáreo que, a sorvê-los prontas,
“Abre do golfo ardente as vastas fauces.”
A soberana voz assim se expressa.
Eis de toda a montanha o âmbito envolvem
Escuras nuvens que medonhas vertem
Rolos de fumo e turbilhões de flamas,
Sinal de despertar-se a ira do Eterno;
E do cume dos Céus a etérea tuba
O estrondoso clangor seva dispara.
Logo das tropas celestiais os chefes
No campo empíreo impávidos as formam
Em imensa coluna impenetrável:
Marcha em silêncio o exército brilhante
De instrumental guerreiro ao som que incita
Ao p’rigo ilustre os corações heróicos,
Obedecendo a generais divinos
De Deus, do Filho seu na augusta causa.
Na marcha os liga indissolúvel nexo:
Nem montanha, nem vale, ou rio ou bosque,
Lhes urde estorvo, lhes desune as filas;
Afastadas do chão levam-se as plantas,
Sustém-lhes o ar submisso os ígneos passos.
Qual voando ao Éden em regradas turmas
Citada veio a geração das aves
Para de ti seus nomes receberem, —
Tais do lúcido pólo eles avançam
Por extensas regiões, por longas plagas,
Deste teu Mundo décupla grandeza.
No horizonte boreal eis que se avista,
De banda a banda, um campo ignivertente,
Indício fiel de bélico aparato, —
E de mais perto visto nos descobre
De Satã os exércitos unidos:
Eriçam-se sem conta as duras lanças,
Cerram-se os elmos, e os escudos mostram
Jactanciosos emblemas insculpidos:
Lá se apressam com fúria, imaginando
Que nesse dia, por astúcia ou força,
A montanha de Deus conquistariam,
E que da Onipotência imensurável
152
O invejoso rival, o êmulo altivo,
Se assentaria no supremo trono;
Mas em meio caminho os seus projetos
Descobriram-se logo írritos, loucos.
Ao primo intuito nos parece estranho
Que anjos, opondo-se em feroz batalha,
Uns contra os outros férvidos se arrojem, —
Eles que tão unânimes soíam,
Como filhos de excelso potentado,
Em festins de prazer e amor unir-se,
Ao Sempiterno Pai hinos cantando:
Mas idéias de paz, brandos projetos.
Evaporam-se, assim que brama e troa
O alarma temeroso, a voz de assalto.
O apóstata, do exército no centro,
Monta um coche que o Sol no brilho iguala:
Entre ígneos querubins e escudos de ouro
Tal porte ostenta que simula o Eterno.
Assim que estreito e pavoroso espaço
Entre ambos os exércitos avista,
Que fronte a fronte mútuos se alardeiam
Terríveis massas de extensão medonha,
Desce Satã do sublimado sólio;
E, com passo avançando altivo e vasto,
Todo fulgindo de brilhantes e ouro,
Nos mais altos projetos engolfado,
Vai logo pôr-se à frente das colunas
Onde mais p’rigos proporciona a guerra.
Abdiel, que das ações as mais ilustres
Sempre se adorna e que de heróis se cerca,
Encara-o, — e, cheio de insofrida fúria,
Idéias tais no coração rumina:
— “Ó Céus! Como do Altíssimo o transunto
“Existe onde a pureza e a fé já faltam?
“Como, depois da perda das virtudes,
“Inda resta valor, potente heroísmo?
“E como é crível que o mais fraco possa
“Parecer de invencível valentia?
“Eu, confiado de Deus no auxílio ingente,
“Vou essas forças debelar, eu que ontem
“Suas razões provei fúteis e falsas.
“Justo é que vença, quando a espada empunha,
“Quem venceu defendendo a sua verdade, —
“Num e noutro conflito obtenha os louros,
153
“Não obstante da inveja o estorvo infame,
“Quando a razão recorre urgente às armas
“Contra as armas que alçou fera injustiça,
“Deve sempre a razão cantar vitória.”
Assim, pensando, avança da coluna
Contra o inimigo audaz que em campo o espera
Por essa prevenção embravecido.
Desta maneira impávido o provoca:
— “Soberbo, então achei-te? O fito punhas
“Em chegar, sem que alguém te urdisse estorvos
“Às alturas que fero ambicionavas,
“Do imensurável Deus ao lado, ao trono
“Que abandonados e indefensos crias
“Só pelo medo, difundido ao longe,
“De tuas forças, da eloquência tua;
“Louco! sem distinguir fútil a empresa
“De contra o Onipotente pôr-se em armas!
“Ele que pode, co’o mais leve aceno,
“Criar, armar exércitos infindos,
“Que tua audaz insânia aniquilassem, —
“Ou de um só golpe e só coa destra sua,
“Que além se estende dos limites todos,
“Exterminar-te a ti, tuas falanges,
“E no Orco tenebroso submergir-vos!
“Mas vês que o teu pendão nem todos seguem:
“Milhões de anjos ali, que o Eterno adoram,
“Preferem da piedade o fiel partido:
“Porém vê-los teus olhos não puderam
“Quando eu a sós, de todos discordando,
“Combati sabedor teus vãos sofismas.
“Eis minha crença: Vê, posto que tarde,
“Que às vezes poucos acertar conseguem
“Enquanto muitos mil no erro se engolfam.”
Assim o arqu’inimigo lhe responde,
Com ar de mofa, e de través olhando:
— “Por teu mau fado, investes tu primeiro,
“Quando me abraso na ânsia de vingar-me!
“Já voltas da fugida, anjo rebelde?
“Vem, toma os prêmios que o dever te outorga
“Como primícias deste braço justo
“Por tua insana língua provocado,
“Ousando sediciosa, em cúria plena,
“Opor-se ao terço dos sublimes Numes
“Que ilesa em si a divindade querem.
154
“Enquanto os animar divino alento,
“Ninguém de Onipotente há de jactar-se.
“Sei que dos sócios teus certo te adiantas
“Para te ornares do meu amplo espólio,
“E demonstrares às coortes minhas
“Os seus desastres na vitória tua.
“Pois bem: mas quero que entretanto me ouças,
“E nem te gabes que ao silêncio me urges.
“Sempre julguei que Céu e liberdade
“Eram comuns a todo o empíreo Nume:
“Vejo agora porém que hórrida inércia
“A todos esses constitui escravos
“Que tão armados me apresentas hoje,
“Da música e festins ao gozo entregues,
“Do Céu serventes vis, histriões, comparsas.
“Por que demência tão risível cuidas
“Que a liberdade ao servilismo ceda?
“Ambos se hão de mostrar no dia de hoje.”
Logo Abdiel desabrido assim lhe torna:
— “Apóstata, prossegues sempre no erro;
“Afastado da viela da verdade
“Nem mesmo do erro te eximir procuras:
“Manchas da escravidão co’o injusto nome
“A obediência que todos tributamos
“A Deus, à Natureza, sempre acordes.
“Quem pode mais e se avantaja em tudo,
“Inevitáveis leis aos outros dita:
“De Deus, da Natureza, eis o diploma;
“Eis à nossa obediência o jus supremo.
“É sim escravo o que obedece ao louco
“Que contra o que mais pode se rebela:
“Tais são os teus agora a ti submissos,
“A ti não livre, de ti mesmo escravo,
“E que não coras por atroz malícia,
“De nossos ministérios exprobrar-nos.
“Lá tens teus reinos no Orco, impera neles:
“No Céu eu sou feliz servindo o Eterno,
“Obedecendo a seus divinos mandos
“Que têm supremo jus a ser cumpridos:
“No Orco, de cetro em vez, grilhões te aguardam.
“No entanto, pois que da fugida volto
“Por meu mau fado, como agora dizes,
“Recebe na ímpia fronte este tributo.”
Disse. E do alto vibrou um talho heróico
155
Que, pronto como o raio, cai em peso
No elmo orgulhoso do feroz imigo
Sem que ele possa co’o tremendo escudo,
Coa vista perspicaz, co’o ardente gênio,
Prever, desviar a furibunda ruína.
Passos recua dez Satã enormes;
Sobre um curvado joelho então caindo,
Pôde a metade interceptar da queda
Na lança robustíssima apoiado
(Assim do seio do terráqueo globo
Rompendo um pé de vento ou peso de águas,
Tudo arrombando que por diante encontram,
Batem num monte e lhe deslocam parte
Que com todo o arvoredo se submerge).
De espanto se enchem os rebeldes tronos;
Mas dobram de ira ao ver com tanto insulto
O seu mais alto chefe enxovalhado.
Nisto o exército nosso rompe em vivas,
Exulta, quer vencer, pede a batalha.
Eis manda troar Miguel a empírea tuba
Que na amplidão dos Céus ribomba e brama,
E ao Altíssimo logo o Hosana augusto
Entoam fiéis as celestiais falanges.
Não pasma o imigo, e requintando a fúria
Com choque horrendo sobre nós se atira:
Tal bramido então ruge e tal estrondo,
Como jamais se ouviu dos Céus no espaço:
Com feroz confusão tinem, retinem
Umas contra outras férvidas as armas,
E hórridas rangem das carroças brônzeas
As arrojadas rodas furibundas;
Rechinam as descargas flamejantes
De ígneos dardos que inúmeros cobriam
Todo o Céu co’uma abóbada de fogo.
Espantoso terror se difundia
Do estampido e prospecto da batalha.
Com ímpeto e furor inextinguíveis
Os exércitos dois mútuo se assaltam.
Todo o âmbito dos Céus troa e retumba, —
E, se o Mundo formado então já fora,
Em seus eixos tremera inteiro o Mundo:
E por que não? se os combatentes eram,
De uns e de outros, milhões de anjos terríveis,
Dos quais o menos forte, o braço alçando,
156
Nos astros todos agarrar pudera
E, em vez de dardos, no amplo Céu brandi-los!
Tinham poder tão válidas coortes,
No truculento arrojo das batalhas,
De envolver tudo em combustão horrível
E perturbar da pátria a ordem ditosa,
Se do seu trono o celestial Monarca
Lhes não marcasse às indizíveis forças
Com mão potente imprescritíveis metas.
Dividem-se em legiões; porém cada uma
Formidoloso exército parece,
E cada braço armado se afigura
Uma inteira legião em valentia.
Campeando no mais forte das batalhas
Cada simples guerreiro é cabo, é chefe;
Certo no ensejo das manobras todas,
Sabe avançar, parar, mudar de frente,
Abrir, cerrar a impávida coluna:
A nenhum lembra fuga ou retirada,
Nem deslustrosa ação que indique medo;
Confia em si cada um, crendo que existe
No próprio braço o arbítrio da vitória.
Várias ações de perdurável fama
Nesse dia brilharam infinitas;
No espaço se estendeu confusa a guerra.
Ferve ferida a pugna, ora a pé firme, —
Ora, as asas imensas agitando,
Atormentam todo o ar; todo o ar parece
De hórridas labaredas abrasado.
Longo tempo a balança do destino
Teve ouro-fio a sorte da batalha.
Então Satã, que prodigiosas forças
Naquele dia em si tinha provado
Sem anjo achar que lhe impedisse o impulso,
Viu, quando sob o fogo punha em ordem
Os serafins que a guerra dispersara,
A espada de Miguel que alto brandida
Descarrega feroz, rompendo os ares,
O acicalado gume, e a cada golpe
Abola e talha batalhões inteiros;
Correu a opor-se a destruição tamanha,
Do amplo escudo coa enorme redondeza,
Penhasco orbicular que hórrido cobrem
Dez pranchas de diamante impenetrável.
157
O grande arcanjo, assim que perto o avista,
Deixa as que entre mãos tem ações de glória,
E, alegre coa esperança de ali mesmo
Dos Céus findar as guerras intestinas
Ou derrotando o imigo ou pondo-o em ferros,
Com hostil catadura e aceso rosto
Dirige-lhe primeiro estas palavras:
— “Autor do crime inomidado e ignoto
“Nos Céus té que um rebelde em ti notaram,
“Mas (como observas) espalhado agora
“Brotando odiosa guerra, odiosa a todos,
“Posto que há de fazer, por plano justo,
“Em ti, nos teus, o mais horrendo estrago, —
“Como turbaste aos Céus a paz ditosa
“E o mal na Natureza introduziste
“Que antes dos crimes teus ela ignorava?
“Como em quantia de anjos tão subida,
“Sempre justos e fiéis, hoje falsários,
“Tua malícia destilar pudeste?
“Mas co’o resto sagrado em vão tu instas;
“Fora de seus confins o Céu te expulsa.
“Dos puros Céus coas eternais delícias
“Incompatíveis são violência e guerra.
“Vai-te co’os sócios teus, quais tu, malditos;
“O crime de que és pai contigo leva
“Do crime para a estância, o Inferno hediondo:
“Lá teus distúrbios desenfreia. Vai-te
“Antes que minha espada vingadora
“Do teu julgado a execução comece,
“Ou antes que de Deus o ódio fulmíneo
“Te precipite em tresdobradas penas.”
— “Não julgues tu” (responde-lhe o contrário)
“Que essas ameaças vãs pelo ar desfeitas
“Possam mais que teu braço reprimir-me.
“Algum dos sócios meus puseste em fuga?
“Se alguns prostaste... não se ergueram logo?
“Como esperavas transigir comigo,
“Soberbo! e com ameaças expulsar-me?
“Erras pensando que esse fora o termo
“De tanta guerra que de crime alcunhas
“Mas que chamar nos praz guerra de glória.
“O Céu por força conquistar queremos,
“Ou do Inferno esse horror por ti sonhado
“No Céu introduzir, e ali ao menos
158
“Ser livres se reinar nos for defeso.
“No entanto assume quanto tens de forças,
“Invoca o Deus que Onipotente dizes;
“Não fujo, hei de alcançar-te ou longe ou perto.”
Assim falaram. Pronto se aparelham
Combate inexprimível. Quem pudera,
Inda com língua de anjo, relatá-lo?
Ou quem a tal prodígio iguais no Mundo
Encontrara expressões que conseguissem
Alevantar o entendimento humano
A tal altura do poder divino?
Em ações, em grandeza, em porte, em armas,
Pugnando ou quedos, pareciam Numes
Aptos a disputar dos Céus a posse.
Brandindo a espada de ígnea folha ondeante,
Traçam nos ares círculos imensos,
E (quais dois grandes sóis) em frente um do outro
Seus escudos flamejam: tudo pasma!
De ambos os lados rápida recua
A multidão dos anjos; — e, onde há pouco
Da batalha o furor mais se acendia,
Abre-lhes largo pavoroso campo
Revolto com borrasca tão medonha.
(Desse teor, — se contudo as coisas grandes
Podem de outras pequenas deduzir-se, —
Dois planetas, no caso que árdua guerra
Entre as constelações se declarasse
Rota a harmonia que une a Natureza,
Se investiriam nos etéreos campos,
As órbitas disformes confundindo
Do destrutivo duelo ao rudo abalo!)
Logo cada um, erguendo o braço altivo
Que só cede ao do Eterno, ajeita um golpe
Que decisivo de uma vez conclua
A renhida pendência. Iguais em ambos
Balançam-se ouro-fio astúcia e força.
Mas de Miguel a espada, — havendo obtido
Têmpera tal nos arsenais celestes
Que outra, por mais que fosse ou forte ou buída,
Ceder-lhe havia, — de Satã encontra
A espada atroz descarregada de alto:
Em duas lha partiu; e, ao mesmo instante,
Brandida em roda se entranhou profunda
Em toda a ilharga do assanhado monstro.
159
Então Satã, que pela vez primeira
Soube o que é dor, torceu-se, recurvou-se, —
Com tamanha ferida e tão violento
Ousou vará-lo o fulminante alfanje!
Porém compostos de substância etérea
Cerram-se prontos os órgãos divididos,
Vertido havendo um rio caudaloso
De sangue espiritual, nectáreo fluido,
Que as armas lhe manchou dantes fulgentes.
Logo lhe acodem mil valentes anjos
Que o abrigam do contrário, enquanto ao coche
Outros em seus escudos o transportam
Deixando-o longe ali do horror da guerra.
Então aflito o monstro os dentes range,
Furibundo, timbroso, envergonhado
Por ver-se ombreado de outrem, reprimido
Com tal desonra seu feroz orgulho,
E desfeita a misérrima vaidade
Porque se cria igual do Onipotente.
Mas de novo, eis Satã! foi breve a cura
(Diversos do homem, cuja frágil vida,
Repartida por órgãos tão conexos,
Se extingue em todos mal que num se extingue,
Os espíritos gozam permanente
Em cada órgão a vida; são baldadas
Quaisquer feridas, por mortais que sejam,
Feitas na sua líquida substância
Como o ar sutil e puro; é só possível
Por aniquilação dar-lhes a morte:
Neles tudo ouve, vê, sente, medita;
Cada um, como lhe praz, retém ou muda
Voz, densidade, cor, forma, grandeza).
No entanto ações, — como estas, memoráveis, —
Noutros sítios o campo condecoram:
Gabriel, à frente de coluna invicta,
Ali peleja e com fervor derrota
Umas sobre outras as profundas linhas
Do cruento rei Moloch. Este insensato
O arcanjo desafiou, — e prometera
Levá-lo de rojão preso a seu carro;
Té insultou do Onipotente o Filho!
Mas logo um talho do celeste alfanje
Lhe abriu té a cintura o corpo e as armas;
Louco o monstro com a dor fugiu urrando.
160
Uriel, Rafael, do exército nas alas,
De Adramaleque e de Asmodeu triunfam,
Tronos potentes de estatura enorme,
De adamantinas rochas guarnecidos,
Que, embriagados com os fumos da jactância,
De ser menos que Deus se desonravam.
Mas trespassados de hórridas feridas,
A malha rota, espedaçada a cota,
Fogem cheios de horror, já não altivos.
Nem se esqueceu Abdiel de erguer o alfanje
Contra o bando traidor que a Deus despreza;
Mas, repetindo estragos sobre estragos,
De Ariel, Arioche, Ramiel, o insano impulso
Rompe, suplanta, estrui, aterra, abrasa.
Pudera eu inda de milhares de anjos
Neste teu Mundo eternizar os nomes;
Mas essas puras, divinais essências
Contentam-se dos Céus coa fama ilustre,
E do aplauso dos homens se dispensam.
Nossos rivais, que perdurável fama,
Por guerreiras ações, força estupenda,
Com brio ingente como nós ganharam,
Deixo-os sem nome ao negro olvido entregues,
Que dos Céus nos registos por sentença
Esses rebeldes cancelados foram
(Não merece louvor a valentia
Se a justiça e a verdade a não regulam;
Só lhe cumpre esperar desprezo, infâmia:
Ambiciona renome, aspira à glória,
Nefandos desacatos perpetrando?
Sofra a sentença, suma-se no Letes).
Dos contrários a flor então vencida,
Toda a ordem de batalha se interrompe:
Soltos em correria escaramuçam.
Surge desordem torva, hórrido estrago:
De armas quebradas todo o chão se junca,
E derribados em montões jaziam
Coches, aurigas, ignitos cavalos.
Seus postos té então guardaram firmes;
Mas, já lassos recuando, vão de encontro
Às linhas de Satã que, desfalcadas,
Cheias de susto e só na defensiva,
Romper se deixam das fugintes turmas.
De medo, fuga e dor, isentos dantes,
161
Eis que de medo e dor estão pungidos:
Em vergonhosa fuga arrancam todos,
Sofrendo tanto mal os infelizes
Da rebeldia pelo crime infando.
Do exército de Deus outro era o aspecto:
Em cúbica falange avança firme,
Impassível, inteiro, impenetrável;
Seu coração imaculado e puro,
Sua obediência aos Céus, lhe conferiram
Sobre os contrários seus tanta vantagem.
Infatigáveis nas batalhas eram;
Não conseguia golpe algum feri-los, —
E, se árduo repelão os deslocava,
Tornavam de repente a entrar em linha.
Já surge a noite, e sobre o pólo estende
Seu manto escuro, complacente impondo
Da guerra ao cru motim silêncio e trégua:
Os vencedores e os vencidos folgam
Das nebulosas sombras circundados.
Miguel e seus heróis ali acampam,
E em roda postam querubins de elite
Que alerta voam quais ondeantes lumes.
Porém Satã, à frente dos rebeldes,
Rompendo a escuridão, longe se aloja;
Lá, contínuo velando, ajunta os chefes
Em conselho noturno e ousado diz-lhes:
— “Ó vós que o p’rigo demonstrou valentes
“E o valor invencíveis, caros sócios,
“Não só mui dignos sois da liberdade,
“Que assaz mediana pretensão reputo,
“Mas de honra, fama, poderio e glória,
“Da nossa alta ambição votos primários.
“Do Céu contra as mais válidas coortes,
“Empíreas guardas que mandou o Eterno
“A subjugar-nos à vontade sua
“Crendo-as capazes de tamanha empresa,
“Hoje batalha dúbia sustentastes:
“E sempre não sereis o que hoje fostes?
“De que ele se enganou é prova o fato:
“E, se onisciente foi té-’gora crido,
“Dora em diante falível se nos mostra.
“Certo é, com menos solidez armados,
“Alguma perda e dor temos sofrido,
“Nunca sentido mal em nós té hoje;
162
“Mas foi sentido e logo desprezado.
“Já conhecemos que a substância nossa
“É, pela origem que do Empíreo obteve,
“Não susceptível de mortal injúria;
“Que, sendo penetrada de algum golpe,
“Logo une e sara por vigor nativo.
“Fácil remédio cura um mal tão leve:
“Talvez nos outros próximos conflitos
“Mais fortes armas, golpes mais violentos
“Nos ganhem louros, o inimigo arrasem,
“Ou dele a par nos ponham, não havendo
“Grau algum superior na essência de ambos.
“Se as vantagens lhe vêm de causa oculta,
“A inteligência nossa, o nosso gênio,
“Inda perfeitos, atilados inda,
“Busquem-na: de a saber têm certa a glória.”
Disse, e assentou-se. Em rápida seguida
Se ergueu Nisroch, dos principados chefe;
Mui cansado, em pedaços a armadura,
Fugido o creras de hórrida batalha;
De carregado vulto assim responde:
— “Libertador, que válido nos firmas
“De nosso jus de Deuses livre o gozo
“E os nós nos quebras do recente jugo:
“Somos de certo inabaláveis Deuses;
“Mas, sujeitos à dor na lice entrando
“Contra impassíveis entes dela a salvo,
“Claro é que desditosos prosseguimos
“Com armas desiguais ímpar contenda,
“Que vai lançar-nos em ruinoso apuro.
“Que podem, mesmo em grau inacessível,
“Valor ou força quando a dor os tolhe,
“A dor que tudo abate e vence tudo,
“Que do mais forte herói decepa os braços?
“Talvez podemos da existência nossa
“O prazer separar sem grande custo,
“Vivendo em paz, da vida o bem mais doce;
“Mas a dor é a suma das desgraças,
“Dos males o maior, — e, em grau de excesso,
“Rouba a paciência, os ânimos deprime.
“Assim, quem ache os meios de arrasarmos
“O imigo nosso, invulnerável inda,
“Ou de possuirmos, dele à semelhança,
“Escudos e broquéis impenetráveis
163
“(Segundo julgo) não merece menos
“Do que o fautor da liberdade nossa.”
Eis Satã diz, tomando ar de importância:
— “Não está por achar-se o que em teu siso
“Crês essencial da nossa empresa à glória:
“Ei-lo; eu o trago. Qual de vós observa
“Com tão leviano olhar o brilho augusto
“Dessa fábrica etérea em que existimos,
“Dos Céus imensos o âmbito que ilustram
“Coas cores todas, com fragrantes cheiros,
“A planta, a flor, o fruto, as gemas, o ouro,
“Que logo se não lembre que se entranham
“Desta ampla mole no âmago profundo
“Seus brutos materiais, informes inda,
“De violência expansiva, de ígnea escuma,
“Té que, do Céu pelo calor tocados,
“Deixam de ser embriões, surgem tão lindos,
“Abrilhantados pela luz ambiente?
“Abrindo seus nativos, negros antros,
“Tiremos desses materiais informes
“Os que de fogos infernais se impregnem:
“Calcados dentro em grossos, longos tubos,
“Dilatar-se-ão da flama ao toque, e longe
“Atirarão com estrondoso ruído
“Sobre os imigos aluviões de estragos,
“A poeira reduzindo, aniquilando.
“Toda a sua altivez, seu valor todo, —
“De sorte que eles cuidarão confusos
“Que ao Eterno, tonante privativo,
“Nós arrancamos os trovões e os raios.
“Esta obra será breve e antes da aurora
“Seu fim terminará nossa esperança.
“No entanto revivei, desassombrai-vos:
“Pela prudência a força dirigida
“De nada desespera, alcança tudo.”
Falou, — e aos ditos seus a luz da vida
Nos sócios tinge os descorados rostos;
A lânguida esperança em forças medra.
Admira-se a invenção e como pôde
Ter escapado de qualquer ao senso:
Depois de achada foi por fácil tida,
Impossível se creu antes de achada.
(Talvez ainda nos futuros tempos.
Se a malícia puder campear ufana,
164
Alguém da raça tua dado a crimes,
Ou de influxos satânicos vexado,
Virá, em punição de enormes culpas,
A inventar semelhantes instrumentos
Para dessossegar os filhos do homem
Inclinados à guerra e mútuo estrago!)
Finda o conselho, voa tudo e as obras
Sem alguma objeção fervem, avultam:
Nelas braços inúmeros trabalham.
A vastidão do celestial terreno
Num instante revolvem, esquadrinham;
Nele da Natureza os mistos acham,
De crua rispidez embriões informes.
Com perícia sutil escolhem, mesclam,
De enxofre e nitro elásticas escumas
Que em candentes fogões cozem, calcinam;
Logo de escuros grãos feitas em montes
Recheiam arsenais. Veias ocultas
Uns escavaram de metais, de pedras,
Que deste orbe também no seio existem,
Deles depois fundindo os grossos tubos
E as balas, em que a ruína enraiva e voa;
Outros aprontam incendiário facho
Que inflama pernicioso ao toque os mistos.
Assim ultimam todos antes da alva
A servir prestes as ocultas obras:
Tudo segredo foi que só as viram
Os olhos fiéis da silenciosa noite. —
Eis formosa a manhã nos Céus aponta;
Do sono os anjos vencedores se erguem
E às armas toca a matutina tuba.
Todo vestido de armaduras de ouro
Pronto se forma o exército fulgente;
E exploradores à ligeira armados
Bater em roda vão do oriente os montes,
Nada deixam por ver, percorrem tudo,
Para espiar onde está o imigo ausente,
Se fugiu, se parou, se às pugnas volta.
Logo o avistam movendo-se já perto,
Coluna firme, a passo vagaroso,
Desenrolados os pendões soberbos.
Então com vôo arrebatado volve
Zofiel, dos querubins o mais ligeiro,
E assim do ar lhes bradou com voz de alarma:
165
— “Eis o inimigo! Às armas, ó guerreiros!
“Julgamo-lo fugido... e ei-lo que entanto
“Nos poupa o afã de longe irmos buscá-lo.
“Não mostra medo: vem qual grossa nuvem,
“E escrita no semblante lhe diviso
“Resolução segura e meditada.
“Apertai bem a cota adamantina,
“Segurai bem o capacete de ouro,
“E, movendo o broquel firmes e astutos,
“Cobri a fronte, resguardai o peito:
“Tem hoje de cair, se não me iludo,
“Não leve chuva de espalhadas flechas,
“Mas decerto com hórrido estampido
“Borrasca imensa de farpões de fogo.”
Com tal aviso e acautelados de antes,
Livres de estorvos formam-se ligeiros,
Sem confusão avançam em batalha.
Eis o inimigo: a passo vagaroso
Não longe vem marchando espesso e vasto,
E no centro da cúbica falange
Rodando vêm as máquinas terríveis
Com batalhões profundos encobertas,
Para mais disfarçar o ardil nefando.
Os exércitos ambos, mal se avistam,
Param. Logo, dos seus tomando a frente,
Satã os manda assim com voz que troa:
— “Divida-se a vanguarda sobre os flancos:
“Nossos contrários presenceiem todos
“Como composição e paz queremos,
“E com que aberto peito os aceitamos,
“Se lhes apraz a singeleza nossa,
“Se as costas nos não viram de perversos.
“Mas contra eles suspeito... Embora! Ouvi-me,
“Ó Céus! Por testemunha, ó Céus, vos tomo
“De quão bom grado, com que livre anelo
“Nós lhes perdoamos as ofensas nossas.
“E vós, que os postos designados tendes,
“As dadas instruções cumpri exatos;
“Pronto fazei ouvir quanto propomos,
“Saibam-no todos, trovejai terríveis.”
Apenas acabou o rei das sombras
Estes confusos, mofadores termos,
A testa da coluna logo se abre
E sobre ambos os flancos se desprega.
166
Eis descobrimos (vista estranha e nova!)
Três longas linhas de hórridos pilares
Montados sobre rodas corpulentas,
Robles e faias parecendo enormes
Nas montanhas ou selvas derribados,
Ocos ao longo, decotada a rama
Feitos eram de ferro e pedra e bronze;
Coas vastas fauces para nós abertas
Das tréguas a ficção prognosticavam:
De cada qual após, um anjo empunha
Sulfúreo facho de tremente flama.
Nosso exército então, no primo intuito,
Suspenso fica e mesmo se amedronta:
Logo os anjos na linha da vanguarda
Com repentino impulso e mão certeira
O facho estendem, vão tocar coa flama
Um tênue furo aos colossais cilindros.
Eis todo o amplo dos Céus se enche de lume
E súbito o escurece o fumo em rolos,
Que das profundas bocas abrasadas
Vomitaram as máquinas tremendas,
Rasgando os ares desmedido estrondo:
Expulsaram de envolta amplo granizo
De férreos globos, de encadeados raios,
Hórrida lava de hórridas crateras.
Em pontaria às vencedoras hostes
Tão fortes esses projéteis as feriam
Que em pé nenhuma lhes sustinha o impulso,
Posto a firmeza ter de um promontório:
Prostrados a milhões anjos e arcanjos
Rolavam de tropel uns sobre os outros.
Davam azo à derrota as armaduras;
Se não os empecesse o estorvo delas,
Fora-lhes fácil evadir-se aos danos
Por veloz contração ou vôo etéreo,
De espíritos sutis gozando os dotes;
Mas do destroço horrendo acompanhada
Forçava-os dispersão irresistível:
Mesmo espaçar as filas fora inútil.
Que mais fariam? Investir briosos?
Haviam ser de novo repelidos
Que outra fileira de adestrados anjos
Ia descarga separar segunda,
E à desonra do novo desbarato
167
Pulara o imigo de desprezo e mofa!
Fugir vencidos? Semelhante infâmia
Não sabem suportar almas tão nobres!
Satã, vendo-os em lance tão mesquinho,
Assim aos sócios seus zombando brada:
— “Amigos, esses bravos vencedores
“Por que param? Pouco há, tão feros vinham!
“E... quando cortesmente os convidamos
“A fronte e o centro da coluna abrindo,
“Todos se acanham, de projeto mudam,
“Vão-se e nos deixam! Nós que mais podemos?
“Que devaneio o seu! Olhai que dançam!
“Mas, inda que dançar neste momento
“Pareça um tanto extravagante e inculto,
“Talvez a paz proposta assim aplaudam.
“Suponho, pois, que, se outra vez ouvirem
“As nossas condições, hão de prestar-se
“À pronta ultimação do nobre ajuste.”
Belial lhe torna, por igual zombando:
— “Meu Chefe, as condições que lhes mandamos
“Têm peso assaz, têm sólido contexto;
“Com tal força os persuadem, como vemos,
“Que os alegram, a ponto de aturdi-los.
“Os que as ouviram com garboso porte
“Têm da cabeça aos pés sido intimados:
“Os que do assunto o principal ignoram,
“São inimigos que de rojo marcham.”
Crendo infalível a vitória sua,
Com tão faceto humor se divertiam:
Ser-lhes mui fácil igualar supunham
Com suas artes o poder do Eterno,
Motejar dos trovões, rir-se dos raios:
Às falanges de Céu deram apupos,
Enquanto as turba efêmera desordem.
Mas pronto a raiva os punge, incita, impele.
Armas próprias lhes acha com que invistam
Do inferno contra os danos ardilosos.
De repente (vê tu que enorme força
Dispensa Deus aos poderosos anjos!)
Dão às armas de mão, — e arrebatados,
Não menos que o relâmpago instantâneo,
Rompem, atiram-se às mais altas serras
(Que é dos Céus que este globo o encanto imita
Dos frescos vales, dos apricos montes);
168
Pelas arbóreas grenhas as agarram,
De seus fundos cimentos as sacodem:
Eis lá vão pelos ares oscilando,
Té-li imóveis, as mais altas serras
Penduradas das mãos desses guerreiros
Co’o peso inteiro de águas, brenhas, rochas.
Mal que as hostes rebeldes presenciaram
Que a prumo vão cair-lhes tão tremendas
Coas arrancadas bases as montanhas,
Enchem-se de terror, de susto pasmam:
Já imaginam ver de todo opressas
As linhas três das máquinas malditas,
E em abismos, das serras sob o peso,
Toda a sua confiança sepultada.
Quando nisto... — Sobre eles se desfecha
Uma aluvião de vastos promontórios
Toldando o pólo coas mais negras trevas,
Que as inteiras legiões lhes cobre e oprime.
Aumentavam seu dano as armaduras;
Amolgadas, torcidas, lhes esmagam
Metida nelas a substância fluida
Que, de implacáveis aflições vexada,
Urra gemidos que no espaço troam,
Enquanto emprega esforço desmedido
Para de tal prisão desentalar-se;
Que, se foram espíritos outrora
Da mais sutil e fulgurante essência,
Grosseiros torna-os hoje a horrenda culpa!
Assim que podem, ousam imitar-nos:
Arrancam prontos as vizinhas serras,
E, iguais em armas, contra nós se lançam.
Com hórrida impulsão de um lado e de outro
Arremessadas na amplidão dos ares,
Montanhas com montanhas abalroam:
Às escuras enraiva a atroz peleja
De alados montes sob espessas nuvens;
Comparadas com ela as pugnas de antes
Por jogos festivais podiam ter-se:
Com terror infernal retumba o estrondo,
É tudo confusão, é tudo estragos,
Decerto o Céu, cedendo a tanta ruína,
Ia em peso cair desmoronado
Se o Pai Onipotente, que previsto
Se assenta em seu santuário inabalável,
169
Das coisas todas consultando a suma
E conflito tão grande permitindo,
Lhe não tivesse as metas assinado:
Só queria cumprir seu alto intento
De encher de honras seu Filho sacrossanto,
Vingando-o de seus hórridos contrários
E declarando que depunha nele
De sua potestade a plenitude.
Ao caro Filho então assim se exprime
O Pai que junto a si no trono o assenta:
— “Meu Filho, minha glória, imagem minha,
“Filho querido, em cuja face augusta
“Ostentas a grandeza imensurável
“Que a divindade minha em si esconde;
“Em cuja mão, segundo Onipotente,
“Susténs todo o poder quanto eu possuo:
“Dois dias há, dos que no Céu contamos,
“Depois que foi Miguel com seus guerreiros
“A insolência domar dos revoltosos.
“Tem sido a pugna atroz, como era crível
“Se armados tais imigos se encontrassem;
“Iguais os criei, — só pôde a culpa entre ambos
“Pôr diferença apenas perceptível:
“Neutral deixei-os a si mesmo entregues,
“Sustei a execução do meu julgado.
“Mas sem fim, deste modo, e sem regresso
“Em perpétua batalha ficariam;
“Nenhuma solução possível fora:
“Da guerra todo o ardil se tem tentado
“E a mais subir não pode o horror da guerra;
“Té de dardos serviram as montanhas.
“O Empíreo a tais abalos estremece,
“E pode subverter-se o mais que existe,
“Lá vão dois dias; cabe-te o terceiro:
“Quanto vês, para ti dispus dest’arte;
“Tanto sofri para te dar a glória
“De pores fim a tão terrível guerra
“Que tu (e mais ninguém) findar só podes.
“Imensa cópia de virtude e graça
“Tão pródigo entranhei na essência tua, —
“Que teu poder dirão incomparável
“Todo o âmbito dos Céus, o Inferno todo.
“Só sirva esta perversa rebeldia
“De demonstrar que, — se és, por jus sagrado,
170
“Monarca e herdeiro do Universo todo, —
“Por mérito sem par também te aclamo
“De obter grandeza tal o ente mais digno.
“Eia pois, Filho meu! sobe ao meu carro,
“Co’o paternal poder tu invencível;
“As rodas lhe encaminha arrebatadas
“Com que a base dos Céus se abala e estruge.
“Meu arsenal tens franco; arma-te e leva
“Todo o meu trem, as minhas armas todas,
“Meu arco, os raios meus, a minha espada;
“Esses filhos das trevas talha e expulsa
“Dos celestes confins ao fundo do Orco:
“Deixa, como lhes praz, que ali aprendam
“Como Deus pune insultos perpetrados
“Contra ele e seu Messias, Rei do mundo.”
Eis todo o seu fulgor lançou em cheio
No Filho que o recebe em seu semblante,
E nele o Pai, qual é, se ostenta e brilha.
A filial Divindade assim responde:
— “Pai, que nos tronos celestiais imperas,
“Que és o primeiro dentre os entes todos,
“O mais santo, o melhor, o mais sublime:
“Glorificar teu filho buscas sempre,
“Sempre eu busco também glorificar-te.
“Minha altivez, meu gosto, a glória minha,
“Ponho em que tu declares satisfeito
“Que à risca as tuas ordens executo;
“Cumpri-las constitui a minha dita.
“Teu cetro, o teu poder, de ti recebo,
“E cheio de alegria hei de entregar-tos
“Quando no fim dos tempos estivermos
“Tu todo sempre em tudo, em ti eu todo,
“E em mim todos que a ti forem aceitos:
“Detesto quem detestas; levo adiante
“A tua alta clemência, os teus terrores;
“Em tudo eu sou de ti cabal transunto.
“De teu poder me armando, vou em breve
“Dos revoltosos expurgar o Empíreo
“E arrojá-los aos cárceres das trevas,
“Pavorosa mansão que lhes destinas
“Entre serpes cruéis que eterno mordem,
“Já que, gozar podendo a dita suma
“Cumprindo as leis que justamente ditas,
“Preferiram contra elas rebelar-se.
171
“Separados mui longe dos impuros
“Então os santos teus serão extremes,
“E, em redor de teu monte fulgurante,
“Te hão de cantar, trinando o som no espaço,
“Hinos de alto louvor com voz sincera,
“Sendo eu dessa harmonia o chefe augusto.”
Disse; encosta-se ao cetro, — e se levanta
Da direita do Pai onde se assenta.
Já pelo Céu rompendo despontava
O sacro brilho da manhã terceira: —
E o carro da paterna Divindade,
Qual furioso tufão, vinha correndo;
Por si movido em máquina de rodas,
Fuzila ao largo turbilhões de flamas
Animado de espírito celeste;
Sustêm maravilhosas, quadrifrontes,
Figuras quatro a querubins parelhas,
Em cujos corpos e asas se abrem, fulgem,
De estrelas à feição, milhares de olhos,
Que ornam também as rodas de berilo
Ferindo lume coa veloz carreira;
Sobre as cabeças se alça das figuras
De cristal puro cúpula elegante
Em que se apóia um trono de safira
Todo embutido coas peritas cores
Do arco celeste, do mimoso alambre.
De ponto em branco empireamente armado
Co’o mais lustroso do arsenal divino,
O Unigênito sobe ao carro ingente:
À destra sua assenta-se a Vitória
Asas de águia sublimes ostentando;
Pendem prontos ali seu arco e aljava
De trifarpados raios fornecida;
E em redor dele arrebatados voam
Rolos de fumo e de tremente flama,
Coriscos no ar espadanando torvos.
De anjos por dez milhões seguido avança
De longe seu fulgor resplandecendo;
E carros vinte mil, por mim contados,
Do trem do Eterno vindos, o ladeiam:
Sobre o cristal, no safirino trono
Que os querubins coas asas erguem, firmam,
Brilhante fende a vastidão do espaço.
Tanto que o fido exército o pressente,
172
De insólita alegria se enche absorto,
E vê, de anjos em mãos, a real bandeira,
Que precede nos Céus sempre o Messias,
Solta e fulgente tremular nos ares:
Miguel em torno dela pronto ajunta
As dispersas falanges, e num corpo
Todas dispõe sujeito ao Nume-Filho.
O divino poder, fúlgido arauto,
Franqueia-lhe a passagem majestosa:
Por ordem dele as arrancadas serras
A seus próprios lugares se retiram;
Mal que lhe ouvem a voz, submissas partem.
Toma o Céu outra vez seu lindo aspecto;
E, de viçosas flores adornados,
Montes e vales outra vez se riem.
O inimigo infeliz observa tudo,
E, mesmo assim, empedernido teima;
A rebelde batalha impele, arroja
Todas as forças que insensatas ruem,
Por desesperação vencer tentando.
Como pode em espíritos celestes
Obrar, caber perversidade tanta?!
Mas com que fatos se convence o orgulho?
Com que prodígio a pertinácia abranda?
Do grão Messias contemplando a glória,
De inveja se enchem, de aflição enraivam;
O que influir-lhes devia alta virtude,
Com mais sanha no crime os enfurece.
Subir-lhe até seu nível aspirando,
Loucos de novo metem-se em batalha:
Têm como opróbrio a retirada, a fuga;
Querem de um talho terminar a guerra,
Imaginando que por força ou fraude
Podem por fim vencer o Eterno e o Filho, —
Ou, quando mais não seja, sepultar-se
Na subversão inteira do Universo.
O Unigênito então, presente a todos,
Ao exército seu falou dest’arte:
— “Anjos, firmes ficai, firmes, ó santos,
“Em vossa refulgente formatura:
“Descansai neste dia de batalha.
“Penhoram vossas proezas ao Eterno;
“Por sua causa justa em vós provastes
“O invencível valor que dele tendes.
173
“Sabei que dessa multidão maldita
“De outrem às mãos a punição pertence:
“É de Deus exclusiva esta vingança
“Ou de quem dele a comissão receba.
“Não é prefixo que a batalha de hoje
“De multidão numérica precisa.
“Firmes ficai; por mim vede lançadas,
“Nesses ímpios ateus, do Eterno as iras:
“Não a vós, mas a mim, professam, juram
“Todo o desprezo e inveja, a raiva toda,
“Porque meu Pai, que do alto Céu possui
“A glória, o poderio, a majestade,
“De honras me cumulou, cumpriu seu gosto.
“Encarregou-me a mim de exterminá-los:
“Franquear-lhes quis (pois o desejam tanto!)
“Uma batalha em que decida a força:
“Ver-se-á quem pode mais, se eu só contra eles
“Ou se eles contra mim armados todos.
“Crêem ser a força tudo e não lhes peja
“Noutros dotes quaisquer ser excedidos:
“Dedigno-me portanto, em tal contenda,
“De outros servir-me; empregarei a força.”
Disse. Eis acende em fúrias o semblante
Que de medonho os olhos horroriza
E às coortes hostis terror dardeja.
As quatro querubínicas figuras,
As asas estreladas logo abrindo,
Em torno lançam pavorosa sombra;
E as rodas da carroça furibundas
Com ruído tão tremendo giram, voam,
Qual de exército enorme troa o ataque
Ou com feroz tormenta estruge o oceano.
Tão temeroso como a horrenda noite
O Messias investe os seus contrários;
Das ígneas rodas coa violência treme
Do imoto Empíreo a redondeza toda,
Toda... exceto de Deus o sólio augusto.
Sem demora os alcança, — e dez mil raios,
Que empunhava na destra, lhes atira:
Lá na íntima substância dor lhes cravam:
Então cheios de horror os ímpios perdem
Ânimo, forças, esperança, brio;
Até deixam das mãos cair as armas.
Derriba, esmaga co’o fulmíneo coche
174
Broquéis brilhantes, emplumados elmos,
Válidos serafins, ingentes tronos,
Na ânsia anelando que outra vez lançadas
Contra eles fossem arrancadas serras
E de furor tamanho os abrigassem.
Ao mesmo tempo, de uma banda e de outra,
Os inúmeros olhos deslumbrantes,
Que das quatro figuras quadrifrontes
Se abrem e fulgem pelos corpos e asas
E pelas rodas do animado coche,
Vibram, do mesmo espírito regidos,
Uma aluvião de devorante fogo
Que, por entre os malditos espalhado,
Forças, valor, de todo lhes consome,
E derribados pelo chão os deixa
De impotente aflição no horror imersos.
Contudo, só metade o Nume-Filho
De suas forças empregou prudente
E aos raios permitiu só meio impulso;
Exterminar dos Céus os inimigos
Levava em vista e não aniquilá-los.
Erguer fazendo os que prostrado tinha,
Todos diante de si, qual grei medrosa,
Furibundo os impele arrebanhados,
Persegue, abrasa, do fulgente Empíreo
Para os confins e cristalinos muros
Que, mui extenso espaço então abrindo,
E para dentro sobre si rodando,
Descobrem do atro Abismo o imenso vácuo.
Vendo tão pavorosa perspectiva,
Lá recua de horror o bando impuro;
Mas, dos raios que o seguem mais receoso,
Avança logo às temerosas margens
E da altura dos Céus se precipita,
Indo o eternal rancor sempre após ele
Do Báratro pelo âmbito insondável.
O Inferno, ouvindo tão feroz estrondo
E crendo que arruinado o inteiro Empíreo
Vinha sobre ele desabando a prumo,
Tremeu, — e fugiria amedrontado,
Se invencível o fado o não prendera
Em fundos alicerces, arraigados
Do tenebroso Abismo à base imóvel.
Nove dias durou a enorme queda:
175
O Caos mui espantado, ribombando,
Sente elevar-se décupla desordem
Entre sua congênita anarquia
E de hórridos destroços entulhar-se.
Por fim o Inferno, galardão dos ímpios,
Da dor e mágoa habitação hedionda,
Cheio de eterno, devorante lume,
Abriu as amplas, famulentas fauces,
Sorveu-os todos, e as fechou sobre eles.
Livre de tanto horror o Céu exulta;
Dos muros tapa logo o aberto espaço,
As deslocadas, lúcidas cortinas
Para seu sítio prístino rodando.
Único vencedor de seus contrários
Volta o Messias no triunfante coche;
E os santos, silenciosas testemunhas
De suas tão magnânimas proezas,
A recebê-lo partem jubilosos,
Insignes palmas da vitória erguendo,
E descantando, em refulgentes coros,
O triunfo imenso do Monarca ovante,
Herdeiro e Filho da eternal Deidade,
Empunhando igualmente o cetro augusto
Porque o mais digno de reinar se mostra.
Entre cânticos tais pomposo avança
Dos Céus pelas diáfanas campinas,
E chega breve ao majestoso alcáçar,
Onde, no erguido sólio do Universo,
Acha o potente Pai que à destra o assenta
Entre as delícias da inefável glória.”
176
Da tua dita assim te despojando
E fazendo que em ti também recaia
O seu castigo e desventura eterna.
Se aos infortúnios seus puder ligar-te,
Exultará em bárbara vingança
Vendo que acinte tal magoa o Eterno.
A tão vis sugestões fecha os ouvidos,
De tua frágil sócia esteia o ânimo.
Da rebeldia a punição, que ouviste,
Como exemplo terrível a contempla:
Puderam ser no Céu sempre felizes,
Porém no Inferno despenhados foram.
Alerta! as leis de Deus nunca transgridas.”
LIVRO VII
Rafael, a pedido de Adão, relata como e por que foi formado este Mundo; que
Deus, depois da expulsão de Satã e de seus anjos para fora do Céu, declarara ser
seu gosto criar outro Mundo e outras criaturas que nela habitassem; então
manda seu Filho, cheio de glória e no meio de corte de anjos, formar a obra da
Criação em seis dias. Os anjos celebram com hinos o Mundo já feito, e a
ascensão do Criador ao Céu.
177
Em meu ígneo frisão, infrene, alado,
(Qual noutro tempo o audaz Belerofonte,
Posto descesse de mais baixos climas),
Também me vale, ó Deusa! obsta-me a queda,
Que me faria em campos Aleanos
Desamparado, errante, envergonhado!
178
Quando podiam em mil outros frutos
Saciar os mais variados apetites.
179
Nos tens instruído de sucessos onde
Não alcança o mundano entendimento,
Posto em sabê-los muito utilizarmos
Segundo ao juízo pareceu do Eterno, —
Mais abaixo descer digna-te agora:
Relata, o que nos é de igual proveito,
Como tiveram estes Céus princípio
Que em tão longínqua altura se nos mostram
Cheios de fogos móveis, sem quantia;
E este ar que, vastamente derramado,
Ocupa o espaço inteiro, cede a tudo,
E esta florida terra em torno abraça;
Que tempo têm da Criação as obras;
Em quanto tempo se ultimaram elas;
E por que Deus se decidiu tão tarde,
Gozando de repouso sacrossanto
Até então por toda a eternidade,
A fabricar no Caos o Universo.
Dize-nos pois, se te não é vedado
(Não que de Deus nos eternais arcanos
Entrar instemos com profana audácia!
Mas, quanto mais soubermos seus prodígios,
Por tantas causas mais o louvaremos).
Do seu curso inda ao Sol resta metade;
Para ouvir teus acentos majestosos
Tem vagaroso remanseado o giro,
E inda o fará por que de ti escute
Como foi feito, e como do atro Abismo
Se ergueu recém-nascida a Natureza:
Ou para ouvir-te se mais pronto acorrem
Vésper e a Lua, certo hão de acatar-te
A noite silenciosa, atento o sono,
Té que, findado teu augusto canto.
Aos Céus te leve da manhã o brilho.”
180
Para glorificares o alto Nume
E obteres dita em grau possível no homem.
Do Onipotente recebi poderes
Para, dentro de metas circunscritas,
Cumprir o anelo de saber que mostras;
Porém delas além nada perguntes:
A perspicácia tua em tais matérias,
Somente é dado percorrer humilde
Onde a revelação caminho lhe abra,
Quanto nas trevas suprimido tenha
O rei oculto, o só que tudo sabe,
Ninguém pode indagar no Orbe, no Empíreo.
Contudo, assaz a indagação humana
Tem por onde ambiciosa se apascente:
Porém a ciência temperança exige;
Deve saber-se o que somente baste
Para do entendimento encher as metas,
Mas não com imprudência transpassá-las:
Se a nímia cópia de alimento gera
Perturbações que a máquina desmancham,
A nímia ciência torna-se em loucura.
Atenta pois no que ora te revelo.”
181
“A maior parte se manteve fida.
“Sei que este nosso império populoso
“Tem, para povoar seus reinos amplos
“E para celebrar os sacros ritos
“Neste alto templo, junto destas aras,
“Multidão suficiente de habitantes:
“Mas — para que esse pérfido invejoso
“Não blasone com feros insolentes
“Que despovoou dos Céus o imenso espaço,
“E que ao insulto, que me fez, unira
“Em detrimento meu pesares, danos, —
“Eu, reparando semelhante perda
“(Se é tal perder perversos tão perdidos),
“Vou num momento fabricar um Mundo
“Em que, de um só casal da estirpe humana,
“Inumeráveis povos se originem:
“Ali têm de morar té que, elevados
“Por claras provas de obediência longa,
“Por graus de não equívocas virtudes,
“Se abram caminho e entrar no Empíreo venham.
“Sendo um só reino então, sendo um só todo
“Terra e Céu, transmudada em Céu a Terra,
“Todos desfrutarão, de Deus no grêmio,
“Interminável paz, eterna dita.
“No entanto, ó vós, celestes potestades,
“Gozai de toda a vastidão do Empíreo.
“E tu, meu Verbo, Filho meu dileto,
“Farás em meu lugar quanto medito:
“Fala e verás que te obedece tudo.
“Meu poder, meu espírito que abrangem
“Coa sombra sua as existências todas,
“Contigo mando; vai, traça, constrói,
“Em parte desse Abismo ilimitado,
“O Céu e a Terra com limites próprios:
“Vai; sou quem sou; a imensidade ocupo;
“Não há vazio para mim no espaço;
“Incircunscrito sou, — porém escondo
“Em mim, quando me apraz, meus atributos;
“Fogem de mim necessidade e acaso;
“Na mente, nas ações, no ócio, sou livre;
“Minhas ordens o fado constituem.”
O Pai Onipotente assim se expressa,
E logo o Nume-Filho as ordens cumpre.
São imediatas as ações do Eterno;
182
Vão do tempo e do moto além do alcance;
Porém do homem terreno elas não podem
Entrar no ouvido, penetrar na mente,
Sem que as narre uma série de palavras.
Júbilo grande, pompas de triunfo
O Céu mostrou assim que foi do Eterno
Ouvida a decisão. Todos entoam:
— “Glória ao supremo Deus, autor de tudo!
“Boa vontade nos futuros homens,
“E paz ditosa nas moradas suas!
“Glória a Deus justiceiro que os perversos
“Expulsou, com benéfica vingança,
“De sua vista e habitações dos justos!
“Glória e louvor a Deus que, Onisciente,
“O bem tira do mal, criando e pondo
“No lugar dos espíritos malignos
“Prole melhor! Sua bondade alcance
“A séculos e mundos infinitos!”
Assim cantaram os celestes coros.
No entanto pronto para a grande empresa
Eis ovante se mostra o Nume-Filho:
Do Eterno a onipotência, a majestade,
Com vívido esplendor o c’roa e cerca;
Da sapiência e do amor nele fulguram
As imensas, puríssimas torrentes;
Inteiro o Eterno está dentro em seu Filho.
Inumeráveis de seu coche em torno
Se difundiam querubins, virtudes,
Co’os serafins, dominações, e tronos.
Cada espírito tinha asas brilhantes,
E montava soberbo um carro alado
Dos imensos milhares, que, do Eterno
Nos arsenais, de bronze entre montanhas,
Desde evos longos se guardavam prestes
Para o cortejo dos solenes dias:
Era das rodas espontâneo o moto;
Animadas de espírito vivente,
Serviam seu senhor prontas, submissas.
De per si, par em par, no entanto se abrem
As imensas do Empíreo eternas portas,
Que, harmônicas rodando em quícios de ouro,
Dão passagem da glória ao Rei supremo,
Figurado em seu Verbo poderoso
Que vai dar existência a novos mundos.
183
Chega às margens do Céu o grão cortejo,
Donde descobre o Abismo imensurável
Que, semelhante ao mar, todo se agita
Escuro, destrutivo, furibundo,
Com repelões dos ventos açoitado,
Erguendo vagas que afiguram serras
Contra o Céu dirigidas, ameaçando
Mesclar-lhe em amplas ruínas eixo e pólos.
— “Silêncio, ó torvo mar! Sossega, Abismo!”
O Verbo disse; e logo, levantado
Dos querubins nas flamejantes penas,
Ornado todo coa paterna glória,
Voa e se entranha na extensão do Caos
Ao sítio onde existir devia o Mundo.
E respeitoso, o Caos a voz lhe acata,
E todo o seu cortejo ovante o segue
Para da Criação ver os prodígios,
De seu poder incomparáveis obras.
Ali as rodas férvidas suspende:
Então, pegando no compasso de ouro
(Que, preparado no arsenal do Eterno,
Guardado estava para em tempo fixo
Circunscrever os términos do Mundo),
Firma-lhe uma das pontas, e sobre ela
A outra vira em redor pelo amplo Abismo.
E disse:— “Os teus confins, ei-los, ó Mundo;
“Estende-te até’qui, daqui não passes.”
Deus, de uma vez, assim fez Céus e terra, —
Contudo inda matéria inerte e informe,
Do Abismo imersa na profunda noite.
Logo porém sobre as imóveis águas
O espírito de Deus, fonte da vida,
Abre as asas e infunde-lhe com elas
Vivificante, tépida virtude,
Que as fezes não vitais lhe precipita:
As concordes moléculas dest’arte
Em harmônico arranjo põe e ordena,
E os vários sítios das discordes marca:
Fica entre as massas o ar que extenso as cerca;
Sobre seu centro se equilibra o globo.
— “Haja luz” (disse Deus). Logo do Abismo
Nasceu a luz, porção do éter mais pura,
Da criação a cândida primícia
Que do nascente seu vem caminhando,
184
Pela extensão dos ares tenebrosos,
Dentro de um tabernáculo de nuvens.
Deus a viu e achou nela o que intentara.
Não havendo inda Sol, dispõe o Eterno
Que a luz num hemisfério se limite
Enquanto no outro a sombra se difunde:
À luz dia chamou, à sombra noite.
Assim composto de manhã e tarde
Foi o primeiro dia do Universo.
Os coros celestiais o celebraram
Assim que viram com ovante arroubo
A luz nativa rebentar das trevas:
De jubilosas explosões e de hinos,
Ao majestoso som das harpas de ouro,
Enchem o inteiro côncavo do Mundo
De Deus em honra, e Criador o aclamam.
De novo disse Deus: — “Dentre essas águas
“Avulta, ó firmamento, e umas das outras
“Dividam-se por ti em baixas e altas.”
Eis do ar mais puro e transparente um globo
Se forma ingente, côncavo, brilhante,
Chegando desta vasta redondeza
Aos remotos confins, barreira firme
Que as altas águas separou das baixas.
Bem como entre águas foi formada a terra,
Assim entre um oceano cristalino
Foi também fabricado o firmamento.
Dele em distância, que julgou precisa,
Deus afastou o turbulento Caos
Para de suas margens as desordens
Não arruinarem, sendo-lhe contíguas,
A fábrica do Mundo. Então o Eterno
Ao firmamento deu de Céus o nome;
E os coros cantam o segundo dia
Também constando de manhã e tarde.
Formada estava a terra, mas oculta,
Imaturo embrião, dentro das águas
Que tépidas, prolíficas, a banham,
Pouco a pouco a textura lhe amolecem.
No fluido produtor toda embebida
A grande mãe-comum então fermenta;
E, vendo-a Deus a concepções disposta,
— “Águas, que subjazeis ao firmamento,
“Num só local vos congregai” — eis disse —
185
“E enxuta desde já mostra-te, ó terra.”
Fora das águas de repente surgem
Vastas montanhas, cujos crespos ombros
Até dentro das nuvens se alevantam,
E cujos topes pelos Céus se escondem.
Tão altas sobem túmidas as serras,
Quanto profundos, amplos, escabrosos
Descem alcantilados precipícios
Que às águas próprio leito proporcionam.
As fluidas massas logo ovantes correm
Buscando esses declives, enroladas
Como no seco pó gotas da chuva.
Quais das trombetas ao clangor marchando
Os exércitos, já por mim contados,
Avançam co’os pendões que no ar fuzilam —
Assim da aquosa multidão as massas,
Rolando umas sobre outras, se despenham
Das altas catadupas, ou pausadas
Através de planícies vão descendo, —
Umas, erguidas de cristal quais muros,
Outras, rochas a prumo afigurando:
Deu-lhes tal força o espírito divino.
Debalde as obstam montes e penhascos;
Sempre fluida torrente passo encontra,
Já serpeando em circuitos, vagos, amplos,
Já penetrando a umedecida terra,
Em profundos canais arrebatada:
Lá mais a mais os caudalosos rios
Vão engrossando até que altivos entram
No imenso abismo do agregado fluido.
Deus chamou terra ao árido elemento,
E mar ao receptáculo das águas.
Depois nas obras prosseguiu, dizendo:
— “Cobre-te, ó terra, de árvores, de plantas
“Que te adornem co’um manto de verdura,
“Dotadas, cada qual, como lhe é próprio,
“De folhas, flores, de sementes, frutos.”
Apenas acabou, súbito a terra,
Té’li desagradável, erma, nua,
Brota relva que a inteira superfície
Lhe tapiza de nítida verdura:
Todas as plantas súbito florescem
De mil cores mostrando a variedade,
E mil gratos aromas exalando.
186
Logo as videiras bastas se carregam
De purpurinos ou de argênteos cachos;
Cresce a rojo a cheirosa abobadeira:
Searas se elevam em batalha postas;
E vão surdindo com modesto anelo,
A sarça emaranhada, o humilde arbusto;
Levantam-se depois, como osciladas,
As corpulentas árvores, curvando
Os longos ramos co’o pendor dos frutos,
Ou já brotando recendentes flores;
De altas florestas c’roam-se as montanhas;
De mirtos se ornam, de rosais sombrios,
As claras fontes, os amenos vales;
De brancos choupos ornam-se as ribeiras.
Assim, parelha ao Céu, mostra-se a Terra
Pomposa habitação digna de Numes:
E, — se inda a não rociava a chuva fértil,
Nem para a cultivar havia homens,
Contudo, dela mesma se elevavam
Largas névoas de mádidos vapores
Que, baixando depois, umedeciam
Os tenros germes que inda o chão esconde,
O arbusto, a relva, a planta inda sem caule.
Deus viu bom tudo; — e assim se terminaram
Manhã e tarde do terceiro dia.
De novo toma o Altíssimo a palavra:
— “Astros, surgi, brilhai no firmamento,
“Do claro dia, separai a noite;
“Dai luz à Terra, assinalai os giros
“Dos dias, meses, estações, dos anos.”
Disse; e assim fez-se. Logo rutilaram
Dois grandes astros na extensão celeste
Para alumiar, por alternados turnos,
Os dias o maior, as noites o outro:
Mostraram-se depois no firmamento
As estrelas que ao dia se recusam
E que ressurgem nítidas de noite,
A luz assim das trevas separando.
Nas obras suas atentando o Eterno
Achou serem da fábrica sublime.
Formou primeiro o Sol, grandiosa esfera,
Substância etérea mas opaca ainda;
Logo a Lua; depois essas estrelas
Que, de grandeza vária, pelo Empíreo
187
Bastas semeou, quais pelo prado flores.
Da luz a maior parte então tirando
Desse seu tabernáculo de nuvens,
Pô-la no orbe do Sol, poroso e firme
Para embeber o fluido refulgente
E o foco lhe suster de imensos raios,
Da luz ficando o majestoso templo.
Como de rica fonte, dela tiram
Em urnas de ouro a luz com que se ufanam
Os demais astros que lhe são submissos, —
Assim, à custa de seu brilho e cores,
Doura-se e fulge da manhã a estrela
E as outras todas que, por mui remotas,
À vista humana tênues se afiguram.
Súbito o Sol resplendeceu no oriente;
Rei do dia, com seu fulgor dourado
O âmbito inteiro ocupa do horizonte,
E ovante o giro seu perfaz no Empíreo:
Vêm diante dele com mimoso influxo
A branca Aurora e as Plêiades dançando.
Fronteira no ocidente viu-se a Lua;
Do Sol espelho, menos rutilante,
Dele enche co’o fulgor seu pleno disco,
E some-se à medida que se adianta
No firmamento a lâmpada do dia, —
Té que a noite no oriente clara fulge
Do grande eixo do Céu passeando em torno,
E com milhões de estrelas, que abrilhantam
De menos viva luz todo o hemisfério,
Seus poderes benéfica reparte.
Então, ornadas pela vez primeira
De astros brilhantes que, em regrado giro
Sobem e descem do horizonte a escarpa,
Deliciosa a manhã e a tarde amena
Formam o quarto dia jubilosas.
Torna Deus a dizer: — “Enchei-vos, águas,
“De vivente, prolífica progênie,
“E sobre a terra, no amplo firmamento
“Abri as penas, o ar fendei, ó aves.”
Logo nas águas e no espaço do éter
Os tipos das espécies nadam, voam,
Vários em castas, vários em tamanhos.
Deus vendo-os folga, e os abençoa, e diz-lhes:
— “Gerai fecundos, tende infinda prole,
188
“Peixes, nas águas; pássaros, na terra.”
Logo o alto mar, os golfos, as baías,
Os rios, as lagoas, se enchem, fervem
De cardumes de peixes sem quantia:
Uns, encorpados rasgam velozmente,
Nas barbatanas lúcidas librados,
Das verdes ondas o âmago flexível
E em grupos pelo mar assédios formam;
Outros, de menos vulto, ou sós ou pares,
Andam pascendo na alga, ou já vagando
De coral pelas rúbidas lamedas,
Ou viram para o Sol, brincando alegres,
De líquido ouro as úmidas espaldas
Que de vivos fulgores relampeiam;
Estes esperam em argênteas conchas
O úmido nutrimento descansados;
Aqueles, sob o abrigo de altas rochas
As próprias armas em comum juntando,
A presa sempre sôfregos pesquisam.
As nédias focas, os delfins curvados
Brincam e pulam nas macias ondas:
Outros de enorme vulto e gesto enorme,
Tardios removendo a mole vasta,
Profundamente os mares atormentam.
Lá se vê, avultando ao longo, ao largo,
O Leviatã, aquático gigante,
A maior das viventes criaturas:
Quando dorme, assemelha um promontório;
Quando nada, parece ilha boiante;
Nas guelras sorve e pela tromba expele
Jorros de mar que altíssimos derrama.
No entanto as grutas, os pauis, as praias,
Incubam amornando os férteis ovos,
Que, dentro em breve de per si quebrados,
Ninhadas de aves dão à luz sem conto:
Primeiro piam, nuas, pequeninas;
Logo se emplumam estendendo as asas
E, no ar sublime voando clangorosas,
Da Terra deixam longe o globo opaco
Parecendo-lhes nuvem sotoposta.
A águia, a cegonha, ali fundam seus ninhos
Nos cimos dos penhascos, sobre os cedros:
Outras aves além às sós no espaço,
Voam como lhes praz; mais cautas outras,
189
Das estações reconhecendo os turnos,
Em colunas maciças se encorporam
E assim, compondo aéreas caravanas,
Coas asas se prestando auxílio mútuo,
Atravessam regiões, transpõem mares:
Governam desta sorte os grous previstos
Seu giro anual na direção dos ventos;
E ao crebro adejo das imensas asas
Oscilam flutuando os campos do éter.
De menos corpo as aves, todo o dia,
Esvoaçando com penas multicores.
De ramo para ramo alegres pulam
E cantando recreiam as florestas:
De melodia nem carece a noite
Que, enquanto dura, docemente a encanta
Com seu trinado o rouxinol solene.
Outros nos rios, nos argênteos lagos,
Banham os peitos de macia pluma:
Nota-se entre estes o soberbo cisne
Que, em arco, erguendo com galhardo porte,
O colo níveo sobre as níveas asas,
Rema co’os ágeis pés e as ondas fende,
Assim passeando em majestosa pompa, —
Ou, já deixando o aquático remanso,
Nas firmes asas libra-se e remonta
Às alturas do etéreo firmamento.
Outros com pé seguro a terra pisam,
Como o cristado galo que repete
Com seu forte clarim da noite as horas, —
E o formoso pavão que se adereça
Com longa cauda ovante aberta em orbe,
Do íris coas flóreas cores matizado,
Todo esparzido de estrelados olhos.
Assim com aves o ar, com peixes a água,
Brilham ovantes, e do quinto dia
Solenizaram-se a manhã e a tarde.
Da tarde e da manhã ao som das harpas,
Refulgente assomou o sexto dia,
Dia da criação o derradeiro:
E assim se expressou Deus: — “Produze, ó Terra,
“Teus próprios animais que sejam tipos
“De suas variadíssimas espécies.”
Eis obediente a terra, o seio abrindo,
Deu logo à luz viventes numerosos,
190
Perfeitos como são na idade adulta.
Como do seu covil, ergue-se e rompe
O feroz animal de sob a terra
Nas matas, nas florestas, nas balseiras,
Ovantes por ali passeando a pares:
D’além a grei levanta-se já mansa
Dos verdes campos, dos floridos prados;
Uns em rebanhos, solitários outros,
Tão depressa nasceram, vão pastando.
Lá se entumecem os torrões relvosos,
E dentre eles o fulvo leão jubado
Ergue o peito, no chão as garras ferra,
E, nelas firme, pelas ancas puxa
Té que de todo com violência nasce
Como se férreos vínculos rompesse,
E soberbo sacode a juba hirsuta.
A onça, o leopardo, o tigre, o chão abrindo,
Surdem como a toupeira, sublevando
A terra que arremessam pulverosa,
E em montículos fica partilhada.
Ali do cervo alípede aparece
A ramosa cabeça e logo todo:
Ajoujado coa própria corpulência,
Dificilmente de seu molde surge
O Beemoth, da terra o maior filho:
Quais plantas os lanígeros rebanhos
Saem fora do chão, balam, retouçam,
Vivendo por igual no mar, na terra,
Assim nasce o conchado crocodilo,
E o dentado hipopótamo sanhudo.
A um tempo em muitas partes penetrando,
Rojam, gozando a luz, répteis e vermes:
Uns são alados; outros em vez de asas
Ostentam lindos, agitados leques;
E quase todos fúlgidos se enfeitam
De mui tênues debuxos mas exatos,
Feitos nas cores do vistoso estio;
Nuns o ouro brilha, a púrpura se acende,
Noutros agrada o verde, o azul encanta.
Desenvolvendo dimensão comprida
Estoutros vão listrando a branda terra
Com seus sinuosos rastos; nem é destes
A mais somenos prole entre os nascidos,
E muitos são serpentes formidáveis
191
De grande comprimento e vasta mole.
Que ora amplíssimas roscas alardeiam,
Ora adejam com asas membranosas.
Logo gira a econômica formiga,
De grande coração, pequeno corpo;
Cauta previne urgências do futuro;
Junta-se em tribos onde alcança a todos
Jus igual, perda igual, igual proveito;
Talvez por isso nos vindouros tempos
Venha a ser no governo dos humanos
Nobre modelo de igualdade justa.
Depois vêm das abelhas os enxames;
Ali as fêmeas, que iudustriosas fazem
Co’o mel nectáreo, que das folhas tiram,
Da crócea cera os celulosos favos,
O ocioso esposo com regalos nutrem.
Quanto aos demais, supérfluo é relatar-tos,
Pois que lhes deste os nomes que os distinguem
E as índoles cuidoso lhes notaste:
Não te escapa sem dúvida a serpente,
Mais sutil animal dos campos todos;
Adquire às vezes extensão enorme,
Olhos revolvem que parecem brasas
E irada encrespa a temerosa crista;
A ti, contudo, guarda-te respeito, —
Acode ao brado teu submissa e pronta.
Então em plena pompa os Céus brilhavam:
Pela impulsiva direção, que dera
O grão-motor, os orbes se dirigem,
No âmbito azul girando reluzentes.
Vendo-se terminado, belo e rico,
O térreo globo de prazer exulta;
Pelos ares serenos voam aves;
Pelas argênteas águas nadam peixes;
Pela terra frutífera caminham
Répteis, insetos, vermes e quadrúpedes.
Mas perfeito de todo o sexto dia
Não era; uma obra-prima lhe faltava,
De toda a criação remate augusto, —
Vivente que, dos brutos mui diverso,
De santidade e de razão dotado,
Sua origem sublime conhecendo,
Sustido a prumo, aos Céus levante a fronte
E sobre as outras criaturas reine, —
192
Que, do supremo Deus, que o fez tão nobre,
Aos benefícios grato, lhe tribute
Respeito, amor, adoração e preces,
Por tal correspondência portentosa
Aos sublimados Céus ligando a Terra.
O Onipotente então, que abrange tudo,
Em plena corte fala ao Nume-Filho:
— “Façamos o homem; nele resplandeça
“A semelhança nossa, a nossa imagem;
“Como em domínios seus ele governe
“Em toda a terra, nos viventes todos.”
Disse: — e do pó da terra, Adão, formou-te,
Suas próprias feições em ti moldando;
O alento divinal deu-te da vida.
Criou depois a companheira tua.
Então, abendiçoando a espécie humana:
— “Crescei, multiplicai, enchei a terra”
(Disse), “sobre ela dominai e em tudo
“Que nela, no ar, no mar, goza da vida.”
Desse lugar onde formado foste
(Inda os lugares nome então não tinham)
Aqui trouxe-te Deus, como bem sabes,
Para este almo jardim, delícias todo,
Plantado e cheio de árvores divinas,
Grato ao sabor, ao cheiro, à vista grato:
Dos frutos que produz inteiro o globo
Aqui tens as multíplices espécies;
Para sustento teu dispõe de todos.
Mas... da Árvore que o mal e o bem revela
A quem se atreva saborear-lhe os frutos...
Não é dado comer: olha o que fazes;
Se comes dela, nesse dia morres:
Tal pena impõe-se ao que esta lei transgride.
Teus apetites próvido regula;
Vigia, teme que hórridos te assaltem
Os dois sócios cruéis Pecado e Morte.
Aqui Deus terminou quanto fizera,
E a seus projetos viu conforme tudo:
Com os aplausos da manhã e tarde
Assim se terminou o sexto dia.
Então o Criador sempre incansável
Ao Céu dos Céus voltou donde no Mundo,
De seus domínios adição recente,
Os olhos alongasse e visse o aspecto
193
Que esse globo magnífico daria
Visto da altura do superno trono.
Sobe; sem conto aclamações o seguem,
E de vinte mil harpas o concerto,
Cuja harmonia angélica enlevava,
Tangiam sonorosos (bem te lembras)
As estrelas, os Céus, a Terra, os ares:
Os planetas pararam respeitosos
Enquanto ia subindo o grão cortejo.
— “Abri-vos, portas eternais, abri-vos,
“Dos Céus portas viventes” (descantavam
Todos os anjos em cadentes coros),
“Deixai entrar o Criador supremo
“Que vem de edificar uma obra insigne,
“O Universo, em seis dias completado:
“Desde hoje a miúdo abrir-vos-eis; o Eterno
“Designar-se-á de ir sempre complacente
“Santificar dos justos a morada
“E mandar-lhes, por vezes repetidas,
“Seus alígeros núncios que lhes levem
“De sua graça os divinais tesouros.”
Assim subiam pelo etéreo espaço
Ao Céu que abrira seus portões fulgentes;
E, entrando-os, vão de Deus ao sacro alcáçar
Por ampla estrada reta, onde brilhando
É ouro o pó, o pavimento estrelas,
Como na Láctea Via que de noite
Vês em forma de zona os Céus cingindo
De inúmeras estrelas semeada.
Eis a sétima tarde surge no Éden:
Já se escondera o Sol: núncio da noite
Já do oriente o crepúsculo subia, —
Quando ao monte dos Céus o mais excelso,
Onde de Deus o trono inabalável
Por toda a eternidade se sustenta,
Chegou o Nume-Filho: então sentou-se
Junto ao Pai que dali, sem levantar-se,
Fez, presenciou as obras invisível,
Porque enche imenso as existências todas,
De tudo sendo o autor e o fim de tudo.
Consagrado ao repouso e abendiçoado
Foi o sétimo dia pelo Eterno,
Porém não em silêncio; a doce flauta,
A harpa solene, o tímpano sonoro,
194
Os graves órgãos, enchem de harmonia
A vastidão do Empíreo sacrossanto,
Concertados com cânticos augustos;
Ora de um coro as variações abalam;
Ora enleva de um solo a melodia,
Enquanto áureos turíbulos acesos
Nuvens de aromas dão que o monte ocultam.
— “Jeová soberano!” (os Céus dest’arte
Cantam da Criação as maravilhas)
“Quão magníficas são as obras tuas!
“Teu supremo poder não tem limites!
“Que entendimento compr’ender-te pode?
“Que língua ousa contar os teus prodígios?
“Quando co’os raios teus em pó fizeste
“Os soberbos arcanjos rebelados,
“Decerto foste imensamente grande;
“Mas, vindo agora de formar um Mundo,
“Fulguras muito mais, maior te vemos.
“Destruir pode ser ação heróica;
“Mas criar é de glória mais subida.
“Prejudicar-te, limitar teus reinos
“Ninguém pode, monarca poderoso:
“Da infiel apostasia derrotaste
“Empresas arrogantes, vãos conselhos
“Ao passo que ela imaginava insana
“Pôr teu império em ruínas e roubar-te
“De adoradores teus porção imensa.
“Projetos contra ti executados
“Só servem de realçar teus atributos.
“Do mal que urdiram tenebrosos anjos
“Tiraste um bem maior criando um Mundo,
“Que vemos outro Céu dos Céus às portas,
“Vasto, brilhante, de cristal num lago,
“Recamado de estrelas sem quantia,
“Das quais talvez cada uma um Mundo seja
“Que devam habitar viventes próprios.
“Dele a clara porção tu bem distingues,
“O térreo globo, habitação dos homens,
“Grato, formoso, de delícias cheio,
“Tendo em redor o subjacente oceano.
“Oh! mil vezes feliz a humana prole
“Que Deus criou à semelhança sua
“Para morar nesse Éden e adorá-lo,
“Dominando, nas águas, no ar, na terra,
195
“Da criação inteiros os produtos,
“Multiplicando a raça justa e santa
“De seus adoradores escolhidos!
“Oh! mil vezes feliz, se ela conhece
“A dita sua e se mantém virtuosa!”
Os coros celestiais assim cantaram;
O Céu ressoou de ovantes aleluias:
O sábado dest’arte foi guardado.
LIVRO VIII
Adão interroga o arcanjo acerca do movimento dos corpos celestes: teve
resposta duvidosa, e ouviu a exortação para antes se ocupar na indagação de
coisas cujo conhecimento lhe seja de proveito maior. Convence-se desta
verdade; — e, desejoso de mais demorar ainda Rafael, relata-lhe o que lhe
lembra desde que foi criado; como veio ao Paraíso; sua conversação com Deus a
respeito da solidão e da sociedade tão necessária ao homem; seu primeiro
encontro e suas núpcias com Eva. Sobre este assunto aconselha-o também o
arcanjo; e, depois de repetir-lhe as admoestações, retira-se.
196
Que eu jamais de outra sorte descobrira.
E o que ouço agora com prazer e arroubo
Atribuindo a devida glória delas
Ao sábio Criador? Restam contudo
Em minha mente dúvidas que certo
Resolver podes com franqueza pronta.
Quando esta bela máquina contemplo,
Este Mundo que os Céus e a Terra formam,
E aprecio as grandezas respectivas,
Acho esta Terra um grão, um ponto, um átomo
Comparada ao sublime firmamento
Com todos esses lumes numerosos
Que parecem girar no espaço imenso
(Que imenso o provam deles as distâncias
E o diurno velocíssimo regresso).
Observo que em redor da Terra opaca,
Deste át’mo deste ponto, eles volteiam
Tão somente ocupados, dia e noite,
A ministrar-lhe luz sem que aproveitem
À demais extensão imensurável.
Raciocinando então, muito me admira
Como tão sóbria e sábia a Natureza
Caísse em tais desproporções, criando
Com mão supérflua corpos tão sem conto,
De muito mais nobreza, vulto e brilho,
De rotações perpétuas, incansáveis,
Para este uso somente, — enquanto a Terra
Que por giro menor se moveria
Mais facilmente, em tempo menos longo,
A seu fim chega, imóvel, sedentária,
Servida por mais nobres astros que ela,
Dos quais, como tributo, aceita ufana
O calor que a fecunda, a luz que a doura,
Por viagens tais e tantas conduzida
E ligeireza tal que não avondam
Para avaliá-la os números que temos.”
197
De que nunca dali se lhe ausentasse,
Dirige os passos ao vergel viçoso
A observar como as árvores, as plantas,
Que dispusera lá, preparam, brotam
As flores, os botões, gomos e frutos,
Que dela à vista e pela mão tocados
Se abrem e crescem com presteza ovante.
Mas não se entenda que ela se retire
Porque discursos tais não a deleitem,
Ou porque seus ouvidos não se ajustem
A quanto há de sublime: ela se guarda
Para o prazer de ouvir a Adão dizer-lhos,
Sendo ela única ouvinte; antes do esposo
Quer sabê-los que do anjo a quem perguntas
Não ousara fazer, tão fáceis no outro
Que amáveis digressões (ela o sabia)
Havia de entremear no grande assunto,
Também entrando conjugais carícias,
Que ela cheia de amor nem só palavras
Dos lábios dele receber costuma:
(Onde se ajunta agora um par como este,
Unindo-o mútuo amor, lealdade mútua?)
198
Esconde tudo o mais de homens e de anjos,
E seus grandes segredos não divulga
Aos exames dos que antes só deviam
Admiração humilde tributar-lhes.
A fábrica dos Céus ele abandona
A fátuas conjecturas e argumentos,
Talvez para sorrir quando insensatos,
Com vastas opiniões, lidado estudo,
Componham no porvir do Céu os moldes,
As estrelas ao cálculo submetam,
Dêem vibração à máquina do Mundo,
Desmanchem-na, fabriquem-na de novo
Para de inconvenientes ressalvá-la, —
Quando cinjam com círculos a esfera
Concêntricos, excêntricos, confusos,
Com ciclos, epiciclos, uns sobre outros.
Pelo teu raciocínio bem conheço
(E tu serás de tua estirpe a norma)
Que entendes que esses corpos fulgurantes,
Maiores do que a Terra, não deviam
Servir a Terra que é menor e opaca;
Que não devia o Céu fazer tais giros,
E a terra, a só que se utiliza, queda.
Primeiro atende que a grandeza, o brilho,
Só por si primazia não infundem:
Comparada co’os Céus pequena, opaca,
Pode a Terra possuir mais excelência,
Bem maior do que o Sol que estéril brilha,
Cuja virtude, improdutora nele,
Só na Terra frutífera se mostra;
Ali os raios seus, de outr’arte inúteis,
Vigor adquirem, mil efeitos causam.
Conclui, entanto, que em serviço à Terra
Esses brilhantes orbes não fulguram,
Mas em serviço a ti que a Terra habitas.
Do Céu o âmbito ingente é quem mais pode
Falar de seu Autor no imenso gênio
Que as amplas raias lhe estendeu tão longe,
Que tão vasto edifício ergueu no espaço.
Contente-se o homem de saber que mora
Em uma habitação que não é sua:
Tão grandes paços ocupar não pode;
Só pequena porção habita deles:
O uso do resto, só o Eterno o sabe.
199
De sua onipotência tu deriva
A rapidez inúmera dos astros...
Ele que dota as corporais substâncias
De quase espiritual velocidade —
Que tu bem aprecias, atentando
Que eu hoje de manhã parti não cedo
Dos elevados Céus, de Deus morada,
E cheguei antes do mei’-dia ao Éden,
Distância para sempre inexprimível
Por números que tenham nome no orbe.
Dando o mover-se aos Céus, assim me exprimo
Para o motivo inválido mostrar-te
Que em dúvidas te lança; mas contudo
Nada te afirmo, posto que isto quadre
A ti que tens morada aqui na Terra.
Para os caminhos seus deixar a salvo
Da pertinaz indagação humana,
Deus colocou da Terra os Céus tão longe, —
De sorte que, se ousasse a humana vista
Querê-los indagar, errasse sempre,
E vantagem nenhuma conseguisse.
Mas que disseras tu, — se o Sol brilhante
Deste Universo teu o centro fora,
E os demais astros em diversos giros
Por atração recíproca obrigados
Andassem dele em torno? Em seis percebes
Vaga carreira, erguida, baixa, oculta,
Progressiva, retrógrada, parada;
E que disseras se, como eles, fosse
A Terra tua o sétimo planeta
Indo insensivelmente circulando
Com movimentos três, diversos todos,
Ela que tão imóvel te parece?
Dado isto, atende que admitir não podes
Que em rumo oposto e em direção oblíqua
Esferas diferentes se revolvam,
Para trabalho enorme ao Sol poupares
E ao rombo que supões mas não observas,
Por cima das estrelas, presidindo
Da noite e dia ao círculo alternado.
Não ganhas nada em conhecer se a Terra,
Sobre o oriente rolando e em próprio moto,
Vai em busca do dia, e segue a noite
Coa face oposta que do Sol se esquiva,
200
Enquanto dele a luz resplendecente
A outra face lhe doura, e lhe abrilhanta.
E que disseras se essa luz, que corre
Do ar espaçoso as diáfanas campinas,
Repercutida pela diurna Terra,
Vai alumiar a Lua, qual de noite
À luz da Lua a Terra se alumia?
Talvez existam, como nesta, na outra
Habitantes gentis, campos fecundos,
Que de tão mútuo auxílio se aproveitem:
Vês ali manchas que parecem nuvens;
Nuvens dão chuva, chuva frutos cria
Em solo fértil que nutrir bem podem,
Os que por sorte ali nascido houvessem.
Talvez também que a descobrir tu chegues
Mais sóis que de outras luas se acompanhem,
Cujas luzes, os sexos dois possuindo,
Se unam, se comuniquem, se propaguem,
E o Mundo assim animem, entranhando
Em cada orbe prolíficas virtudes.
Talvez também que tão imenso espaço
Nenhum vivente espírito o povoe,
E antes deserto, inabitável seja,
Só próprio a transmitir da luz os raios
Descidos lá de tão longínquos orbes
Sobre este, o só que se orne de habitantes,
E que a seu turno lhos reenvie logo.
Todas estas hipóteses dão azo
A intermináveis, férvidas disputas.
Mas se isto é certo ou não, se às soltas no éter
Da Terra em torno o Sol se eleva e gira,
Do oriente vindo em flamejante pompa
Ou se do Sol dá volta ao disco a Terra
Do ocidente avançando imperceptível
E, ao mesmo tempo, sobre si rodando
Em seu eixo macio, sonolento,
Te embala e leva a ti qual leva os ares, —
Esse oculto problema não te canse:
Deus na altura dos Céus mui bem o entende.
Temer, servir a Deus, a ti só cumpre.
Segundo lhe aprouver, dispor o deixa
Dos mais viventes onde quer que assistam:
De quanto ele te deu, contente goza;
No Éden e em Eva tens a humana dita.
201
São para ti os Céus muito elevados
Para o que neles possa conheceres:
Sê modesto, coa ciência não te ufanes;
Tua existência e cômodos só busca:
Se outros mundos existem não indagues,
Nem se neles habitam criaturas,
Qual delas seja o grau, estado ou sorte:
Satisfaça-te o quanto, à larga e franco,
Da Terra e do alto Céu te hei revelado.”
202
A história minha que talvez ignores.
Inda é muito de dia: bem conheces
Com que ardil inocente me proponho
A demorar-te aqui, té que ele acabe,
Pedindo-te me escutes complacente;
E isto seria em mim loucura grande
Se em teu sim generoso não confiasse.
Contigo enquanto estou, no Céu me creio;
E mais suaves encontro os teus discursos
Do que os frutos mimosos da palmeira
(Gratos, depois do afã, à sede e à fome)
Nas horas do jantar apetecido:
Gratos decerto são, mas fartam pronto, —
E teus discursos, que enche a graça empírea,
Têm tal doçura que jamais me fartam.”
203
(Não decerto que os réprobos consigam
Sem permissão de Deus sair do Inferno;
Mas ele como rei seus altos mandos
Por pompa nos impôs, também querendo
Nossa obediência pronta sujeitar-lhes.)
Fechada com firmíssima pujança
Achamos a portada temerosa,
Munida de trincheiras invencíveis;
Porém muito antes de chegarmos perto,
Ouvimos dentro sons que denotavam,
Não dança ou canto, e sim raivas e fúrias,
Prantos, lamentações, dores, tormentos.
No sábado, e antes de acabar-se a tarde,
Regressamos à luz do Céu contentes;
Esta ordem ao partir nos fora dada.
Agora pois prossegue a tua história;
Atento te ouvirei: os teus discursos
Me são tão gratos como os meus encontras.”
204
Quanto em mim vejo, tento as móveis juntas,
Ando e corro: interior prazer me impele.
Mas quem eu era, conhecer não pude,
Nem de quem tinha o ser, nem onde estava.
Diligenciei falar, falei de pronto;
A língua obedeceu-me, e a quanto via
Consegui adaptar os próprios nomes.
— “Tu, Sol, formosa luz” (eu exclamava),
“Tu alumiada Terra, ovante e linda,
“Vós, montes, rios, vales, campos, bosques,
“Criaturas que tendes moto e vida,
“Contai-me, sim, contai-me, se o souberdes,
“Donde provenho, como aqui me encontro!
“Não me fiz eu a mim; logo, outrem fez-me
“Possuindo em si os necessários dotes
“De poder sumo, de bondade imensa.
“Dizei-me: — como me será possível
“Conhecer e adorar o Autor supremo
“Da vida e intelecção de que me adorno,
“E por quem mais feliz me considero
“Do que à primeira vista me supunha?”
Falava e andava sem saber onde ia,
Do sítio me afastando em que primeiro
Vira a ditosa luz e respirara:
Não ouvindo resposta, pensativo
Sentei-me à sombra num mimoso banco
Onde a verdura matizavam flores.
Ali colheu-me o sono a vez primeira,
Que, por suave opressão tomando posse
Dos meus sentidos cada vez mais fracos,
Me fez pensar que regressando eu ia
Ao que era dantes, insensível, mudo,
E que passava logo a dissolver-me.
Eis um sonho agradável, de improviso,
Minha imaginação tendo abalado,
Deu-me o prazer de me mostrar ao certo
Que inda eu gozava de existência e vida.
Pareceu-me que alguém de empíreo aspecto
A mim se chega e diz-me: — “Homem primeiro,
“Tu, destinado pai de imensos homens,
“Ergue-te, Adão; tens prestes a morada.
“Por ti chamado, venho ser teu guia
“Para os jardins ditosos que te aguardam.”
Disse, tomou-me a mão, alevantou-me;
205
E, pelos ares que macios cedem,
Sem precisão de andar, me foi levando
Sobre campinas e águas iminente,
Até me colocar numa montanha
Cujo cimo era um plano em torno vasto.
Cercava-se ele de árvores formosas,
Entremeado de flores e de plantas
Ora em caramanchões, ora em latadas,
Já em vistosas moitas, já dispersas,
Cortadas de lindíssimos passeios, —
De maneira que a terra dantes vista
Por muito menos bela eu reputava:
Cada árvore enfeitava-se de frutas
De variedade encantadora, e os olhos
Subitâneo apetite me entranharam
De as colher e comer. Eis nisto acordo
E vejo tudo real, como dormindo
Me fora vivamente afigurado.
De novo andara, se o que foi meu guia
Para estes sítios se me não mostrasse,
Com seu divino porte, no arvoredo:
Cheio então de respeito e de alegria,
Prostrando-me a seus pés submisso o adoro.
Logo ele me levanta e diz-me afável:
— “Eu sou quem buscas, sou o Autor de tudo;
“Quanto vês em redor, por cima, em baixo,
“Por mim é feito: este Éden te franqueio;
“Cultiva-o, dele goza e come os frutos:
“Com plena liberdade e ânimo alegre,
“De todas estas árvores te nutre
“No jardim postas; nada aqui te falta:
“Mas da Árvore que em quantos dela comem
“Produz do bem e mal a infausta ciência,
“Que eu mesmo, junto da Árvore da Vida,
“No meio do Éden pus, caução singela
“Da obediência e da fé que haver te incumbe,
“Nem sequer proves; nunca isto te esqueça;
“Evita as consequências amargosas
“Que há de ter a infração deste preceito;
“E sabe que no dia em que a provares,
“Meu único preceito transgredindo,
“Decerto morrerás, — e desde logo
“Tens de perder estado tão ditoso.
“E de ires para um mundo desabrido
206
“Onde só há desgraças e misérias.”
Esta rígida ameaça temerosa,
Ele ma pronunciou com tom severo;
E inda soa espantosa em meus ouvidos,
Posto que eu possa preservar-me dela.
Mas logo serenou o aspecto lindo
E continuou gracioso o seu discurso:
— “Nem só confins tão gratos te franqueio
“Mas toda a terra a ti e à raça tua:
“Tem-na como senhor; impera em quantos
“Vivem nela, ou no mar, ou campos do éter,
“Andem, nadem ou voem: toma posse
“Deles todos; observa as várias castas:
“Eu, os da terra e do ar, aqui tos chamo
“Para de ti seus nomes receberem;
“E sujeição igual fica entendida
“Nos peixes que recinto aquoso ocupam,
“Não vindo aqui porque sair não podem
“De seu próprio elemento, ou do ar ambiente
“As ondas respirar por mais delgadas.”
Tal falou: ante mim vêm logo vindo
Do ar e da terra os animais aos pares;
E chegando, o seu vôo aqueles sustam,
Estes curvam-se humildes. Quando passam,
Sei quem são — e lhes ponho os próprios nomes
(De inteligência tanta Deus me ornara).
Porém não descobri em nenhum deles
Aquele que eu supunha inda faltar-me,
E tal reparo ouviu-me o Autor de tudo.
— “Que nome te hei de dar, ó tu que acima
“Da humana essência estás, ou de outra essência
“Mais alta que ela, e te sublimas tanto
“A tudo que há, se muito aquém te fica
“Qualquer dos nomes que eu me anime a dar-te?
“Como adorar-te posso, Autor do Mundo,
“Autor de todo o bem tão visto no homem?
“Provido em cópia larga o tens de tudo;
“Mas com quem a reparta não diviso.
“Na solidão que dita se concebe
“Susceptível de gozo a sós estando?
“Ou, dado o gozo, que prazer se lhe acha?”
Assim falar ousei. E a visão linda,
Mais linda co’um sorriso se tornando,
Assim me diz: — “Por solidão que entendes?
207
“Não estás vendo cheia a terra e os ares
“De tantos, tão multímodos viventes;
“E às ordens tuas não acorrem todos
“Diante de ti a divertir-te prestes?
“Não lhes conheces propensões, linguagens?
“Eles pensam também, também combinam,
“E têm direitos a que os não desprezes:
“Impera neles; teu império é vasto:
“Neles teu passatempo constitui.”
Destarte se exprimiu quem tudo manda,
E pareceu que essa ordem me intimava.
De falar-lhe pedindo antes licença,
E com humilde submissão, lhe torno:
— “Não te estimulem as palavras minhas,
“Ó poder celestial, meu Deus, meu tudo:
“No que eu te vou dizer, sê-me propício.
“Teu substituto aqui não me fizeste,
“E inferiores a mim, por graus e muito,
“Todos os outros animais que existem?
“Em sociedade que prazer encontram
“Os que são desiguais na essência ou gênio?
“Desfrutar o prazer somente é dado
“Ao que, com proporção devida e mútua,
“De outrem, a quem o dá, também o aceita;
“Porém, tais circunstâncias diferindo,
“E unir querendo condições contrárias,
“Em vão se lida, e dentro em prazo breve
“Com tédio ambas as partes se repugnam.
“De própria companhia ouso falar-te
“Que ansioso busco para erguer-me co’ela
“A todo o grau do racional deleite
“Em que os brutos não são consortes do homem.
“Com sexos dois, cada um na sua espécie,
“Tu propriamente os animais combinas:
“Assim com mútua dita se comprazem;
“Ao lado um do outro, o leão e leoa exultam:
“Mas nunca entre eles as espécies várias
“Juntar-se podem; separados vivem
“As aves, os quadrúpedes, os peixes;
“E assim nas castas; boi não se une a símia.
“Muito menos será possível no homem
“Tratar com brutos tão diversos dele.”
De desagrado não mostrando indícios,
Dest’arte o Onipotente me responde:
208
— “Mui requintada e fina, Adão, me ostentas
“Em tua escolha a dita que procuras.
“Dizes que em solidão prazer não gozas,
“Posto que de prazeres circundado:
“Que ajuízas tu de mim, do estado meu?
“Serei ditoso ou não? De todo sempre
“Tenho eu estado só, não vendo nunca
“Outrem depois de mim, nem semelhante,
“E igual menos ainda, — como tenho
“Com quem recrear-me se me não dirijo
“Às criaturas que formei eu mesmo,
“Das quais as que em mais alto grau se encontram
“De mim abaixo estão infindamente
“Mais do que estão de ti as outras todas?”
Disse. E eu humildemente assim lhe torno:
— “Para chegar à profundeza e altura
“De teus caminhos eternais, não bastam,
“Ente supremo, os pensamentos do homem.
“Tu por essência a perfeição possuis;
“Nenhuma falta em ti achar-se pode:
“Assim o homem não é; de sua dita
“Por graus só chega aos términos bem curtos;
“Por isso anseia acompanhar-se sempre
“De semelhante seu com quem se ajude,
“Nos defeitos de essência limitada,
“Para alcançar de sua dita a posse.
“Tu não tens precisão de propagar-te
“Porque, inda que estás só, és infinito
“E quanto há de numérico transcendes:
“Mas o homem só por números avonda
“A encher de sua imperfeição as metas;
“Assim de outro igual seu iguais propaga
“Multiplicando sua imagem própria,
“Da unidade suprindo um tanto a falta
“Que em tal ato requer nas partes ambas
“A mais viva amizade, o amor mais terno.
“Na tua solidão, tu solitário
“Muito bem de ti mesmo te acompanhas
“Sem que precises de sociais prazeres;
“Contudo, se o quisesses, poderias
“Elevar tuas mesmas criaturas
“A grau divino, próprio ao fim proposto:
“Mas por conversação não me é possível
“Pôr a prumo animais que andam de bruços,
209
“Nem comprazer-me nos costumes deles.”
Tomando ânimo, assim falei afoito,
E usei da permitida liberdade
Que, sendo aceita, pôde esta resposta
Alcançar da engraçada voz divina:
—“Adão, exp’rimentar-te assim me aprouve:
“Não só dos animais vejo que entendes,
“Nome apropriado a cada qual impondo;
“Mas de ti mesmo, porque bem expressas
“O espírito que livre em ti reside,
“Imagem minha, que não dei a brutos
“E cuja sociedade, a ti imprópria,
“Fortes motivos tens de rejeitares:
“Essa disposição conserva sempre.
“Antes de tua súplica eu sabia
“Que o homem, estando só, não é ditoso;
“E que nenhum dos animais que observas
“Será tua adequada companhia:
“Falei-te assim, a ver como julgavas
“Do que mais relação terá contigo.
“Descansa, que será muito a teu gosto
“A companhia que eu te der; tens nela
“Teu igual, teu auxílio, outro tu mesmo:
“Serão de todo os vívidos desejos
“De teu ansioso coração cumpridos.”
Calou-se ele, ou mais nada ouvir eu pude:
Minha térrea substância, — fatigada
De tal colóquio celestial, sublime,
Em que subiu tão alto obedecendo
Tanto tempo de Deus à força empírea
Que a levava de envolta em seu influxo, —
Sucumbiu, quais sucumbem os sentidos
Se os exercita e cansa um grande objeto:
Eis deixa-se cair como ofuscada,
E logo auxílio procurou no sono,
Que pronto acode à voz da Natureza,
Apossa-se de mim, fecha-me os olhos...
Fecha-me os olhos — mas liberta fica
Minha imaginação que é vista interna
Pela qual, como estático, presumo,
Posto dormindo estar, que ali contemplo
A imagem fulgurante que acordado
Estava a ver. Então ela se inclina,
Abre-me o lado esquerdo, — e dali toma
210
Uma costela tinta em vivo sangue,
De espíritos vitais inda animada:
Foi grande o golpe e num instante a cura.
Deus coas mãos a costela vai moldando,
Té que uma criatura dela forma
Mui semelhante a mim mas de outro sexo.
Pareceu-me tão bela e tão amável,
Que tudo quanto dantes no Universo
Julgara belo agora o cri mediano, —
Ou que do Mundo as formosuras todas
Em corpo tão gentil se resumiam,
Principalmente nos benignos olhos
Que desde então mimosos infundiram
Dentro em meu coração tanta doçura,
Qual nunca exp’rimentado havia dantes:
Do porte seu também logo exalaram
O espírito de amor, graças, deleites
Que em toda a Natureza se esparziam.
Nisto ela foge e me deixou em trevas:
De repente acordei na ânsia de achá-la
Ou de carpir sem causa a perda sua,
Abjurando prazer que não fosse ela.
No entanto, quando menos a esperava,
Não longe a vi, tal como a vira em sonhos
Adornada de quanto o Céu e a Terra
Para fazê-la amável possuíam.
Ei-la que vem: condu-la o Autor celeste,
Guiando-a com sua voz, porém não visto:
Dos ritos conjugais vem informada,
Da santidade e candidez das núpcias:
Nos olhos traz o Céu, no andar as graças,
O amor e o brio nas maneiras todas.
Em tantas perfeições eu enlevado,
A erguer assim a voz fui compelido:
— “Ela volta!... Dissipa-se o meu susto!
“Cumpres quanto disseste, ó Deus benigno,
“Generoso doador de coisas belas;
“Mas esta sobrepuja as outras todas
“Que não se podem comparar com ela.
“Nela me estou a ver; dos meus por certo
“Seus ossos são, da minha carne a sua:
“Do homem tirada foi, mulher se chama:
“Por ela pai e mãe ele abandona,
“E esposo se une à esposa idolatrada, —
211
“Em deliciosa união ambos formando
“Um coração, uma alma, uma só vida.”
Prestava ela atenção às minhas vozes:
Acabando de ser por Deus formada,
Inda toda pudor, toda inocência,
Já conhecia com clareza exata
O grande preço das virtudes suas;
Que deve ser com mimo requestada
E não ganhada sem que muito a roguem;
Que não deve óbvia ser, nem ser esquiva,
Mas recatada estar, assim causando
Mais vivo amor, mais ávido apetite:
Ou, por melhor dizer, a Natureza
Nos pensamentos tanto lhe influía,
Inda que isentos da mais leve mancha,
Que ela me olhou modesta e retirou-se.
Eu fui seguindo-a: percebeu em breve
Com que respeito e amor eu me portava,
E não tardou com majestoso obséquio
Em ceder à razão que me assistia.
Ao nupcial aposento a vou guiando,
Corada, semelhante à manhã bela:
Nessa hora inteiro o Céu e os astros todos
Sobre nós mandam mais seleto influxo,
E nos decoram com fulgor mais vivo:
Mais ataviados de verdura e flores
Dão-nos os parabéns montes e vales;
Suave e alegre concerto as aves tecem;
Frescas as virações, meigas as brisas,
Nossa união pelas árvores murmuram,
E coas asas brincando nos atiram
De arbustos próprios rosas e fragrâncias,
Até que o rouxinol entoou solene
O canto do himeneu, e assim convida
Da tarde a estrela a que de pronto acenda,
No arbóreo cimo da montanha sua,
Das sacras núpcias o brilhante facho.
Assim te hei relatado a minha história,
Levando-a té ao ápice da dita
Que neste Paraíso estou gozando:
E cumpre confessar que, — achando eu gosto
Em tudo o mais de que se adorna o Mundo,
Quais os passeios, plantas, frutos, flores,
A música das aves, tudo em suma
212
Que delicadamente me comove
O tato, o gosto, o ouvido, a vista, o cheiro, —
Por nada sinto na alma abalo vivo,
Desejo ígneo nenhum, goze ou não goze;
Mas outro é meu sentir por tal beleza.
Vejo-a abalado de transporte sumo,
Cheio de igual transporte a toco e apalpo;
Ardo por ela em comoção estranha,
Minha única paixão conheço nela:
Quaisquer outros prazeres não me agitam,
A todos eles superior me julgo;
Porém somente me confesso fraco
Ante os encantos, ante o mover d’olhos,
Com que a beleza triunfar consegue.
Ou pobre a Natureza em mim se mostra,
Fazendo-me imperfeito e assim não apto
De tal objeto a repelir encantos:
Ou mais talvez tirou do que bastava
Do meu lado, e essa falta me enfraquece:
Ou, quando menos, deu em demasia
Ornatos à mulher que, não obstante
Ser no seu interior menos sublime,
Mostra por fora as perfeições mais belas.
Não que eu deixe de ver que abaixo fica
No desígnio essencial da Natureza
E da alma nas internas faculdades,
Que são na espécie humana as mais distintas;
E que também por fora iguala menos
De quem nos fez a majestosa imagem,
E designa com menos expressão
O caráter de império impresso no homem,
Com que ele as outras criaturas rege.
Contudo, quando dela me aproximo,
Tão amável a julgo, tão perfeita,
Tão ciente de si mesmo e extreme em tudo,
Que quanto ela pretende, ou faz, ou fala,
O mais discreto me parece sempre,
O melhor, o mais certo, o mais virtuoso:
A vista dela a ciência a mais profunda
Titubeia, desmente a usada força;
A mais grave e ilustrada sisudeza
Desconcerta-se e mostra-se loucura.
Como se antes de mim fosse ela feita
E não depois, qual foi por causa minha,
213
De autoridade e de razão se adorna:
E, para tudo ter, seu porte amável,
Candura e graças todo, em si ostenta
Nobreza de alma, pensamentos grandes,
Dela em torno espalhando reverência
Que faz o ofício ali de guarda de anjos.”
214
Tu cumpres teu dever, amando-a muito;
Degradas-te, se tens paixão por ela.
O verdadeiro amor não se combina
Da paixão coas danosas turbulências;
No bom-senso e razão tudo se firma;
Refina o juízo, o coração ilustra;
É caminho por onde erguer-te podes
Ao prazer eternal do amor divino;
Té às sensuais delícias não se abaixa;
Por tais motivos digna companheira
Nunca entre os brutos foi por ti achada.”
215
Ou seus mútuos fulgores entrelaçam?
Unir-se-ão estando um nos braços de outro,
Ou será essa união mental somente?”
216
Foi para mim afável, generosa:
E sempre tem de ser por mim honrada
Com mui viva lembrança agradecida:
Pelo gênero humano sempre nutre
Essa beneficência, essa amizade:
Tua visita a miúdo aqui repete.”
LIVRO IX
Satã, havendo percorrido em redor a terra, novamente se introduz no Paraíso
de noite em forma de névoa com ardil meditado, e mete-se dentro da serpente
dormida. Adão e Eva saem pela manhã para o trabalho, que Eva propõe dividir
em partes diferentes, trabalhando cada um em separado. Opõe-se Adão
alegando perigo por temer que o inimigo, acerca do qual haviam sido tão
admoestados pelo arcanjo, a acometesse a ela achando-a sozinha. Eva, agastada
porque a julgam menos circunspecta ou constante, insta em partir só, e mesmo
deseja deparar com ocasião em que prove a sua força: Adão afinal consente. A
cobra vem, acha-a sozinha: sua aproximação astuciosa, primeiro fitando-a como
embasbacada, depois falando-lhe com muitas lisonjas, e elevando-a acima de
todas as outras criaturas. Maravilhada Eva de ouvir falar a serpente, pergunta-
lhe como obteve a fala humana e tal entendimento que até agora não tivera: a
cobra responde que as alcançara comendo frutos de certa árvore do jardim. Eva
pede-lhe que a encaminhe a essa árvore, que acha ser a proibida Árvore da
Ciência. Tomando então todo o seu ânimo, e usando de diversos e ardilosos
argumentos, a serpente indu-la por fim a comer dos frutos da tal árvore. Muito
Eva se deleita com o sabor desses frutos, delibera por algum tempo se fará ou
não participar deles a Adão; depois leva-lhos e relata-lhe o que a persuadira a
comê-los. Adão primeiramente fica aterrado; — mas, vendo que Eva se perdia,
resolve, levado pela veemência do amor, a perecer com ela; extenua de
propósito a transgressão, e come também dos frutos. Efeitos de tal transgressão
em ambos eles: procuram com que encobrir sua nudez, e entram em
desavenças e acusações um contra o outro.
217
Mostrando a urbanidade generosa
De ouvir quanto ele lhes dizer quisesse.
218
Arneses de alto preço, ígneos cavalos,
Brilhantes cavaleiros, manobrando
De torneios e justas nos combates:
Depois, de lauta mesa em torno postos,
Em magníficas salas onde os servem
Lestos pajens, solícitos trinchantes.
219
Caminho lobrigou não suspeitado.
220
“Quanto co’os Céus, ó Terra, te pareces,
Se os não excedes! Produzida foste
Por habituado gênio a insignes obras:
A mais própria mansão serás de numes!
Por que faria Deus obra somenos
Depois de tantas ótimas mostrar-nos?
Terrestre Céu, brilhantes Céus te cingem,
Lançando em ti e para ti somente
Sucessivo fulgor de luz perene,
E com porte obsequioso concentrando
Em ti seus raios de sagrado influxo!
Se Deus (cujo poder a tudo abrange)
De tudo é centro no celeste Empíreo,
De todos esses orbes tu recebes
Produtoras virtudes sem quantia,
Estéreis neles mas que em ti florescem
Com portentoso arcano partilhadas.
Por elas brotam de teu seio as plantas;
Nasce de ti por elas majestosa
A multidão variada dos viventes
Em órgãos, em beleza, em graus de vida,
Em aptidão corpórea, em luz de engenho,
Tudo em mor perfeição reunido no homem.
Com que prazer teu âmbito eu volteara
Se algum prospecto me alegrar pudesse!
Dali, na térrea superfície mostras
Vales, montes, ribeiras, selvas, campos;
Além, no mar um fluido amplo e luzente,
E em redor fulvas praias que se adornam
De arvoredos, de rochas, brenhas, furnas:
Que deleitosa variação!... Mas nela
Não me é dado encontrar refúgio, asilo:
Quanto em torno de mim mais ditas vejo,
Tanto dentro de mim mais penas sinto:
Sou como um turbilhão de át’mos discordes:
Todo o bem para mim fez-se em veneno,
E nos Céus meu tormento requintara.
Já não insisto em habitar no Empíreo.
Visto que ser monarca ali não posso;
Nem já espero nas empresas minhas
Ver que meus infortúnios tenham tréguas:
Mas farei que outros sejam desgraçados
Como eu, inda que em pior meu mal se mude:
221
Só podem ruínas dar certo descanso
Ao ímpeto voraz de meus projetos.
Trabalharei por seduzir esse ente
Para quem feito foi o inteiro Mundo,
A fim que ele a si próprio se acarrete
Sua perda total e nela envolva,
Como em férvida enchente inevitável,
Quanto à sua existência se refira;
Com tais estragos minha raiva cevo.
Dos deuses infernais o único eu seja
Que obtenha a glória de arruinar num dia
Quanto esse Onipotente apenas pôde
Formar de dias seis no inteiro espaço,
Fora o tempo que dantes despendera
Na alta meditação deste desígnio,
Que parece ligar-se ao meu denodo
De libertar de inglório cativeiro
Quase a metade dos celestes coros
Só numa noite, e de deixar mui raro
De seus adoradores o concurso.
Ele, — ou por se vingar, ou porque à míngua
Nos exércitos seus cuidoso supra,
Ou porque o seu poder já gasto e idoso
Perdesse o tino de criar mais anjos
(Se eles contudo a criação lhe devem),
Ou para mais nos abater, — pôs fito
Em povoar os lugares que são nossos
Pela estirpe de nova criatura
Feita de terra e, de tão baixa escória,
Por ele alevantada, enriquecida
Co’os espólios do Céu que a nós pertence.
Pôs por obra o que havia projetado:
O homem formou; maravilhoso o Mundo
Para ele construiu, dando-lhe a terra
Para sua morada e seu domínio;
E sujeitou (que vil indignidade!)
Dele ao próprio serviço, à guarda dele,
Alados anjos, fúlgidos ministros.
Deles muito receio a vigilância:
Para iludi-la corro manso, obscuro,
Embuçado na névoa da alta noite,
E espreito por arbustos, por balseiras,
Onde esteja a serpente adormecida
Para dentro em seus círculos meter-me
222
A mim e os negros planos que me ocupam.
Que vergonhosa quebra! Eu, que n’outrora
Pugnei com deuses para ser mais que eles,
Apertado serei dentro de um bruto,
De um bruto coa substância hei de mesclar-me,
Tomar de um bruto carne, embrutecer-me!
Eu, alta essência que aspirava ufana
Ao mais subido grau da divindade!
Porém quanto a ambição, quanto a vingança,
Para seus fins obter, se não aviltam?
Quem pretende, há mister descer tão baixo
Quanto alto quer subir, e em tais manejos
Sempre às coisas mais vis se vê exposto.
É doce em seus princípios a vingança;
Em breve amarga contra si redunda:
Embora! não me importa; está previsto
Desde que de tão alto me atiraram.
Vou-me contra esse que depois do Eterno
Logo provoca minha inveja ardente, —
Dos Céus contra esse novo favorito,
O homem de barro, filho do despeito,
Que Deus ergueu do pó em nosso ultraje:
Muito bem pago fica ódio com ódio.”
223
Fazem subir do grande altar da Terra
Mudos louvores ao Autor de tudo
Que inspira com delícia o grato aroma, —
Quando do albergue sai o par humano,
E sua adoração vocal ajunta,
Das criaturas tácitas ao coro.
224
Dá-lhe dest’arte Adão meiga resposta:
“Minha querida, incomparável Eva,
Desta alma único amor e única sócia,
Que além de todos os viventes amo, —
Juízos bons empregas, bem cogitas
Sobre o modo melhor por que exerçamos
O trabalho que Deus aqui nos marca.
Esse desvelo teu muito te louvo:
Na mulher nada se acha mais amável
Que o estudo no doméstico regime
E as coisas boas a que induz o esposo.
Mas nosso Criador não nos detalha
Tarefa tão restrita que nos vede,
Quando precisos são, o ócio, o sustento,
As falas mútuas, alimento da alma,
A suave troca de gracejos, risos, —
Os risos, que à razão a origem devem,
Refusados por isso sendo aos brutos,
E de amor o incentivo em si nos formam, —
O amor, notável precisão da vida.
Para prazeres que à razão ligara,
Não para árduos afãs, nos fez o Eterno:
Sem dúvida ambos nós com zelo fácil
Impediremos que a bravias voltem
As ruas e avenidas necessárias
Para passearmos, té que nos ajudem
Mais jovens mãos que nos tardar não devem.
Mas se a conversação vês distrair-te,
Eu consentira numa ausência curta:
Bem acompanha a solidão às vezes;
Depois de curta ausência é doce a volta.
Contudo, noutra dúvida me entranho;
Temo-te dano se de mim te apartas:
Ouvimos ambos que maldoso o imigo,
Dos infortúnios seus desesperado,
A dita nos inveja e firme e astuto
Busca lançar-nos na desgraça e infâmia.
Perto ou junto de nós eu não duvido
Que atalaia com sôfrega esperança
A ver se encontra ensejo a seus desígnios:
Nossa separação lho põe mais apto:
Num, junto do outro mor barreira encontra
Porque com mútuo auxílio assim podemos
Ardis e assaltos repelir num lance.
225
Queira ele começar por que estraguemos
Nossa fidelidade a Deus devida;
Ou por introduzir feia desordem
No conjugal amor que mais o enraiva
Que as outras ditas todas que gozamos;
Seja isto ou pior, — não deixes, querida,
O lado fiel de que nascida foste:
Nele achas proteção, achas amparo.
Se à mulher tramas urde o p’rigo, a infâmia,
Mais salva e airosa está junto ao marido
Que a guarda, ou qualquer mal com ela sofre.”
226
Contra o tentado lança atroz desonra,
Porque fé corruptível lhe atribui
Que não está da tentação à prova;
Tu mesma, com furor, ódio e desprezo,
Te ressentiras da tramada injúria
Posto efeito não ter. Vês que não erro
Se de ti solitária quero a afronta
Apartar que a nós ambos o inimigo,
Posto que audaz, fazê-la não ousara;
Ou... se a fizesse, eu fora o alvo primeiro.
Suas malícias, seus ardis falsários
Não desprezes: sutil deve ser muito
Quem pôde seduzir no Céu os anjos.
Não são supérfluos os auxílios de outrem:
O impulso para todas as virtudes
Do influxo de teus olhos eu recebo:
Quando olho para ti, medrar me sinto
Em prudência, em valor, em vigilância,
E mesmo em forças se me são precisas:
Quando olhas para mim, no peito me arde
Com ascendente intensidade o pejo
De me ver enganado ou ser vencido.
E tu por que motivo não preferes
Sofrer a tentação sendo eu presente?
Por que a tua virtude em mim não busca
A testemunha que melhor lhe cabe
Para bem te apreciar essa vitória?”
227
E esse infame conceito enche-o de infâmia
Sem que desonra em nossa face imprima:
Por que evitá-lo então, por que temê-lo?
A má suspeita em si quem prova falsa,
O jus adquire a duplicadas honras;
Acha paz dentro em si; os Céus o prezam;
É testemunha de seus próprios louros.
Virtude, fé, amor, nunca tentados,
Nunca mantidos sem socorros de outrem,
Qual abonado crédito merecem?
De deixar imperfeita a nossa dita
Nosso Onisciente Autor não suspeitemos,
Supondo-a para um só menos segura
Do que é quando ele de outrem se acompanha.
Sendo assim, nossa dita fora frágil;
E o paraíso, a p’rigos tais exposto,
Não seria por certo o Paraíso”.
228
Assim, a tentação tu não procures:
Evitá-la é melhor: quase que é certo
Que dela escapas se te não ausentas:
Teremos provas destas, não buscadas.
Dizes querer provar tua constância;
Tua ingênua obediência antes me prova.
Reconhecer ou atestar quem sabe
Não tentada a constância (tu perguntas)?...
Pois, se crês que essa prova não buscada
Há de achar-nos nós ambos mais seguros
Estando cada qual ausente um do outro,
Vai: se aqui não estás porque bem queres,
És por mim reputada mais que ausente.
Vai coa inocência que trouxeste ao Mundo;
Tuas virtudes todas te auxiliem:
Fez seu dever para contigo o Eterno;
Para com ele o teu fazer te cumpre.”
229
Ou que trazidos pelos anjos foram.
230
As rosas, que em circuito se lhe apinham,
Da bela o meio corpo só descobrem,
E maior cor acendem-lhe nas faces
Co’o lúcido reflexo purpurino.
Endireita ela então meio curvada
Das flores as vergônteas dobradiças,
Cujas cabeças, que risonhas fulgem
Carmesins, cor de neve, azuis, cor de ouro,
Sem poderem suster-se, estão pendentes:
Erguidas ela airosamente as ata
Às ramagens do mirto, — e não se lembra
Que ela, sendo das flores a mais linda,
Ali se achava só, desamparada,
Do seu arrimo longe... e o raio perto!
231
De insólito prazer a alma lhe inundam, —
Se casualmente então por ali passa
Virgem formosa com andar de ninfa,
Ele, em quanto até’li cria agradável,
Mais encantos encontra em razão dela,
Mas de vê-la o prazer excede a tudo;
Tal de gosto exultou a serpe horrível
Observando este flórido terreno,
Tão ameno retiro, a amável Eva
Assim madrugadora, assim sozinha.
232
O esposo (eu vejo ao largo) está não perto,
Cuja mente mais alta e ânimo forte,
Férvida valentia e heróicos braços,
Importa-me tratar com mais cautela.
Inda que consta de terrena massa,
Vejo nele um terrível inimigo,
E invulnerável é... não eu! Quão baixo
Posto o Inferno me tem, quão fraco a pena,
À vista do que eu fui na empírea corte;
De celeste beleza adorna-se Eva,
É credora de amada ser por numes:
Terror não mete, posto que ele exista
No fino amor, na insigne formosura...
Salvo se os acomete ódio tão forte:
Mais forte ódio lhe tramo, pois que o cubro
De amor coas aparências bem fingidas.
Por este rumo vou para perdê-la.”
233
Que deu à luz Cipião, glória de Roma.
234
Venho sozinha sem que tenha susto
Da majestade que em teu gesto adoro,
E que por seu recato mais se aumenta.
De teu excelso Criador formoso
Tu és a mais formosa semelhança:
De ti se admiram os viventes todos,
Que todos tua possessão se ostentam
E adoram tua angélica beldade,
À qual se curvaria inteiro o Mundo
Se inteiro contemplá-la ele pudesse.
Porém aqui em tão agreste sítio,
Entre animais, espectadores rudes
Que nem metade vêem quanto és de linda,
Quem contemplar-te pode além de um homem?
E que é um homem só... para admirar-te...
Tu que entre deuses como Deusa deves
Adorada e servida ser por anjos
Em corte sem quantia, em pompa eterna?”
235
Quanto queres saber posso contar-te;
Tens à minha obediência um jus solene.
Eu tinha dantes, como os outros brutos
Que na relva casual andam pascendo,
Grosseira concepção e baixo instinto
Quais o alimento meu: — comida e sexo
Eis quanto eu via; de sublime, nada.
Té que uma vez, os prados percorrendo,
Avisto ao longe uma árvore formosa
De frutos carregada que alardeiam
De cor de ouro e de grã mistão insigne:
Para admirá-la aproximei-me dela;
Eis me punge o apetite um grato aroma
Que dos ramos frondíferos se exala,
Muito mais aprazível, mais mimoso,
Que o suave cheiro do mais doce funcho
Ou do leite que à tarde está manando
Dos úberes das cabras, das ovelhas,
Quando os esquecem os cabritos e anhos
Retouçando no campo distraídos.
Resolvo não tardar um só instante
Em saciar o desejo que me abrasa
De provar as maçãs que são tão lindas:
Com simultâneo esforço a fome e a sede,
Por tão mimoso aroma estimuladas,
Irresistível persuasão me induzem.
Eis no tronco me enrosco e vou subindo,
Que do chão alcançar só pode ao fruto
O teu talhe e o de Adão que altivos se erguem:
Todos os outros brutos em que atentas
Da árvore andam em roda, igual sentindo
Ardor para o gozar, mas não lhe alcançam.
Chegada a meio tronco, já mui perto
Os frutos pendem tentadores, tantos...
Eis apetite irresistível me urge...
Apanho, e deles como, ampla quantia,
Que tamanho prazer nunca eu gozara
No melhor alimento, em clara fonte.
Farta por fim, alteração estranha
Sinto em mim logo, e da razão o brilho
No entendimento meu sobe ao mor auge;
Vem pronto a fala, mas não mudo a forma.
Apliquei desde então a mente minha
Às especulações mais transcendentes:
236
E com ciência capaz, quanto é visível.
Quanto existe de bom, quanto há de belo
Na Terra contemplei, nos Céus, nos ares;
Mas quanto é bom e belo eu vejo unido
Em ti, de Deus imagem, que refulges
Imersa em luz de divinal beleza!
Da imensa Criação obra nenhuma
Pode a ti em beleza comparar-se:
Por isso hoje, talvez muito importuna,
Venho admirar-te e adoração fazer-te
Como à senhora que por jus domina
Os viventes do Mundo, o Mundo inteiro.”
237
Indica pressa de ultimar o dano:
A esperança do mal lhe entona o colo
E mais lhe brune a púrpura da crista.
238
E indignação porque injustiças lhe urdem,
Um novo ardil o tentador adota.
Como turbado e de paixões movido,
Com garbo sobre as roscas se balança:
E logo, endireitando altivo o colo,
Inculca ir encetar um grave assunto.
239
(Seja a morte o que for) não desanima
De ultimar o que pode pôr-te em gozo
De vida mais feliz onde conheças
O bem e o mal (o bem, para segui-lo;
O mal, a ele existir, para evitá-lo)?
Ser justo Deus e castigar-te disto
Não pode; e não é Deus não sendo justo:
Obediência e temor nem se lhe devem.
Atenta que não passa de um fantasma
Esse medo da morte que te incutem.
E tal proibição que fim conhece?
Que fim, senão em sujeição manter-te,
Ou constituir-te coa maior infâmia
Ignaro adorador de seus caprichos?!
Ele bem sabe que, no dia ovante
Em que dos frutos ambrosiais comeres,
Teus belos olhos, que tão claros julgas
Mas que inda tolda escurecida névoa,
Com luz brilhante se abrirão de todo:
Ficarás desde então igual dos numes;
O bem e o mal conhecerás como eles.
Que tu aleançarás de Nume a essência,
Como eu a essência interna obtive de homem.
De proporção exata se conclui:
Minha alma de brutal passou a humana,
De humana a tua ficará divina.
Tua morte talvez seja o trocares
Pela essência divina a humana essência:
Então já vês a morte apetecível
Não obstante com ela te ameaçarem,
Porque em melhor estado te apresenta.
E os deuses o que são, para que os homens
Sejam privados de gozar como eles
A quota parte do manjar divino?
De existência anterior gabam-se os deuses,
E assim avançam que vem deles tudo:
Nossa credulidade abona este erro.
Mas... por que desta mui formosa terra,
Do Sol pelos fulgores aquecida,
Vejo tudo nascer, e deles nada?
Se eles fizeram tudo, se esconderam,
Nesta árvore, do bem e mal a ciência,
Por que dela qualquer, sem que eles lho obstem,
Come e a sapiência de repente alcança?
240
E que ofensa fará contra eles o homem
Que deste modo a ciência obter procura?
Que mal fazer-lhes tua ciência pode,
Que pode transmitir este almo fruto
Deles contra o querer, se tudo é deles?
Mas será isto inveja? E como é crível
Que em peitos celestiais a inveja more?
Estas e outras razões, tão várias, tantas,
Mostram que muito te convém tal fruto:
Colhe-o, dele te farta, ó Deusa humana.”
241
Porque dela se infere o bem sublime
Que tu transmites, que possuir devemos.
Não serve para nada um bem oculto;
Se existe assim, é nula essa existência.
Quem conhecer o bem ousa vedar-nos,
O bem e a ciência veda-nos de um golpe:
Cruéis, atrozes leis ninguém obrigam.
E se nós somos súditos da morte...
Façamos bem ou mal, vem ela sempre.
No dia em que esse fruto nós provarmos,
Alta sentença à morte nos destina:
E morreu porventura a audaz serpente?
Ela o fruto comeu... e vive... e fala,
Julga, tira ilações, pensa, calcula,
Se muda e irracional em tempos de antes.
Somente para nós foi feita a morte?
A intelectual comida a nós se nega
Quando tão livre se concede aos brutos?
Decerto aos brutos... — e o primeiro deles
Que a provou, de tal bem não é avaro;
Antes alegre e generoso o inculca,
Isento de traições, estranho a fraudes,
Conselheiro insuspeito, amigo do homem.
Que temo eu pois? Ou, por melhor dizer-me,
Como sei eu o que temer me incumbe,
Se ignoro o bem e o mal, se não entendo
Nem lei, nem punição, nem Deus, nem morte?!
O remédio, que os danos todos cura,
Encontro neste fruto tão divino,
De lindo aspecto, de atraente aroma,
E de virtudes que a sapiência outorgam.
Colhê-lo, e por igual a mente e o corpo
Com ele alimentar, quem me proíbe?”
242
Nas brenhas se sumiu a infanda cobra
Sem que Eva a pressentisse, que do fruto
Só no sabor de todo se enlevava.
243
Talvez seus vigilantes atalaias
Todos agora os tem do trono em roda.
Porém... a Adão como hei de apresentar-me?
Far-lhe-ei minha mudança conhecer,
Dar-lhe-ei a partilhar minha alta dita;
Ou não será melhor guardar da ciência
Em mim todo o poder sem partilhá-lo?
Juntara assim ao feminino sexo
Atrativos de amor sempre invencíveis:
Do masculino sexo igual ficara,
E talvez (o que certo me lisonja)
Fora-lhe superior de quando em quando!...
Quem, de inferior no grau, pode ser livre?
Tudo isto pode ser: porém... que fora
Se Deus me houvesse visto e viesse a morte?
Desde então nunca mais eu existira, —
E Adão, devendo ser de outra Eva esposo,
Com ela viveria alegre... e eu morta!...
Morte é pensá-lo! Firmemente quero
Feliz ou desgraçado Adão comigo:
Tão terno e tão ardente amor lhe voto
Que as mortes todas suportara co’ele;
Viver sem ele não reputo vida.”
244
Que ela pela manhã seguido havia:
Era o caminho da Árvore da Ciência,
Da qual Eva se aparta... e Adão que chega.
245
Para ti mais busquei tais privilégios;
Dispensá-los sem ti bem poderia:
Tenho por dita a dita em que tens parte;
Ódio e tédio me faz se a não partilhas.
Come também: no amor como iguais somos,
Nos dotes, na alta dita iguais fiquemos:
E bem pondera que, se tu não comes,
Diversa jerarquia nos desune;
E, quando mesmo renunciar eu queira
Ao grau de nume porque muito te amo,
Talvez já seja tarde e o fado mo obste.”
246
Certo, viver sem ti... eu... como posso?
Como deixar-me do prazer de ouvir-te,
E do tão terno amor que nos enlaça,
Para outra vez peregrinar sozinho
Por estes broncos e perdidos bosques?!
Se Deus quisesse produzir outra Eva
De outra costela minha, nem dest’arte
Deixara tua perda um só instante
De lacerar-me o coração saudoso.
Não! não! Sentindo estou que por mim puxam
Da Natureza os vínculos sagrados:
Carne e osso és tu da carne e ossos que tenho;
Fugir do teu destino o meu não pode;
Um só bem, um só mal, será o de ambos.”
247
Julgo que Deus, o Criador previsto,
Não quer de coração, posto que ameace,
Aniquilar em nós sua obra-prima
Que, levantada a perfeição tão nobre,
As outras obras suas muito excede, —
As quais (como ele as fez para uso nosso,
Dependentes assim de nós ficando)
Também, na queda nossa arrebatadas,
Precisamente morrerão conosco.
Deus, deste modo, dando-se por fútil,
Fizera, desfizera, aniquilara,
Com ilusões perdera tempo e lida:
Compatível com Deus não é tal porte.
Mesmo a poder criar de novo tudo,
Ânimo não tivera de estragar-nos
Por não dar azo a que dissesse ovante
O adversário infernal: — “Precária sorte
“Dos que esse Deus com mais favor protege!
“E quem por muito tempo conseguira
“Cair-lhe em graça? Desgraçou tirano
“A mim primeiro, a humanidade agora:
“A flux da perdição quem vai seguir?”
Não armará decerto o seu contrário
Com tão forte razão de tê-lo em pouco.
Porém... seja o que for! hei de contigo
Sofrer a mesma sorte, a mesma pena:
Se me é dado sofrer contigo a morte,
A morte para mim é como a vida.
Dentro em meu coração sinto com força
A vívida atração da Natureza
Para meu próprio bem que em ti reside,
Para ti que esse bem me constituis:
Não pode separar-se a sorte de ambos,
Ambos possuímos nós uma só carne;
Se te perdesse a ti... era eu perder-me!”
248
Que de um só coração, de uma só alma,
Por certo somos animados ambos.
Do que avanças faz prova o dia de hoje:
Antes a morte preferir declaras,
Ou tudo que em horror a morte exceda,
A separar-te da querida esposa:
Expões-te, preso por amor tão caro,
A tomar sobre ti a pena, o crime
(Se algum houvesse) de comer o pomo
Que tão grato é de ver, cuja virtude
(Pois que sempre do bem o bem emana,
Quer seja ocasional, seja direto)
Produz de teu amor esta alta prova,
O qual de outra maneira não pudera
Com tão grande esplendor fazer-se visto.
Se eu pensasse que a morte que se ameaça
Havia de seguir-se ao meu tentâmen,
Só eu da pena o mal sustera todo
E não te persuadira a partilhá-lo:
Antes só eu morrer do que induzir-te
A fato pernicioso ao teu sossego,
Mormente estando eu certa, inda que tarde,
De tua fé e amor que iguais não contam!
Mas no futuro eu vejo outros sucessos:
Não morte, porém vida em grau mais alto.
Novos prazeres, novas esperanças,
Claros os olhos, paladar tão grato...
Que tudo, quanto saboreara dantes,
Insípido ou amargo lhe pareça.
Adão, descansa na experiência minha:
Dos lindos frutos livremente come.
E esse medo da morte entrega aos ventos.”
249
Sabendo bem o que fazia, come
Não enganado mas... louco e vencido
Pelo poder dos feminis encantos.
250
Mas, fartos de manjar tão fresco e doce,
Vamos gozar um do outro: é justo, ó cara.
Desde esse dia em que te vi primeiro
Das mais sublimes perfeições ornada
E em que me concedeste a mão de esposa,
Nunca a tua beleza, como agora,
Conseguiu inflamar os meus sentidos
Com tal ardor de te gozar, ó bela.
Agora mais formosa estás que nunca:
Efeitos são desta árvore sagrada.”
251
O mal lhes ocultara, — havia-se ido,
E co’ela a retidão, a fé, a honra,
Deixando-os de vergonha só cobertos,
Cujo manto mais nus inda os mostrava.
(Sansão terrível, o Hércules danita,
Assim se levantou do leito impuro
Da filistéia Dalila, acordando,
Tonsa a coma, quebrada a valentia).
252
Com vossas densas ramas escondei-me:
Não ouso ver jamais nem Deus, nem anjos!
Nesta árdua posição imaginemos
O que encobrir-nos melhor possa agora
Quanto a vergonha recatar nos manda:
Busquemos alguma árvore que tenha
Largas e brandas folhas que à cintura,
Cosidas juntas, a ocultar nos sirvam:
Não deixemos que o pejo nos consuma,
Nem também que nos tache de impudentes.”
253
Adão e Eva, pensando que dest’arte
Sua vergonha de algum modo ocultam,
Já não em paz ditosa, já não livres,
Assentam-se no chão e aflitos choram:
Mas inda o pior não é o acerbo pranto
Que chove de seus olhos em torrentes;
Mais dolorosas ânsias lhe fulminam
A cólera, o rancor, suspeitas, ódios,
Raivas, discórdias, hórridas tormentas
Que furibundas se lhes lançam na alma, —
Região, que antes possuía a paz celeste,
Mas agitada e turbulenta agora!
Seu juízo não regula, nem o atende
A vontade, que toda presa se acha
Do sensual apetite, baixo, imundo,
O qual agora da razão sob’rana
Insta por usurpar o sumo império.
254
Se me eu não fosse, ou mesmo a ti somente?
Aqui ou lá se a tentação tu visses,
Não discerniras fraude na serpente
Ouvindo-a discorrer como discorre.
Fundamento nenhum de inimizade
Podia entre ela e nós haver-se visto:
Logo, por que motivo ela buscara
Ocasiões de fazer-me ofensa ou dano?
De teu lado sair nunca eu devera?
Não mais fora isso do que eu ser como antes
Costela tua sem vontade própria!
E tu, de chefe meu na qualidade,
Por que com mando de absoluto efeito
Não me ordenaste que dali não fosse...
Sabendo tu que iria expor-me a danos?!
Em tua oposição tu fraquejaste,
E nímio fácil afinal me deste
Licença, aprovação, com rosto afável:
Se nessa oposição tu mantivesses
Caráter firme, decisão constante, —
Nem eu, nem tu, teríamos pecado!”
255
Me parecia tão perfeito a ponto
De crer que ao mal inacessível eras!
Mas pesa-me desse erro, hoje, tornado
Em crime atroz... E tu dele me acusas!...
Ver-se-á acontecer o mesmo sempre
Ao que, no tino da mulher confiando,
Deixe prevalecê-la em seu capricho.
Do esposo repressões ela rejeita:
E, se ele a deixa coa vontade livre
E de tal indulgência o mal resulta,
Ela, a primeira, a frouxidão lhe increpa!”
LIVRO X
Conhecida a transgressão do homem, os anjos abandonam o Paraíso e voltam
para o Céu provar a vigilância com que se comportaram. — Deus aprova-lhes o
comportamento e declara que a entrada de Satã ali não podia ser obstada por
eles. Manda seu Filho julgar os transgressores, o qual desce e profere a justa
sentença; depois veste-os a ambos e torna para o Céu. — O Pecado e a Morte,
sentando-se até então às portas do Inferno, pressentiram, por simpatia
maravilhosa, o sucesso de Satã neste novo Mundo e a culpa cometida pelo
homem: resolvem não mais estar confinados no Inferno, e propõem-se a seguir
seu pai Satã à morada onde o homem residia. Para mais facilmente passarem do
Inferno para o Mundo e deste para aquele, formam eles uma alta calçada ou
ponte suspensa sobre o Caos na direção que Satã havia levado: quando se
preparavam a passar ao Mundo, encontram Satã que, altivo pelo êxito de sua
empresa, voltava para o Inferno. Congratulam-se entre si. Chega Satã a
Pandemônio e em plena assembléia relata com ufania as suas vantagens contra
o homem: em lugar de aplauso, é hospedado com um assobio geral de toda
essa assembléia transformada repentinamente com ele em serpentes segundo a
sentença dada no Paraíso. Então, iludidos com árvores que, semelhantes à
proibida, ali se levantaram diante deles, sofregamente se lançam ao fruto e
tragam terra e asquerosas cinzas. Procedimentos do Pecado e da Morte. —
Deus profetiza a final vitória de seu Filho contra eles, e a renovação de todas as
coisas: mas no entanto manda pelos anjos fazer diferentes alterações nos Céus
e nos elementos. — Adão, percebendo cada vez mais sua decaída condição,
256
aflitivamente se lamenta: rejeita as consolações dadas por Eva: ela persiste e
por fim aplaca-o. Eva, para livrar da maldição a sua descendência, propõe a
Adão meios violentos que ele não aprova; mas, concebendo ele melhores
esperanças, recorda-lhe a última promessa feita a ambos de que sua prole se
vingaria da serpente, e exorta-a para que ambos eles busquem, por meio do
arrependimento e de súplicas, reconciliar-se com a Divindade ofendida.
257
E quer por miúdo ouvir o acerbo fato.
258
Que a ser Homem como ele te destinas),
Quero, em obséquio a ti, por ter dó dele,
À justiça juntar misericórdia.”
259
Para aos numes regrar a ligeireza.
260
Apertado dest’arte, Adão responde:
“Céus! em que aperto aterrador me imerge
Defronte do meu juiz o dia de hoje!
Ou hei de eu só da culpa o inteiro peso
Carregar sobre mim, — ou hei de a culpa
Também fazer pesar sobre outro eu mesmo,
Que vive desta vida de que eu vivo
E cuja falta, enquanto na pureza
Tão caro objeto para mim brilhasse,
Eu ocultar devia, não o expondo
Por queixas minhas a censura austera.
Mas agra força, precisão invicta,
Me levam violentado, porque temo
Sobre minha cabeça despedidas
Culpa e pena, cada uma em peso toda,
Cada uma de per si insuportável.
E... inda eu guardando pertinaz segredo,
Tu podes descobrir quanto eu oculte.
Esta mulher que para meu auxílio
Fizeste, — e, como dádiva perfeita,
Ma concedeste tão formosa e boa,
Tão amável, tão própria, tão divina,
De cuja mão nem mesmo eu suspeitava
O mal mais leve, e cujas obras todas
(Fossem em si quais fossem) eu supunha
Justificadas porque dela vinham, —
Esta mulher os proibidos frutos
Trouxe e deu-mos; comi também eu deles.”
261
Mas incapazes de per si regerem:
Esta prerrogativa é própria tua,
E muito bem por experiência o sabes.”
262
Satã, príncipe do ar, cair do Empíreo,
Se ergueu da sepultura e, despojando
Os principados e poderes do Orco,
Subindo aos Céus em ascensão brilhante,
Levando pelos ares espaçosos
Cativo o cativeiro e o próprio império
Que arrebatado por Satã lhe fora,
Em plena pompa triunfou ilustre:
Ele, que assim lhe vaticina o estrago,
Há de em prazo oportuno permitir-nos
Que sob os nossos pés o conculquemos.
263
Os pés dos servos seus, passadas eras):
Qual o pai de famílias, veste agora
A nudez deles de animais coas peles
Ou que morreram, ou que inteiras largam
Reparando-as com outras (como a cobra).
Nem precisou pensar por largo tempo
Como a nudez cobrir de seus contrários.
Não só por fora os veste; igual lhes cobre
A nudez interior mais torpe ainda,
Seu manto de justiça lhe lançando
Com que a subtrai aos olhos de seu Pai.
264
Seja o que for que dentro em mim resida,
Ou simpatia, ou forte e ínsito impulso
Para a distâncias grandes se juntarem
Coisas iguais em amizade oculta
Por caminhos de todo impenetráveis, —
Parece-me que sinto em mim erguer-se
Mais ampla força, que me crescem asas,
Que deste abismo além se me faculta
Domínio encantador, imensurável.
Tu, minha sombra, a mim chegada sempre,
Deves comigo vir: nada há que alcance
Que do Pecado se desuna a Morte.
Porém primeiro, — a fim que algum obstác’lo
Do nosso pai a volta não demore
Por esse Abismo intransitável, ínvio, —
Tentemos obra de arrojada empresa
Mas para nossas forças mui possível:
Fundemos nesse oceano turbulento,
Que desde o Orco se alonga até ao Mundo
Onde agora Satã prospera ovante,
Uma passagem, monumento altivo
Que as hostes infernais terão em muito.
Para ida e volta ou transmigrarem, como
Lhes der o fado seu. Tão atraída
Por este novo instinto e forte impulso,
O rumo verdadeiro errar não posso.”
265
Para crua peleja, voa em rumo
Do cheiro que até ’li chega exalado
Pelos corpos que à morte se destinam
Em crástina batalha sanguinosa, —
Assim farisca o tétrico fantasma,
Para os ares escuros levantando
As cavernosas, dilatadas ventas,
E da presa longínqua o cheiro colhe.
266
Até deste orbe ao muro inabalável,
Hoje indefenso, possessão da morte, —
Passagem sendo assim cômoda e fácil
Entre o mísero Mundo e o negro Inferno.
(Por este modo, se às pequenas coisas
Podem as grandes coisas comparar-se,
Veio Xerxes, magnífico deixando
Seu Menônio palácio na alta Susa,
A subjugar da Grécia a liberdade:
Para esse fim sobre o Helesponto lança
Uma atrevida ponte com que junta
Da Europa e da Ásia as praias desunidas,
E com golpes quantiosos de vergastas
Soberbo açoita as indignadas ondas).
267
Assim que feito cobra Eva enganara,
Tinha-se ele sumido imperceptível
Mui dentro pelo bosque; mas de pronto
Muda de forma e espreita o resultado.
Viu que Eva, não pesando o negro crime,
Fez repeti-lo pelo cego esposo;
Viu coradas de pejo as faces de ambos
Quando vãs coberturas procuravam:
Porém, assim que viu descer do Empíreo
O Nume-Filho a sentenciar tais culpas,
Fugiu amedrontado, — não que espere
Escapar-lhe à vingança merecida!
Mas... eximir-se quer, no atual relance,
Do estrago com que a cólera divina
Podia em súbita explosão prostrá-lo.
Passado risco tal, volta de noite;
E, do par infeliz ouvindo as queixas,
As aflições e angústias, delas colhe
Que ele próprio também foi condenado, —
Mas que a sentença para já não era,
Devendo em prazo póstero cumprir-se.
268
Em doce intimidade unidos ambos)
Que tu na terra prosperado havias,
O que também ora teus olhos mostram;
Não tardei em sentir, posto afastada
Estar de ti por multidão de mundos,
Que em companhia de teu filho heróico
Me cumpria seguir teus nobres passos, —
Tanto é o enlace que a nós três nos liga!
Não pôde mais o Inferno em si conter-nos,
Nem este mar obscuro, intransitável,
Pôde impedir-nos de vir ter contigo.
Tu completaste a liberdade nossa,
Confinada até ’qui do Inferno aos muros:
Tu nos deste o poder de até tão longe
Nossos redutos avançar, lançando,
Com esta portentosa, imensa ponte,
Pesado jugo ao turbulento Abismo.
Já todo o mundo é teu; tua virtude
Obras ganhou por tua mão não feitas:
Tua sabedoria mais obteve
Do que perdemos por infausta guerra,
E completa dos Céus tirou vingança.
Se reinar neles te não for possível,
Nestes teus Mundos reinarás ovante.
Deixa que o Vencedor os Céus governe
Como o jus lho franqueia das batalhas:
Destes recentes orbes mui distante,
Que a si aliena por sentença própria,
Daqui em diante partirá contigo
Quanto aquém fique dos confins celestes;
O Céu quadrangular tenha ele em posse,
Seja o globoso Mundo o teu império;
Ou então que se atreva a provocar-te
Agora que a seu trono és mais temível!”
269
Vosso triunfo eterno ao meu triunfo:
Do Orco e Mundo um só reino assim fizestes,
Um reino, um continente sempre unido
Em mútuo trato, em harmonia mútua.
Enquanto eu desço penetrando as trevas,
Mui facilmente pela vossa estrada,
Para ir aos sócios meus dar de mim conta
Informando-os de quanto no orbe hei feito,
E de tal feito co’eles aplaudir-me, —
Por este rumo, entre orbes cintilantes,
Tantos e vossos todos, discorrendo,
Lá do Éden ao jardim descei vós ambos:
Neles morai, reinai em plena dita;
Francos dali regei a terra e os ares,
Mormente esse homem, possuidor de tudo:
Desde logo o fazei vosso cativo
Em firmes ferros e por fim matai-o.
Meus substitutos com poderes plenos
Eu vos nomeio, e vos envio ao Mundo;
Exercei um poder incomparável
Que de mim tão somente se deriva.
Do vigor de ambos vós depende agora
A minha posse destes novos reinos
Que o vencedor Pecado entrega à morte,
Pelas minhas façanhas conduzido.
Se vosso unido esforço prevalece,
Estão seguros os negócios do Orco:
Ousados ide, e de valor armai-vos.”
270
Espaçosas, abertas, não guardadas,
E acha tudo ermo ali: — as guardas delas,
Deixando o posto, ao Mundo etéreo voaram;
E quanto havia das legiões do Inferno,
Para o interior se retirando, acampa
Em torno do soberbo Pandemônio,
Cidade e corte do infernal tirano,
Que Lúcifer chamado foi outrora
Por se lhe assemelhar da tarde a estrela.
271
Majestosos e fúlgidos se ostentam,
Parelhos às estrelas mais brilhantes
(Porém são falsos esse brilho e glória;
Só para certos fins se lhe toleram
Depois do crime seu). Todo abismado
À vista de fulgor tão repentino,
O exército infernal observa atento
E reconhece o regressado chefe,
Por cuja volta ansioso suspirava.
272
Que, em extremo zelando os seus segredos,
Feroz se opôs com clamoroso estrondo
À minha estranha viagem, protestando
Contra essa violação perante o fado.
Por fim dei vista do recente Mundo
Que anciã fama nos Céus preconizara,
Maravilhosa fábrica perfeita
Onde o homem, por suprir-se a nossa falta,
Criado foi e colocado logo
Num Paraíso de delícias cheio.
Com meus enganos seduzi-lo pude,
Afastando-o de Deus que o ser lhe dera;
E o que mais tem de admiração causar-vos.
É ser tal sedução... feita co’um pomo!
Por este fato Deus todo ofendido
(O que do riso vosso é digno e muito)
O par humano, que prezara tanto,
Pôs, com esse orbe de que os fez senhores,
Sob o domínio do Pecado e Morte,
Como amplo espólio seu: daqui bem vedes
Que sem perigo, sem trabalho ou susto,
Possuímos já esse orbe onde habitemos;
Possuímos o homem, nele dominamos
E em tudo o mais que por senhor o tinha.
É certo que eu também fui condenado,
Ou antes (que não eu) a bruta cobra,
De cujo corpo me vestindo astuto
Pude ultimar a rebeldia do homem:
Minha sentença impõe-me a inimizade
Que haverá entre mim e os homens; devo
Morder o calcanhar da prole sua, —
E esta, sem que inda se prefixe o prazo,
Há de vir a pisar minha cabeça.
Mas quem não quererá comprar um Mundo
Por uma simples pisadura, ou mesmo
Por outras penas... inda sendo atrozes?
Eis breve narração da empresa minha:
Que resta mais agora a vós, ó Numes,
Senão irdes entrar em plena dita?”
273
Um silvo universal de imensas línguas,
Horrível som de público desprezo.
274
O resto estava lá dos que do Empíreo
Pela atroz sedição expulsos foram,
E esperam insofridos ver quanto antes
Em triunfo aparecer seu chefe augusto.
Viram (mas não decerto o que esperavam)
Cópia sem conto de disformes serpes:
Então, de horror simpático tomados,
Sentem em si o que estão vendo aos outros;
Caem seus braços e broquéis e lanças,
Caem mesmo eles igualmente logo
E em serpes semelhantes se transmutam,
Os formidáveis silvos renovando:
Dest’arte, como por contágio, adquirem
Igual figura, igual enormidade,
Sendo no crime iguais e iguais na pena.
Assim o aplauso, que elevar queriam,
Mudado foi em silvos de desprezo,
Triunfo, que só pregoa alta vergonha
E suas próprias bocas lhes ministram.
275
Semelhante aos que pendem enganosos
Junto ao funéreo lago de betume
Onde flamas Sodoma consumiram:
Mas este é mais falaz, que engana o gosto.
276
De ali manter perpétuo domicílio:
Logo atrás mui chegado o Monstro-Morte
Passo a passo a acompanha, e vem pedestre
Que o pálido frisão inda não monta.
277
O Onipotente então, lá dentre os santos,
Assentado em seu trono sublimado,
Vê os dois monstros. E dest’arte disse
Àquelas jerarquias fulgurantes:
278
Retos teus mandos são, teus meios justos.
Quem pode enfraquecer-te, ó Deus imenso?!”
Depois cantam o Filho que se vota
A restaurar a triste humanidade, —
Ele, por quem nos séculos futuros
Hão de elevar-se novos Céus e Terra,
Ou dos Céus descerão. Assim cantaram
Enquanto o Eterno, por seus próprios nomes,
Chama valentes anjos e os incumbe
De vários cargos, que melhor adapta
Às circunstâncias dos atuais sucessos.
279
Do Equador muito além, subindo a Câncer
Pelo Touro, e de Atlante as filhas sete,
E pelos Gêmeos de que Esparta se honra,
A Capricórnio então logo descendo
Pelo Leão, pela Virgem e as Balanças, —
Tudo para alternar em cada clima
As estações que em círculo se mudam.
Se assim não fosse, no Orbe houvera sempre
Risonha primavera e lindas flores;
Sempre seria igual à noite o dia,
Exceto além dos círculos polares
Onde fulgira então dia perpétuo,
Pois que o Sol, sempre baixo, compensara
Essa distância com fulgor perene,
Girando à vista em roda do horizonte
Sem demonstrar em si oriente e ocaso,
Destarte híspidas nuvens impedindo
No frio Estotilande e além do estreito
Que pôs patente Magalhães afoito.
280
De negra catadura que inda afeiam
De Serra-Leoa as trovejantes nuvens.
Cortando estes e vindo tão ferozes,
Do levante e poente se arremessam
Euro e Zéfiro: deles logo ao lado
Voa Siroco, atira-se Libéquio.
281
Tão deliciosamente eras ouvida...
Agora ouvir-te é morte! O que me cumpre
Fazer que à larga cresça e multiplique?
Só maldições que sobre mim recaiam.
No imenso espaço dos futuros tempos
Quem, vítima do mal por mim causado,
Não me há de amaldiçoar? Sim, dirão todos:
— “Nosso primeiro pai maldito seja:
“Gratos somos-te assim, Adão impuro.”
Eis quanta execração se me destina.
Desta maneira, além das que em mim próprias
Moram execrações, a mim regressam
Em refluxo feroz quantas produzo;
Em mim, seu centro natural, recaem,
Mesmo nesse seu centro horríveis pesam.
Oh! passageiras alegrias do Éden
Compradas por desgraças tão duráveis!
Deus Criador, pedi-te porventura
Que do meu barro me fizesses homem?
Pedi-te que das trevas me tirasses,
Ou me pusesses em jardim tão belo?
Como não concorreu minha vontade
De modo algum para a existência minha,
De mais razão, de mais justiça fora
Que em meu antigo pó me convertesses...
Eu, que desejo resignar de todo
Quanto me hás dado, porque sou inábil
Para a tão árduas condições cingir-me,
Pelas quais obrigado eu conservava
Um bem que nunca procurado havia.
A tanta perda, que por si já era
Bastante punição, por que juntaste
O sentimento de desgraça infinda?...
Mostras tua justiça inexplicável.
Mas, em verdade, já passou o tempo
Destas contestações aproveitares;
Quando foram tais cláusulas aceitas,
Então é que devias recusá-las.
Queres de um bem colher o inteiro gozo
E ao mesmo tempo as condições baldar-lhe?
Deus fez-te, é certo, sem licença tua;
Mas que disseras... se teu próprio filho
Desobediente se tornasse a ponto
De retrucar assim a teu reproche:
282
— “Por que motivo, ó pai, tu me geraste,
“A mim que a geração te não pedia?” — ?!
Admitirias tu a audaz desculpa
Que só levava o fito de ultrajar-te?
Contudo atende, que a existência sua
Ao propósito teu ele não deve,
Mas sim à natural necessidade, —
Quando te fez Deus por querer fazer-te,
Para o servires a seu próprio gosto.
Assim bem vês que a recompensa tua
Só te pode provir da sua graça,
E que o castigo teu cumpre que seja
Como o determinar sua vontade.
Seja assim: a seu mando me submeto;
Sou pó e regressar ao pó me incumbe.
Hora da morte, tu serás bem-vinda!
Por que de Deus a mão tanto retarda
O que o decreto seu para hoje fixa?
Por que a sobreviver sou eu forçado?
Por que com tal rigor me ilude a morte?
Por que me guardam para pena eterna?
Como me encontrarei alegre, ovante
Da vida no final, sentença minha,
Não sendo mais do que insensível terra!
Com que prazer me deitarei pra baixo,
Como de minha mãe no amável grêmio!
Ali descansarei em paz dormindo:
De Deus nunca jamais a voz tremenda
Aos meus ouvidos troará: tão pouco,
Para mim, para a minha inteira prole,
De piores males me roerá o susto,
Horrível com horríveis esperanças.
Contudo, inda uma dúvida me vexa:
Talvez não morra eu todo, e que da vida
O puro sopro, do homem a alma imensa
Que o Eterno lhe inspirou, morrer não possa
Com esta terra de que o corpo é feito.
Quem sabe então se no ermo do sepulcro,
Ou noutro sítio de terror, eu deva
Morrer de morte cruel que sempre viva?
Terrível pensamento, se é verdade!
Porém... Por que o será? Foi certamente,
Quem na culpa caiu, da vida o sopro:
Quem pois há de morrer... senão quem teve
283
Da vida o gozo e perpetrou a culpa?
Nem viveu, nem pecou o térreo corpo.
Logo de uma só vez, morre em mim tudo:
Tal juízo minhas dúvidas aplaque,
Já que não pode a inteligência humana
Destes términos curtos alongar-se.
Mais: — de tudo o Senhor sendo infinito,
Seu furor o será? Talvez que seja...
Mas o homem não, que à morte é condenado.
Deus como pode seu furor infindo
Exercer no homem que tem fim coa morte?
Poderá fazer ele a morte eterna?
Fora isto assim contradição estranha,
E para o mesmo Deus fato impossível, —
Também sendo argumento incontestável
De poderio não, mas de fraqueza.
De cólera pungido há de ele acaso
Infinito fazer o homem finito
Para o punir, satisfazendo nele
O seu furor que satisfeito é nunca?
Sua sentença assim se prolongara
Além do pó e leis da Natureza,
Pelas quais sempre as coisas todas obram
Umas sobre outras, não segundo é grande
A extensão que pertence à sua esfera,
Mas segundo entre si elas dirigem
Os atos materiais por que se tocam.
E... se a morte não é (como eu supunha)
Golpe fatal que as sensações extingue,
Mas sim miséria que não mais acaba,
(Qual eu em mim e de mim fora observo)
Da hora em que principia continuando
Por toda a eternidade imensurável?...
Ai de mim! tal terror se avança horrível;
Já ouço que troveja furibundo
Sobre minha cabeça indefensável.
Imortais ambos somos, eu e a morte;
Um corpo só também fazemos ambos:
Nela tem parte, porque em mim reside,
Minha progênie toda amaldiçoada.
Que patrimônio tão formoso, ó filhos,
Recebereis de mim! Oh, se eu pudesse,
Sem dar-vos nada, em mim destruí-lo todo,
Abendiçoar-me havíeis deserdados,
284
Vós que me haveis de amaldiçoar herdeiros.
Que dor! De um homem só como há de a culpa
Fazer culpada a humanidade toda
Sem perpetrá-la, assim sendo inocente?...
Mas... que inocência? Porventura pode
Ente sair de mim sem ser corrupto,
Depravado no juízo e na vontade, —
Não só fazendo, mas também querendo
Os males todos, quais eu quero e faço?
Como, assim sendo, poderão meus filhos
Ser, à vista de Deus, quites e puros?
Depois de tantas discussões prolixas,
Sou a dar-lhe razão por fim forçado:
Vãos raciocínios... evasões inúteis...
Tortuosos pensamentos... eis me lançam
Em minha convicção irrecusável.
Primeiro e último sendo em tanto crime,
Em mim, somente em mim, que sou decerto
A única fonte de quanto há corrupto,
Todo o castigo recair devera,
Todo o furor, e mais ninguém senti-los.
Indiscreto desejo! E tu ousaras
Sofrer tal peso que excedera o do Orbe
E mesmo o do Universo, inda podendo
Com mulher tão perversa reparti-lo?
Assim, quanto desejas, quanto temes,
Todo o refúgio por igual te corta,
E muito mais te indica miserável
Do que quantos exemplos têm de ouvir-se,
Com Satã só guardando semelhança
No crime atroz, na rígida sentença.
Ó consciência! Em que abismo de terrores
Me tens lançado? Para fora dele
Nenhum caminho encontro, e nele giro
De golfo em golfo, cada vez mais fundo.”
285
Na terra fria: ali entre ais a miúdo
A sua criação amaldiçoa,
E a miúdo a morte de tardia acusa
Porque não vinha já, sendo prescrita
Para o dia da ofensa perpetrada.
286
Inda que fosse pelo atroz demônio;
Cegava-te a vanglória de enganá-lo:
Mas assim que encontraste a cobra astuta,
Dela foste enganada, escarnecida...
E eu de ti logo o fui em digno prêmio
De fiar-me em ti porque de mim saíras.
Sensata te julguei, prudente e forte,
À prova dos embustes, dos assaltos;
E não vi que aparência em ti é tudo,
Que em ti virtude sólida é um sonho, —
Que não és mais que uma costela torta,
Sempre inclinada (como agora observo)
Para o sinistro lado onde eu a tinha,
Tendo sido melhor lançá-la fora
Sobrando das que são em mim precisas.
Oh! Por que Deus, o Criador sapiente,
De espíritos varões o Céu povoando,
Criou no Orbe por fim este ente novo,
Da Natureza encantador defeito, —
E não encheu por uma vez o globo
De homens sem fêmeas (como antes fizera
Nos Céus co’os anjos) ou por outro modo
Não perpetuou dos homens a progênie?
Se isto assim fosse, não teria havido,
Nem haveria no Orbe este e outros males,
Inumeráveis turbulências, filhas
Dos artifícios feminis, do afeto
Que ao sexo em demasia se consagra.
E sendo assim... ou nunca o homem alcança
Conveniente mulher, mas qual lha mostra
Torvo infortúnio, malfadado engano...
Ou raras vezes a que mais estima
Lhe é dado conseguir por ser ingrata,
Vindo a gozá-la quem é menos que ele...
Ou sendo dela amado, os pais lha negam...
Ou, se alguma obtiver dele condigna.
Mui tarde a encontra achando-se ligado
A consorte inimiga, despiedosa
Que ou de vergonha ou de rancor lhe serve!
Calamidades destas serão vistas
Durante a vida humana inumeráveis,
Perturbado o doméstico sossego.”
287
Mas Eva não se dá por ofendida.
Com lágrimas que estão sempre correndo,
Desordenados os cabelos lindos,
Humilhada se lança aos pés do esposo,
Abraça-lhos, perdão sincero pede,
E prossegue na súplica dest’arte:
288
Eis logo a Adão a compaixão comove:
Sente que o coração se lhe enternece
Pela esposa querida (que, inda há pouco,
Era para ele vida e só deleite)
Posta agora a seus pés cheia de angústias,
Ela, tão linda criatura, vindo
Rogar-lhe auxílio e os próvidos conselhos
Que por incauta desprezado havia.
289
Quão pouco peso ter minhas palavras
Para ti devem, que, levianas sendo,
Foram tão justamente desditosas.
Contudo, — restaurada (inda que indigna)
Como por ti a meu lugar me vejo,
Esperançada de alcançar de novo
O teu amor, o só prazer dest’alma,
Quer goze a vida, quer me vença a morte, —
Não te posso ocultar os pensamentos
Que em meu inquieto peito se levantam.
De nossos males ao alívio ou termo
Endereçados são: tu tens de achá-los
Tristes, pungentes, — mas, em dor tão forte,
Julgo-os eu toleráveis, preferíveis.
A sorte horrível da progênie nossa
É decerto o que mais nos mortifica...
Ela que deve ser trazida ao Mundo
Para sofrer desgraças infalíveis,
E para enfim a morte devorá-la.
Ser o instrumento da miséria de outros,
Dos próprios filhos seus, é nímio duro:
Pôr no Orbe amaldiçoado infausta estirpe
Que, depois de uma vida miserável,
Tem de ser pasto desse impuro monstro,
Na realidade, quanto é duro excede.
Tens o poder de obstar, Adão querido,
Que não ditosa raça exista no Orbe:
Não pode ela existir se a não gerares.
Sem filhos inda estás, fica sem filhos:
A Morte assim na glutonia sua
Fica iludida, e tem de contentar-se
De só nós dois que tragará faminta.
Mas — se crês que é difícil, que é penoso,
Conversando, brincando, olhando, amando,
Abster-se do dever que o amor inspira,
Dos deliciosos, conjugais afagos,
E em desejos arder sem esperanças
Diante do objeto que também se nutre
De tão ardente amor, de iguais desejos,
(O que em verdade deve ser suplício
Não menor do que os outros que nos pungem), —
Então... para de um golpe nos livrarmos,
A nós e à nossa estirpe, das misérias
Que temos de recear para nós ambos,
290
A morte vamos procurar de pronto;
Porém se acaso achá-la não pudermos,
Coas nossas próprias mãos em nós façamos,
Sem mais nada aguardar, o ofício dela.
Por que estaremos por mais largo espaço
A tremer sob o aspecto de mil sustos,
Que não têm outro fim senão a morte,
Quando podemos a mais curta estrada
Tomar para morrer, assim destruindo
A destruição por suas próprias armas?”
291
Portanto, outro caminho procuremos
De menos p’rigo; e creio havê-lo achado.
Atende à parte da sentença nossa
Onde se exprime que a progênie tua
Há de esmagar a fronte da serpente:
Esta compensação fora ilusória
Se não se referisse, como entendo,
A Satã, nosso pérfido inimigo
Que, malicioso na serpente oculto,
Contra nós praticou o engano horrível:
A fronte lhe esmagar fora vingança;
Mas ela para nós será perdida
Se acaso dermos a nós mesmo a morte,
Ou se instamos viver sem termos filhos.
Desta maneira o fero imigo nosso
O castigo ordenado evitaria;
E nós, disso em lugar, em nossa fronte
Sentíramos a pena duplicada.
Assim, não mais nos lembre a infausta idéia
De nos tirarmos a nós mesmo a vida,
Nem de esterilidade triste, odiosa,
Que de toda a esperança nos separa, —
Fatos, que tão somente denunciam
Impaciência, rancor, acinte, orgulho,
Rebeldia obstinada contra o Eterno,
Contra seu reto jugo a nós imposto!
Lembra-te do ar tão doce e tão afável
Com que ele se dignou de ouvir-nos a ambos,
E de julgar-nos sem afronta ou ira.
Esperávamos ser extintos logo
Crendo que fora a morte decretada
Para o dia em que a culpa sucedesse:
Eis... se não quando... na prenhez, no parto.
Algumas dores contra ti fulmina,
Recompensadas co’o prazer que em breve
Do ventre teu te proporciona o fruto;
E a mim coa maldição me toca apenas
Que logo toda resvalou na terra,
De sorte que, de meu trabalho à custa,
Devo ganhar meu pão. Que mal há nisso?
A ociosidade mais penosa fora;
O meu trabalho me entretém e nutre.
Para o frio e calor nos não lesarem
Deus, sem que lho pedíssemos, com tempo
292
Tinha providenciado, — e a destra sua
Tão bondadosa se dignou vestir-nos
Mesmo quando severo nos julgava.
Assim... como inda mais os seus ouvidos
Se nos não abrirão, se o suplicarmos?!...
Como o seu peito não será piedoso
Ensinando-nos próvido as maneiras
De nos livrarmos do rigor das quadras,
Da chuva e neve, do granizo e gelo!
O firmamento já começa agora
A perturbar-se com aspectos vários,
Enquanto os ventos pelos montes sopram
Mádidos, penetrantes, estragando
Das belíssimas árvores copadas
A verde rama, nítida, opulenta:
Obrigam-nos portanto estas mudanças
A que busquemos um melhor abrigo,
E uma reserva de calor que possa
Confortar nossos membros abatidos,
Isto antes que do dia o facho ingente
Deixe que o substitua a fria noite.
Vejamos pois se condensar podemos
Do Sol ardente os refletidos raios
Em secos materiais pegando fogo, —
Ou se acaso o alcançamos esparzido
De dois roçados corpos um pelo outro
Ao forte atrito os ares inflamando,
Bem como nós (pouco há) vimos as nuvens
Que, em colisão recíproca levadas,
Ou por furiosos ventos impelidas,
Relâmpagos oblíquos acenderam,
Cuja flama baixou, veloz, ativa,
E pegou lume à casca resinosa
De pinheiros e faias, donde vinha
Calor ao longe que mui grato achámos,
Suprir podendo o que do Sol procede:
Deus nos há de ensinar, se lho pedirmos,
Como usaremos deste lume e quanto
Servir-nos pode de remédio ou cura
Nos males que nos trouxe a culpa nossa:
E dele co’o favor não temos susto
De passar vida incômoda sustida
Pelos auxílios que ele nos outorgue,
Até ultimamente ao pó tornarmos,
293
Nossa pátria e descanso derradeiro.
Assim, o que melhor fazer nos cumpre
Do que voltarmos ao lugar sagrado,
Onde quis Deus julgar-nos compassivo,
E nos prostrarmos em presença dele,
Com reverência humilde confessando
As culpas nossas, e perdão pedindo
Com lágrimas fiéis que a terra inundem,
Com suspiros que no ar ferventes voem
De corações contritos, demonstrando
Sincera dor, humilhação profunda?
Por este modo abrandará decerto
E deixará de todo o seu enfado:
Em seus olhos serenos, mesmo quando
Parecia mais fero e rigoroso,
O que tão claro rutilar nós vimos
Senão misericórdia, auxílio, graça?”
LIVRO XI
O Filho de Deus apresenta a seu Pai as súplicas de Adão e Eva já arrependidos, e
intercede por eles. Deus lhas aceita; mas declara que não podiam mais habitar
no Paraíso: manda Miguel com um esquadrão de anjos a dispô-los, e que antes
revele a Adão os sucessos futuros. Descida de Miguel. Adão mostra a Eva certos
sinais ominosos: vê que Miguel se aproxima e vai sair-lhe ao encontro. O anjo
anuncia-lhe que vem para o fazer sair do Paraíso. Lamentações de Eva. Adão
desculpa-se, mas submete-se. O anjo leva-o acima de uma alta colina; — e
mostra-lhe, em uma visão, o que deve suceder até ao Dilúvio.
294
Em humilde postura, arrependidos,
Os pais da humana prole orando estavam:
A graça, vinda do superno trono,
Já de seus corações mudado havia
Toda a dureza em lacrimal brandura:
Indizíveis suspiros exalando
Soltam preces que aos Céus voam mais prontas
Do que os rasgos da altíssona eloquência.
No porte seu contudo não demonstram
De vis pedintes a servil baixeza;
Nem súplica faziam menos nobre
Do que Deucálio e a pudibunda Pirra,
Ancião casal das fábulas vetustas,
Quando, ajoelhados ante o altar de Têmis,
A instauração humildes suplicavam
Da humana raça no dilúvio imersa.
295
Os sentimentos seus que inda não sabe
Com que palavras implorar te deva.
As obras todas, que tem feito, todas,
Sejam boas ou más, sobre mim tomo:
Por meu mérito aquelas ficam puras,
E estas expiadas pela morte minha.
De suas preces e ais o sacro aroma
De mim aceita em pró da humanidade:
Deixa que bem contigo viva o homem
Dias, que lhe marcaste, inda que tristes,
Té que a sentença proferida, a morte,
(Que há de cumprir-se mas que rogo abrandes),
A melhor vida o leve, onde comigo
Em ventura celeste, em paz ovante
Habitarão os meus remidos todos,
A mim unidos como a ti eu me uno.”
296
E se erguerá da dita ao grau excelso,
Renovados então o Céu e o Mundo.
Chamemos pois da vastidão do Empíreo
As jerarquias todas a congresso:
As minhas decisões não lhes oculto
Que, — agora retas a respeito do homem, —
São como as viram nos passados tempos
A respeito dos anjos rebelados
Que mais e mais no crime se empedernem.”
297
Quero que do Éden saia e lavre a terra,
Seu próprio dote e de que foi tirado.
Miguel, das ordens minhas te encarrego;
Dentre os guerreiros querubins escolhe
A mais luzida flor, contigo os leva;
Sobre Satã vigia a fim que, ousado,
Perturbando de novo a paz no Mundo,
Não tome agora com traição arteira
Sobre seus ombros a defesa do homem,
Ou não se aposse do jardim formoso
Que era seu domicílio e fica vago.
Vai, apressa-te, e lança fora do Éden
Sem remissão o par pecaminoso;
Profanos não consente a terra sacra:
Deles, da prole começada neles,
O desterro perpétuo lhes intima.
Contudo, já que em contrição os vejo
Cheios de pranto lamentar seus crimes,
Faze que os desditosos não desmaiem:
Na execução da ríspida sentença
Não lhe metas terror, mostra brandura.
Se ao mando teu submissos logo ob’decem,
Consola-os no extermínio; a Adão revela
De si, dos seus, segundo o que eu te inspire,
Os futuros sucessos, ajuntando
Meu pacto justo da mulher coa prole:
Aflitos coa desgraça, em paz os manda.
Do jardim pelo oriente, onde é mais fácil
A entrada nele, posta um corpo de anjos;
E, cauto, alçando teu alfanje ardente
Que inunda inteiro o Céu, com ígneas ondas,
Amedronta, horroriza, expulsa, arrasa
Quem da Árvore da Vida o acesso intente:
No Éden não quero espíritos imundos
Que as minhas caras árvores profanem
E, traidores roubando-lhes o fruto,
De novo enganem a fraqueza do homem.”
298
Em mais quantia, com maior alerta
Do que os de Argos não súditos do sono,
Em que ele se entranhou pelo almo encanto
Da vara opiada e flauta de Cilénio.
299
(Modesta diz-lhe a enternecida esposa);
“Pode ele porventura pertencer-me
Se, destinada para sócia tua,
Armei-te o laço em que perdeste a dita?
Antes credora sou de que implacável
Me increpes, me censures, me aborreças.
Meu juiz, porém, perdão deu-me infinito:
Eu, que, a primeira, urdi a morte a tudo,
Por graça dele sou da vida a fonte;
E tu também assim intitular-me
Por generosa compaixão te dignas!
Mas ao trabalho e suor da imposta pena
Nos chama o campo mesmo tresnoitados:
Vê que, insensível às desgraças nossas,
Risonha principia a manhã bela
Seus róseos passos: obedientes vamos.
Desde hoje nunca mais de ti me ausento,
Seja onde for que trabalhar nos cumpra,
Seja da aurora até fechar-se a noite.
O que encontrar se pode de importuno
Entre estes agradáveis arvoredos?
Inda que faltos da primeva dita,
Em contente harmonia aqui vivamos.”
300
Como de seu desígnio precursores,
No diferente Mundo, colho, ó Eva,
Que maior desventura nos aguarda.
Vêm advertir-nos de que mal pensamos
Do perdão nosso, crendo-nos seguros
Porque alguns dias mais nos tarda a morte?
Que certo até então se nos ocultam
Da nossa vida a duração e o modo?
Que somos pó e ao pó voltar devemos?
Como de outr’arte interpretar-se pode
A atroz perseguição que presenciamos
Do mesmo lado, a um tempo, no ar, na terra?!
Por que antes de mei’-dia surge a noite?
Por que a luz da manhã fulge mais bela
Na grande nuvem que, ocupando o ocaso
Radiante albor no azul do firmamento,
Desce pausada e coche se afigura
De celestial, augusto mensageiro?”
301
Descubro que um dos celestiais guerreiros
Vem da ígnea nuvem que encobriu o monte;
De seu porte sublime a majestade
Nele denota dos maiores tronos
Uma muito elevada jerarquia.
Posto não ser terrível que me assuste,
Dá-se a grave respeito e quase austero;
Não tem de Rafael o doce afago.
Tu retira-te: vou, como me incumbe,
Reverente ao caminho recebê-lo.”
302
Teu solo próprio de que foste feito.
Precisas sempre são de Deus as ordens.”
303
É onde ele habitar a Pátria tua.”
304
Nectáreos frutos, as mais lindas flores.
Mas onde encontrei no baixo Mundo
Sua brilhante face, os seus vestígios?
Inda que a seu furor fujo medroso,
Contudo compassivo prometeu-me
Mais longa vida, estirpe numerosa:
Assim observarei, ainda contente,
Da glória sua as metas afastadas,
E os passos seus adorarei de longe.”
305
E da alegria os ímpetos tempera
Com pia seriedade e sacro susto:
Igual moderação sempre te adorne,
Quer no estado feliz, quer na desgraça.
A vida assim conduzirás tranquila,
E bem disposto encararás a morte.
Sobe este monte: deixa que Eva durma,
Enquanto velas em visão sublime;
Dormiste tu assim quando o alto Nume,
De ti formando-a, lhe inspirou a vida.”
306
Também de Nego avista os largos reinos
Com Ércoco, seu porto o mais distante;
Logo os domínios de menor grandeza,
Mombaça, Quiloa, as praias Melindanas,
E Sófala (que a antiga Ofir se julga),
Até do Congo e Angola à plaga ocídua,
Ao Niger empolado e aéreo Atlante,
Fez, Sus e Tremecém, Argel, Marrocos,
Do famoso Almansor amplos estados;
Té ao Tibre europeu onde a alta Roma
Viria a governar o inteiro Mundo.
Pode ser que a visão lhe apresentasse
Também de Montezuma a ingente corte,
O México opulento; Cusco excelsa
Onde o argênteo Peru acataria
De Atabalipe as ordens soberanas;
Capital da Guiana: a áurea Manoa
Que de Gerião os filhos salteadores
Dourado chamariam devaneando-a.
307
Olha Adão, vê um campo: arada e culta
Enche-se parte de ceifadas messes,
Parte ocupam de greis pastos e apriscos:
No meio, uma ara de relvosa leiva
Se eleva e faz das possessões o marco.
Louras espigas da primeira sega
Depõe suado ceifeiro ali, tomadas
Quais desleixada mão a eito encontra:
Meigo pastor depois, com puro esmero,
Da grei os primogênitos melhores
Tendo escolhido, traz e os sacrifica;
Fumam com largo odor, de incenso esparsas,
Sobre ígneas achas, as entranhas pingues:
Todas do rito as fórmulas celebra.
Dos Céus baixando refulgente lume
Propício consumiu a grata of’renda
Com viva luz e celestial aroma:
A do outro inútil foi por não sincera.
Então das terras o cultor malvado
Raiva de ciúme, — e, co’o pastor falando,
Ao peito lhe atirou traidora pedra
Que momentânea o despojou da vida:
Coa palidez da morte o triste cai;
De sangue entre bolhões a alma lhe foge.
308
Morrer é isto? A morte é deste aspecto?
Os homens voltarão por esta estrada
Ao térreo pó de que tirados foram?
Que cena de terror vista e pensada!
Quão terrível será quando a sentirmos!”
309
Que empedernido coração pudera
Tão crua cena presenciar sem pranto?
310
(Adão lhe diz): “mas só por esta estrada,
Só por estas pungentes avenidas
Devemos ir aos penetrais da Morte,
E entrar no pó de que gerados fomos?”
311
Tendas várias em cor nele se elevam.
312
E cada qual escolhe a sua amada:
De amoroso delírio se transportam
Até que tremeluz com mago riso,
Precursora de amor, da tarde a estrela:
Das núpcias lá se acende a tocha ovante;
Invoca-se Himeneu que a vez primeira
Em cerimônias conjugais figura;
Ressoam com prazer nas tendas todas
Músicas de alegria, altivas festas.
De amor e juventude o lindo encontro,
Cantigas, flores, músicas, grinaldas,
Encantadora perspectiva formam
Que extáticos de Adão deixa os sentidos.
313
Que tão meiga observaste, ingênua, ovante,
Parecendo um congresso de deidades,
São do sexo a desonra e não se ligam
Do conjugal pudor ao sacro jugo;
Da perversão um foco em si ostentam:
Canto, lascívia, dança, adornos, brindes,
Delas o emprego vergonhoso formam.
E esses varões, que no sisudo aspecto
De Deus extremos filhos se inculcavam,
Têm de sacrificar fama e virtudes
Ao tredo riso, às mágicas ciladas
Daquelas impudicas formosuras:
Mais e mais no prazer vão-se engolfando...
Ai de todos! Em breve há de encontrar-se
No próprio pranto seu, imerso o Mundo!”
314
E grei lanuda coas balantes crias;
Com vida, apenas, os pastores fogem:
Mas, ansiosos gritando por auxílio,
Acodem-lhes e surge atroz peleja:
Investem-se esquadrões com fero impulso,
E onde o gado pastava (havia pouco),
Deserto o campo agora e tinto em sangue
Alastrado se vê de mortos e armas.
Uma praça d’além põe-se em assédio,
E em torno dela batalhões acampam:
Furibundos assaltam-na de fora
Com baterias, escaladas, minas;
De sobre os muros a defesa arroja
Chuveiros de farpões, nuvens de pedras,
E de fogo sulfúreas enxurradas:
Gigânticas ações, estrago horrendo,
Iguais se antolham nos partidos ambos.
Eis que arautos ceptrígeros convocam
Às portas da cidade uma assembléia:
De respeitáveis cãs varões sisudos
Aos valentes guerreiros se ajuntaram,
As propostas questões ali ventilam;
Porém rebelde oposição se acende.
Então de meia idade um douto se ergue
Com eminente e persuasivo porte;
Mostrou de Deus o que era o juízo augusto,
Paz e verdade, religião, justiça,
E delas na infração quais crimes brotam.
Desprezam-lhe as razões moços e velhos;
E por violentas mãos fora ali morto
Se uma nuvem, de súbito descida,
Não o arrancasse de invisível modo
Dentre o furor da multidão sanhuda.
A opressão, a violência, a lei da força,
Por toda essa região assim reinavam, —
E refúgio contra elas não havia.
315
Homens não são!... da Morte eis os ministros!
Mas o varão que, a não salvá-lo o Eterno,
Vítima fora das virtudes próprias,
Quem era, dize, divinal arcanjo?”
316
Fazem de todos perenal emprego;
Adultério, consórcio, incesto, rapto,
São da beleza efeitos indistintos:
Nascem dos brindes as civis discórdias.
317
Nem praias tinha o mar, era mar tudo.
Da prole humana tão antiga e vasta
O que resta, ei-lo na arca entregue às ondas.
318
Os mesmos são que dantes se ostentavam
Denodados heróis de ações ilustres,
Mas de virtude verdadeira faltos;
Os mesmos são que, tendo posto esmero
Em inundar de sangue humano o globo,
Em subjugar nações com fero estrago,
E deste modo ou de outro havendo obtido
Altos títulos, fama, e rico espólio,
Viraram de caminho e se lançaram
Na vil prostituição, no ócio, na gula, —
Té que da paz e da amizade o grêmio,
Pelo orgulho e lascívia envenenado,
Rebentou em vulcões de hostis desordens.
Reduzidos a escravos os vencidos,
Que Deus por maus abandonou na guerra,
Perderam com o bem da liberdade
Quanto neles havia de virtudes:
Frios no zelo e no temor divino,
Corruptos na opulência, e sem caráter
Para da temperança entrar nas provas,
Só querem, instam, conservar seguros
Os vergonhosos, dissolutos gozos,
Tais quais os seus senhores lhos permitam.
Assim geral a corrupção se torna;
E ficam no atro esquecimento ocultas
A sobriedade, a fé, a honra, a justiça.
Eis que um varão menoscabando do Orbe
As iras, os desprezes, os afagos,
Bom da perversidade entre os exemplos,
O só filho da luz no evo das sombras,
Exprobra aos homens seus nefandos crimes:
Da justiça os caminhos lhes aponta
Como cheios de paz e os mais seguros;
Profetiza dos Céus a ira tremenda
Que por impenitentes vai puni-los;
Porém escarnecido e desprezado
Voltará deles o que Deus reputa
O único justo desses férreos tempos.
Então, por ordem do Arquitipo augusto,
O varão (como vês) essa arca ingente
Fabricará, e nela há de abrigar-se
Ele e os seus, esquivando-se de um Mundo
A universal devastação votado.
Assim que se alojarem nesse asilo,
319
E os animais que à morte escapar devem,
Bem a coberto do furor equóreo, —
Rebentarão dos Céus as cataratas
E chuva no Orbe lançarão imensa,
Ao passo que do Abismo inteiro as fontes
Se desentalarão no crespo oceano
Que, ultrapassando todos os limites,
O globo cobrirá, ficando imersos
Nas fundas águas os mais altos montes.
Coa violência das ondas arrancado
Será pela raiz o monte do Éden,
E boiará, sem árvores, sem flores,
De seu rio nas túmidas correntes,
Té que se há de prender do golfo na orla,
Vindo a ser ilha nua e salsa um dia,
Só frequentada de delfins e focas,
Co’os guinchos das gaivotas aturdida,
E daqui tira que jamais o Eterno
A sítio algum outorga santidade
Se de seus habitantes as virtudes
Não a plantam ali com puro zelo.
Ao que tem de seguir-se atende agora.”
320
Uma pomba, mais fida mensageira,
Buscando árvore ou ramo onde se firme;
Da vez primeira regressou baldada;
Porém no bico trouxe, da segunda,
Sinal de paz, um ramo de oliveira.
321
De ter feito o homem que se afoga em crimes.
Removidos os maus, tal graça encontra
Ante seus olhos um varão perfeito,
Que Deus por ele seu furor aplaca
Deixando inda viver a humana prole;
E promete que o mar contido em diques,
A chuva pelas nuvens estorvada,
A água subtérrea nos abismos presa,
Nunca jamais alagarão o Mundo.
Sempre que este arco tricolor, brilhante,
Sobre a terra, nas nuvens apareça,
Lembrem-se os homens que benigno o Eterno
Os aditou por tão feliz aliança.
Noites, dias, sazões, anos e séc’los,
Hão de seguir seus turnos té que o fogo
Abrase e purifique este Universo.
Então mais puro o Céu, mais puro o globo,
Serão de justos a morada eterna.”
LIVRO XII
O anjo Miguel continua a contar o que há de suceder depois do dilúvio: —
então, fazendo menção de Abraão, vai gradualmente até explicar quem é a
“raça da mulher” prometida a Adão e a Eva em sua queda. Encarnação, morte,
ressurreição e ascensão do Redentor. Estado da Igreja até sua segunda vinda.
Adão, mui satisfeito e sumamente confortado por estas narrações e promessas,
desce da colina com Miguel. Vai acordar Eva que tinha dormido durante todo
esse tempo, — mas já disposta, por meio de sonhos agradáveis, à tranquilidade
de ânimo e à submissão. Miguel, tomando-os pela mão, leva-os para fora do
Paraíso: — a espada de fogo brande-se furibunda por detrás deles, e os
querubins tomam seus postos para guardar o jardim.
322
“Viste fazer e destruir um Mundo,
E de outro tronco alçar-se a humana espécie.
Mas eu percebo que teus olhos cansam
Inda que destes quadros portentosos
Muito lhes escapou: curvam, fraqueiam
Sob assuntos do Céu térreos sentidos;
Por isso, desde já, passo a contar-te
O mais saliente nos futuros evos.
Tu dócil presta-me atenção; escuta.
A nova estirpe humana, enquanto pouca,
Enquanto impresso conservar na mente
Da punição passada o frio susto,
Irá vivendo no temor do Eterno,
Seguindo a retidão e a sã justiça.
Então, obtendo em breve infinda prole,
Cultivará da terra o fértil seio
Que abundância dará de áureas espigas,
De vinho animador, de puro azeite:
Of’recerá das greis, dos armentios,
Ao Rei do Empíreo vítimas frequentes,
Esparzidas com vinho em larga cópia
Servidas logo nos festins sagrados.
Cheios de gozo, de inocência cheios,
Seus dias correrão; a paz mimosa
Tem de uni-los por tempo dilatado
Em tribos fraternais, ampla família,
Do paterno governo à sombra sacra.
Rebela-se depois varão soberbo,
Que no peito orgulhoso não acolhe
A igualdade gentil, fraterno estado;
E, arrogando-se a si domínio férreo,
A seus irmãos a liberdade usurpa.
Ímpio caçando (brutos não, mas homens),
Com guerra e hostil engano a todos fere
Que à sua tirania não se curvem.
De todo então da Terra se retiram
Concórdia, paz, e leis da Natureza.
De grande caçador se impõe o nome,
Ou por desprezo ao Céu, ou porque aspire
A ter quinhão do Céu no império sumo:
Inda que tacha de rebeldes todos
Que opostos são à tirania sua,
Toma o nome da própria rebeldia.
Com grandes turmas, que como ele intentam
323
Sob seu domínio escravizar o Mundo,
Sobre o ocidente do Éden se dirige:
Lá depara co’um campo onde ampla se abre
Betuminosa, denegrida furna,
A qual, do Inferno parecendo boca,
Imensos turbilhões de lava expele.
De tijolos com ela betumados
Pretendem levantar fábrica enorme
Que vá coa frente topetar no Empíreo,
E obter, por obra tal no inteiro globo,
Altissonante, duradoura fama
(Ou seja boa ou má, o tudo é tê-la).
Deus, que para as ações notar dos homens
Vê-los a miúdo vem, não deles visto,
Passeando atento nas moradas suas,
Então observa a temerária insânia
E desce à Terra enquanto a altiva torre
Inda as torres do Céu não comprimia.
Rindo-se de tão débeis contendores
Sobre as línguas lhes lança inquieta fúria
Que a linguagem nativa lhes corrompe,
Semeando logo com discorde arruído
Uma aluvião de incógnitas palavras:
Vozeiam, gritam, uivam, enrouquecem;
Troa de vozes um trovão terrível;
Chamam sem se entenderem uns por outros,
Té que enraivam julgando-se zombados.
Os íncolas do Céu muito se riram,
Vendo a desordem, escutando o estrondo.
Abandonaram os obreiros a obra
Que foi Babel ou confusão chamada.”
324
Seu arrogante orgulho contra os homens:
Cercar e provocar ousando o Eterno,
Alevantou contra ele a insana torre.
Desgraçado mortal! Como puderas
Alimentos levar além das nuvens
Para tuas falanges temerárias?
O nímio ar sutil n’alturas tantas
Teus bofes dilatados não nutrira:
Morreras, de ar e de alimento à fome!”
325
Vai de mal a pior: o Onipotente,
De tantas injustiças já cansado,
Dos maus apartará sua presença,
Retirará seus olhos sacrossantos,
Deixando os ímpios desde então entregues
Aos caminhos corruptos que se abriram.
Escolherá um povo predileto
Que aras submisso lhe erguerá, nascido
De virtuoso varão na fé preclaro
Que do Eufrates morava nas ribeiras,
Dos ídolos na crença doutrinado.
Oh! quanto os homens (poderás tu crê-lo?)
Inda nos dias do patriarca ilustre,
Que salvou do Dilúvio a prole humana,
Se têm de embrutecer negando, indignos,
Ao vivo Deus os sacrifícios e aras,
Para adorarem, como ingentes numes,
De pedra e pau imagens que fizeram!
Digna-se Deus chamar esse homem justo
Da casa paternal, dentre os parentes,
Dentre os mentidos numes que adorava:
Mostra-lhe uma visão onde lhe indica
Uma terra a que vá; que ele o começo
Será de ingente povo, em que do Eterno
A bênção recaindo, os povos todos
Serão, da estirpe sua, abendiçoados.
Obedece o varão: qual terra seja
Não sabe; mas na fé sempre é constante.
Não podes vê-lo tu; mas eu o vejo
Partir cheio de fé largando a pátria,
A fértil Ur nos prados de Caldéia,
Numes e amigos. Ei-lo o Harã passando;
Seguem-no imensas greis, manadas, servos:
Opulento senhor, não pobre errante,
A Deus, que o chama a terras não sabidas,
Suas riquezas generoso entrega:
Seus pavilhões em Canaã plantados
Junto a Sechem lá vejo, e mesmo ocupam
De Moreb as campinas vicejantes.
Ali lhe entrega Deus, inda em promessa,
Vasta região para ele e a prole sua:
Falo-te em nomes no porvir usados.
Tem o deserto ao sul, o Hamath ao norte,
O grande mar no ocaso, o Hermon a leste.
326
Repara o que te aponto: deste lado
O Hermon se eleva; além o mar se estende:
Ali pegado à praia entra nas nuvens
Do Carmelo a montanha donde nasce
De fontes duas o Jordão divino,
Próprio limite das regiões Eoas:
Mas povoarão seus filhos quanto alcança
Té Seir que a cordilheira além te mostra.
Pondera que serão nesta família
Abendiçoadas do Orbe as nações todas:
Sairá dela o Salvador augusto
Que esmagará da serpe a imunda fronte:
Logo to hei de mostrar com mais clareza.
Há de Abraão chamar-se em próprio tempo
O abendiçoado patriarca: um filho
Deixará, — e por ele um neto ilustre,
Igual do avô na fé, na ciência e fama.
Com doze filhos o ditoso neto
Parte de Canaã, entra no Egito:
Olha o Nilo que o rega e donde corre;
Lá deságua no mar por bocas sete.
A vir morar ali foi convidado
Por um dos filhos em faminto tempo, —
Filho, cujas ações no egípcio Império
O puseram no grau chegado ao trono.
Eis que ele morre, e sua raça deixa
Inda crescendo de nação em corpo:
Já grande ao novo rei inspira sustos,
Que intenta obstar-lhe à geração os vôos
Como se fosse de hóspedes terríveis:
Tirano o asilo em servidão lhes muda,
E mata os filhos que varões lhes nascem.
Deus então manda que em seu sacro nome
Moisés e Aarão, irmãos assim chamados,
Do cativeiro o pova seu reclamem:
Voltarão todos com espólio e glória
Para a ditosa terra prometida.
Porém, primeiro que este bem alcancem,
O ímpio tirano a conhecer se nega
O grão Deus de Israel, seus altos núncios.
Por terríveis sinais, duras sentenças,
Há de ser a deixá-los compelido:
De seus rios as rápidas correntes
Em sangue não vertido hão de mudar-se;
327
Torva aluvião de rãs, nuvens de moscas,
Vermes sem conto povoarão nojentos
Todo o palácio seu, seus reinos todos;
Peste asquerosa matará seus gados;
Chagas, tumores cobrirão infectos
Dos povos seus e dele mesmo as carnes;
Do raio o fogo e da saraiva a neve
O céu do Egito rasgarão concordes,
E, pela terra aspérrimos rolando,
Tudo aniquilarão que nela gira;
Os grãos, frutos, e plantas que escaparem,
De gafanhotos um cruel dilúvio
Come, deixando sem verdura a terra;
Por dias três escuridão palpável
Rouba a luz, todo o Egito em si imerge;
Deles depois, à meia-noite em ponto,
Prostra os recém-nascidos fera a morte.
Às dez pragas fatais assim cedendo,
Por fim submete-se o dragão do Nilo
E consente partir a hebréia gente:
A miúdo humilha o coração de bronze.
Mas — como a neve, que o calor fundira,
Fica mais dura, se de novo gela, —
A raiva sua eis que de ponto sobe,
E torna a perseguir os desgraçados.
Confiado ao justo seu o Eterno havia
Grão poder, — e, presente então num anjo,
Lá vai adiante do escolhido povo
(De dia, envolto numa argêntea nuvem;
De noite, dentro de um pilar de fogo,
Para dos passos seus marcar-lhe o rumo),
E ao mesmo tempo, com seu amplo auxílio
Protege-lhe piedoso a retirada
Contra o rei pertinaz que os vem seguindo
Mesmo através da escuridão noturna.
Deus, penetrando co’os sagazes olhos
Pelo pilar de fogo e argêntea nuvem,
No mau atenta, o espírito lhe aterra,
Dos altos carros lhe espedaça as rodas.
O chefe hebreu, por indução divina,
Já sobre o Roxo mar a vara estende...
Eis separam-se as ondas; seca estrada
Por entre muros de cristal se alonga:
Por ela se encaminha o povo eleito,
328
E, dele após, de Faraó as turmas.
Mas, tanto que Moisés na oposta praia
Salvos os seus contempla, ergue de novo
A vara portentosa sobre as vagas:
Logo obedientes a juntar-se tornam,
Do Egito sepultando em seus abismos
O exército e de guerra um trem imenso.
De Deus a gente a Canaã caminha:
Não toma o chefe a conhecida estrada.
Mas por largo deserto vai cortando,
Temendo que, inexpertos de batalhas
Os seus, coçados de imprevista guerra
Que os íncolas brutais fazer podiam,
De novo para o Egito não voltassem
Antes querendo servidão inglória
Do que valentes esgrimir as armas
(Que existência pacífica preferem
Plebeus e nobres às guerreiras lides,
Se da glória o furor os não inflama).
Pela demora no deserto extenso,
De um próvido governo o bem ganharam,
Nas doze tribos eleição fazendo
Do supremo senado que os dirija
Conforme as leis que promulgadas fossem.
Lá desce o Eterno do Sinai ao cume,
Que obumbrado de nuvens estremece;
Rudos bramam trovões, fuzilam raios,
E das trombetas o clangor estruge:
Porém, como dos homens os ouvidos
Não podem do Imortal coa voz tremenda,
Pedem-lhe que Moisés ao monte suba
Donde, cessado o horrível aparato,
Sua augusta vontade lhes transmita.
Deus os ouviu: Moisés as leis lhes trouxe;
À justiça civil umas pertencem;
Outras regulam os sagrados ritos,
Mostrando por simbólicas figuras
A prole que esmagar deve a serpente,
E por que meios terminar consiga
A cabal redenção da humanidade.
Assim os homens saberão que acesso,
Sem ter intercessor, em Deus não acham.
No entanto o hebreu ilustre desempenha
Tão alto encargo que há de no futuro
329
Ser de mais elevada jerarquia.
Ele a proclama, e todos os profetas
O tempo contarão do grão Messias.
Assim que as leis e os ritos se executam,
Cheio de gosto quer o Onipotente
Colocar entre os homens que o veneram,
Tabernáculo seu; morar se digna
Entre humanos mortais o Deus Eterno.
Magnífico santuário por seu mando,
De altivo cedro se fabrica e doura:
Dentro uma arca se põe, e dentro da arca
Vão as tábuas-da-lei, o pacto augusto:
Sobre ela feito de ouro, e sendo erguido
De dois brilhantes querubins nas asas,
Tem da propiciação o trono assento:
Ante ele sete lâmpadas cintilam
Do zodíaco em forma, afigurando
Os planetas que no éter luz espalham:
De dia sobre a tenda uma ampla nuvem,
De noite ígneo esplendor, hão de avistar-se,
Guardas perpétuas da arca sacrossanta.
Pelo anjo seu dest’arte conduzidos,
Chegam por fim à prometida terra.
Travaram cem aspérrimas batalhas,
Venceram reis e conquistaram reinos:
Ficou por todo um dia o sol parado,
Sustando à noite o costumado giro.
— “De Gabaon por cima, ó Sol, detém-te!
“E tu, no vale de Aialon, ó Lua,
“Té que vença Israel!” — À voz de um homem
Obedecem do dia e noite os astros.
O neto de Abraão, de Isaac filho,
Israel se chamou; e o mesmo nome
Foi conferido à descendência sua
Que à brava Canaã lançará ferros:
Porém... entrar pelos detalhes todos
Mui longa narração fora por certo.”
330
Eis a primeira vez que em mim contemplo
A vista clara, o coração tranquilo:
A minha sorte e a da progênie humana
Tinham minha alma em dúvidas perplexa;
Mas vejo agora o dia em que ditosas
Serão as gentes por bênção do Eterno,
Graça que eu não mereço, eu que insensato
Por vias proibidas quis meter-me
Na indagação de proibidas coisas.
Contudo, não entendo por que a gentes,
Com quem na terra Deus morar se digna,
São dadas tantas leis e tão diversas:
Muitas leis é sinal de muitos crimes;
E como pode residir o Eterno
Com gentes de tais crimes empestadas?”
331
Para a livre acepção de imensas graças;
Da obediência servil, fruto do medo,
Para a atenção filial que o amor inspira;
E das obras da lei, feitas por força,
Para obras a que a fé persuade e guia.
Muito de Deus será Moisés amado;
Mas, da lei sendo só simples ministro,
Não levará a Canaã seu povo.
Tal regalia gozará Josué,
Que Jesus os gentílicos nomeiam,
Havendo ele tomado o cargo e o nome
Do que há de suplantar a hostil serpente;
E, reduzindo ao bom caminho os homens
Do Mundo no deserto vagabundos,
Há de salvá-los no descanso empíreo.
Na prometida terra colocados
Por longo tempo morarão felizes;
Mas, quando pelos nacionais pecados
For a pública paz interrompida,
Inimigos o Eterno induz contra eles.
Contudo, vendo a penitência sua,
Protege-os, salva-os dando-lhes juízes
E logo reis que próvidos os mandem.
Grande em piedade, grande em valentia,
O rei segundo alcançará promessa
De que seu trono real durará sempre;
Hão de cantar as profecias todas
Que um filho nascerá da régia estirpe
De David (este o nome do monarca):
Hão de todos crer nele os povos do Orbe,
E Prole da Mulher hão de chamar-lhe:
Profetizado a ti, também tal dita
Tem Abraão, que reconhece nele
O redentor das gentes inegável;
Profetizado aos reis, que em série longa
O devem preceder, o último deles
Será, por ser eterno o seu reinado.
O filho de David que ao pai sucede,
Em sapiência e riquezas tão distinto,
A arca de Deus porá num templo augusto
Té ’li oculta em pavilhões errantes.
Seguem-se-lhe outros reis: do Mundo os fastos
Parte maus, parte bons, hão de escrevê-los;
Mas a lista dos maus será mais longa.
332
Hão de estes cometer enormes culpas
E entre elas a nefanda idolatria,
As quais, somadas coas dos povos, tanto
De Deus enfadarão as justas iras
Que em abandono os deixará, expondo
Seu reino, a corte sua, o excelso templo,
A arca divina, os utênsis sagrados,
À presa e opróbrio da cidade altiva,
Cujos muros e torre presunçosa
Tu mesmo viste em confusão deixados,
Por isso de Babel tomando o nome.
Setenta anos em duro cativeiro
Hão de ficar ali, que Deus o manda:
Recordando depois o pacto e a graça
Que jurara a David, tão permanentes
Como os dias do Céu, piedoso os livra
Dos reis influindo que sair os deixem.
Ei-los que da alta Babilônia partem:
Edificam de novo o sacro templo,
E por um tempo prosperar conseguem
Vivendo em mediania moderados.
Porém, crescendo em número e riquezas,
Fazem-se turbulentos: a discórdia
Teve entre as aras a explosão primeira;
E esses homens, a Deus e à paz votados,
Dão da carnage e da anarquia o exemplo.
Desacatando de David a prole,
Despojam-na do cetro, e desonrados
Em estrangeiras mãos o depositam.
Convinha assim, para nascer excluso
De seu jus o Messias verdadeiro.
Contudo, o nascimento lhe proclama
Clara estrela, no Céu não vista nunca,
E do Oriente conduz os sábios que instam
Em buscar do grão Rei o pobre albergue,
Para com reverência lhe ofertarem
De incenso e mirra, e de ouro, amplos tributos.
A zagais, que de noite alerta andavam,
Um anjo mostra onde recém-nascido
Achariam do Mundo o Rei supremo.
Ao vê-lo alegres correm, e de um coro
De anjos, formado em esquadrão brilhante,
Escutam este cântico solene:
— “Por Mãe teve uma virgem sacrossanta;
333
“É seu Pai o poder do Onipotente:
“Há de subir ao trono hereditário;
“A todo o Mundo seu império abrange;
“Os Céus inteiros enche a sua glória.” —
334
Pela infanda infração que cometeste.
Eis o só modo de aplacar do Eterno
A tremenda justiça inabalável.
A lei se acinge a vítima divina
Por obediência e por amor levada;
Também só por amor fizera o mesmo.
Suportará teu áspero castigo;
Há de sacrificar-se generoso
A vida desonrada, a morte infame,
Dest’arte recobrando a vida a todos
Que em sua redenção acreditarem,
Não conseguida pelas obras deles
(Posto que à lei cingidas se executem),
Porém só pelos méritos imensos
Da vítima sagrada. Entre mil ódios
Tendo vivido, prendem-no ultrajado,
Julgam-no por blasfêmias e ignomínias,
Sentenciam-no à morte, e em cruz alçada
Mesmo os seus próprios nacionais o pregam.
Morre ele para dar aos outros vida:
Na sua mesma cruz pregar consegue
Teus imigos, a lei que te é contrária,
E as culpas todas da progênie humana:
Não mais hão de danar assim quem creia
Remido ser por este sacrifício.
Morre Deus, — porém vivo eis que ressurge:
Sobre ele a morte pouco tempo exerce
Usurpado poder: antes que aponte
A alva terceira, da manhã os lumes
Vê-lo-ão erguer-se da marmórea campa
Muito mais belo que a brilhante aurora.
Coa morte paga do homem o resgate:
Preciosa morte que dá sempre a vida
A quem, quando lhe é dada, a não despreza,
E abraça tão grandioso benefício
Com fé que de obras suas se acompanha!
Este ato divinal desfaz, anula
A sentença que à morte te condena,
Com que perderas para sempre a vida
Se morresses no grêmio do pecado;
Esmaga de Satã a altiva fronte;
Poderoso lhe oprime a enorme raiva,
Pondo o Pecado e a Morte em dura ruína
(Os braços principais do rei das trevas).
335
Eles os seus farpões na frente imunda
Hão de cravar-lhe com mais fundo estrago
Do que o da morte temporal ferindo
O vencedor e os que remiu seu sangue,
Nos quais a morte parecida ao sono
É doce entrada para a vida eterna.
Nem muito tempo se demora no Orbe,
Depois de ressurgido, o Nume-Filho:
Aos discípulos caros aparece
Que sempre em sua vida o acompanharam;
O encargo lhes impõe que aos povos todos
Ensinem tudo que aprenderam dele,
Assegurando-os que obterão de certo
A salvação se nela acreditarem
Recebendo o batismo de água pura, —
Cerimônia que os limpa do pecado,
Dispõem-nos para venturosa vida
E para desprezar da morte os golpes,
Resignação humilde lhe ofertando,
Mesmo aos do Redentor sendo igualados.
Hão de assim doutrinar os povos todos.
Desde esse dia a salvação pregada
Não será de Abraão somente aos filhos, —
Mas também dele aos que na fé viverem,
Seja qual for a terra que habitarem:
Serão desta maneira as nações todas
Na prole de Abraão abendiçoadas.
Ao Céu dos Céus então o Nume-Filho
Tem de subir nas asas da vitória,
Teu inimigo e o seu vencendo no éter:
Nas diáfanas regiões há de encontrar-se
Coa Serpente infernal, tirano delas;
E ali, mesmo através de seus domínios,
Há de envolta em cadeias arrastá-la,
Deixando-a logo confundida e inerme.
Entra dali pelos umbrais da glória
E toma, à destra do Imortal, o assento
Que, muito acima dos mais altos tronos,
Ocupara desde eras sem quantia.
Depois, lá quando no prefixo prazo
For dissolvida a máquina do Mundo,
Ele irá, de poder e glória cheio,
Justiçoso julgar vivos e mortos:
As culpas punirá da turba infida
336
E premiará a multidão dos justos,
Recebendo-os na dita sempiterna
Ou no Céu ou na Terra, que em tais tempos
A Terra tem de ser um Paraíso
Mais delicioso do que é este do Éden,
Com mais ditosos dias realçados.”
337
Que, desprezando a morte e seus horrores,
Uma e mil vezes, encherão de assombro
Todos os mais cruéis de seus verdugos;
Assim consolações de gozo excelso
Hão de as ânsias pagar-lhes do martírio.
Antes de entrar nas batizadas turmas
O espírito divino enche primeiro
Os Apóstolos santos, e os incumbe
De pregar o Evangelho aos povos todos:
Dotá-los-á coas prodigiosas prendas
De falar quantas línguas haja no Orbe,
E de fazer quantos milagres tenha
Defronte deles feito o Mestre-Nume.
Inúmeros prosélitos dest’arte
Há de ganhar cada um, que ovantes queiram
Notícias receber do Empíreo vindas.
Depois que o sacro ministério cumpram,
De seus dias bem finda a grã carreira,
E seus dogmas e anais deixando escritos,
Serão heróicas vítimas da morte.
Porém (como eles d’antemão disseram)
Em seu lugar virão à grei pastores
Que, tornados em lobos furibundos,
Farão servir os celestiais mistérios
A vis conluios de ambição e ganho
Para interesse próprio dirigidos;
Que por superstições à fé contrárias
E por sutis tradicionais embustes,
Corromperão a límpida verdade
Achada pura só nesses registros,
Posto que só os bons ali a entendem.
Faustos, empregos, títulos buscando,
O temporal poder hão de juntar-lhe;
Mas com sagaz hipocrisia inculcam
Que no poder espiritual se encerram:
Hão de querer possuir como exclusivo
O espírito de Deus, que aos crentes todos
Foi igualmente prometido e dado.
Por essa pretensão, que os Céus insulta,
As leis espirituais, desacatadas,
Do temporal poder co’o férreo auxílio,
Hão de as consciências arrastar por força:
Mas ninguém obrigado assim se julga
As leis cumprir pela violência impostas, —
338
Nem há de crer que o espírito divino
Assim nos corações as tem gravado.
A liberdade e a fé, que por essência
Inseparáveis são, presas ao jugo
Deixarão de existir; e seus santuários,
Que a livre crença de cada um sustenta,
Hão de cair com base em crença de outrem:
Da consciência e da fé contra os ditames
Haverá muitos que ousem orgulhosos
Pretensões de infalíveis arrogar-se:
Nascem daqui perseguições nefandas
Contra os que persuadidos perseveram
Na adoração do espírito e verdade;
E os mais, que muito em número os excedem,
Satisfazer à religião opinam
Com cerimônias vãs, com rito externo.
Ferida então co’os dardos da calúnia
Foge a verdade, e raramente vistas
Entre os homens serão da fé as obras.
Assim bom para os maus, aos bons adverso,
Gemendo sob o peso das maldades,
Tem de ir o Mundo até que lhe apareça
O dia de alto alívio para os justos,
E de vingança em dano dos perversos:
Nele “a Progênie da Mulher” (que dantes
Anunciado te foi entre mistérios
E prometido como teu socorro,
Mas que teu salvador vês hoje às claras)
Torna a descer ao globo, — e no éter amplo,
Todo adornado coa paterna glória,
Vê-lo-ão talhar das trevas o tirano
E as pervertidas turmas que o seguirem.
Depois, tendo a matéria conflagrada
Obtido a sua prístina pureza,
Dela tem de formar o Nume-Filho
Novos Céus, nova Terra; e infindos tempos,
Que paz, justiça e amor, terão por bases,
Darão de ovante dita eternos frutos.”
339
Onde alcançar não pode a vista humana.
Comigo muito em paz, mui doutrinado
Daqui parto, — de si levando dentro
Este argiloso vaso em que consisto
Quantos conhecimentos nele cabem:
Aspirar mais além fora loucura.
Sei de hoje em diante que me cumpre à risca
Obedecer a Deus, com susto amá-lo;
Portar-me sempre como estando ante ele;
Ouvir-lhe a voz que soa íntima na alma;
Confiar só nele que piedoso estima
De suas mãos os portentosos feitos,
Que coa força do bem o mal destrói,
Que faz com poucos meios coisas grandes,
Que pelos fracos aniquila os fortes,
E que por meio de simpleza humilde
Confunde a fátua ciência dos mundanos.
Sei que sofrer por sustentar verdades
É valor que me ganha alta vitória,
E que os olhos do justo a morte encaram
Como porta por onde entrar lhe incumbe
Na vida tão ditosamente eterna.
Essas lições me deu co’o próprio exemplo
Esse meu Redentor sempre bendito”.
340
Mas desta altura, donde viste tanto,
Desçamos desde já, que as horas chegam
De partirmos daqui: observa as guardas
Que acampadas deixei naquele monte
E que esperando estão a voz de marcha;
Olha como por diante delas fulge,
Em sinal de partida, a ardente espada
Pelo amplo Céu vibrando furibunda;
Demorar-nos aqui não mais podemos.
Vai, Eva acorda; sosseguei-lhe a mente
Com sonho grato que mil bens lhe agoura,
E para humilde submissão dispu-la:
Dize-lhe em próprio tempo o que me ouviste,
Mormente o que convém para firmá-la
Na fé da Redenção que aos homens todos
Prodigaliza de seu sangue um germe,
Que “Prole da Mulher” será chamado.
Oxalá que ambos por extensos dias
Vivais em fé unânime; a tristeza
Dos males feitos aliviai coa idéia
De que virão a ter um fim ditoso.”
341
Mas não lhe respondeu, — que deles junto
O arcanjo estava já, e fulgurantes
Dos querubins os esquadrões desciam
Pelo declive do fronteiro monte,
Vindo com silenciosa ligeireza
Para a marcada posição guardarem.
(Dando ares de meteoro refulgente
Ou de névoa que à tarde se levanta
Do rio entre pauis manso correndo,
E vem seguindo ao lavrador os passos
Quando para a morada se recolhe).
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