Temas de Direito Constitucional

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APRESENTAÇÃO

Prezado leitor, apresentamos neste livro uma coletânea denominada Temas de Direito Constitucional.
A promulgação da Constituição Federal de 1988 representa um marco relevante da histórica jurídica brasileira, uma vez que nela se incorporou boa parte das ideias da mais
moderna doutrina então prevalecente no país. A forma como se estuda direito foi alterada para manter esse diploma como paradigma de estudo para todos os demais ramos.
A obra consiste em pesquisas avançadas, em nível de Pós-Graduação Stricto Sensu, preocupada em expor e abordar questões contemporâneas, relevantes tanto do ponto de
vista da vida acadêmica, quanto da prática profissional do jurista moderno.
De fato, a obra extrapola limites comumente impostos em livros monotemáticos. São apresentados estudos variados, ligados aos ramos do Direito Constitucional, pertinente
à linha de aderência de cada um dos pesquisadores. Comprometidos com o inedismo, foram abordados os temas atinentes ao constitucionalismo e ao movimento
neoconstitucional; ao poder constituinte; ao regime democrático; ao acesso ao cargo público e os ranços do patrimonialismo na administração pública atual; à problemática do uso
das máscaras nas manifestações; direitos humanos e o tratado atinente às pessoas com deficiência visual; uma releitura política do poder judiciário; o crime de responsabilidade da
Presidência e, finalmente, neste cenário de crise econômica, uma abordagem da atuação do Estado na regulação dos provedores de internet e a visão constitucionalista que recai
sobre o Banco Central do Brasil na execução medidas pertinentes ao sistema financeiro nacional.
Construiu-se, assim, um imponente e complexo edifício normativo a ser atuado pelos operadores jurídicos, a demonstrar que, cada vez mais, preparo e atuação constante são
necessários para lidar com as novas questões que serão colocadas em debate.
Em tempo, para abrilhantar a obra, esta publicação contou com o prefácio do culto e eloquente Professor Doutor Luiz Sales do Nascimento, que muito honra estes autores
com sua participação.
O organizador

PREFÁCIO

O grande constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho já advertiu que a Constituição é o estatuto jurídico do fenômeno político.
E por isso, a Constituição, quando divisada não no seu sentido meramente material, perpassa, assim como a política, todos os fenômenos da vida cotidiana.
Daí que, falar de Constituição, é falar da vida.
Esse livro Temas de Direito Constitucional conta com excelentes artigos científicos de estudantes de mestrado e doutorado da prestigiosa Universidade Mackenzie, que não
estão apenas preocupados com a promissora carreira acadêmica que se vislumbra a partir da qualidade de seus trabalhos.
Estão preocupados com a vida, e em especial com a vida cotidiana do Brasil como uma sociedade política de nosso tempo.
E nenhuma sociedade política pode ser devidamente analisada no tempo e no espaço sob o aspecto constitucional, sem tratar da história do constitucionalismo, como já o faz
logo o primeiro artigo.
Considerando então, que a Constituição está intimamente ligada ao fenômeno político, da mesma forma se faz necessário tratar da origem da democracia representativa e das
agremiações partidárias, tema de um dos valiosos escritos.
Todo esse arcabouço teórico permite, a seguir, reflexão acurada e mais voltada a práxis, abordando o neoconstitucionalismo e a efetivação da ciência jurídica.
Com esse referencial é possível enfrentar temas candentes do panorama político atual da nação brasileira, que vem se modificando de forma dinâmica desde as manifestações
de junho de 2013.
Daí a ingente importância de se questionar juridicamente o uso de máscaras em manifestações públicas, porquanto são suscitadas novas reflexões sobre o direito fundamental
de reunião.
E as mudanças institucionais e políticas que a sociedade civil está a exigir passam, necessariamente, por uma agenda de ruptura ou de manutenção aperfeiçoada do status
quo. Os artigos sobre o Poder Constituinte, e sobre o Poder Judiciário como pauta da agenda política, assim como a solução parlamentarista, são preciosos nesse sentido.
Ademais, outros assuntos, mais pontuais, porém não de menor valia para o estudioso dos Temas de Direito Constitucional, encontram nesta obra o devido espaço, como os
artigos que abordam os fundamentos constitucionais para acesso aos cargos e empregos e funções públicas no Brasil; o ranços do patrimonialismo na administração pública atual;
o direito humano à facilitação do acesso a obras publicadas e textos impressos por portadores de deficiências visuais e outras dificuldades de leitura; elementos do princípio do juiz
natural na constituição em vigor; a análise sobre o abuso do poder econômico por provedores de internet; e o papel relevante do Banco Central do Brasil como agente executor,
nos termos do disposto no artigo 12 da Constituição Federal.
A importância do livro se mostra na riqueza das análises de cunho jurídico, que poderão propiciar novas reflexões a quem pretende pensar e aperfeiçoar, e quiçá construir um
novo país.
Prof. Doutor Luiz Sales do Nascimento

1. CONSTITUCIONALISMO: uma possível história para seu surgimento

Heleno Aparecido Facco Junior1


Pedro Vítor Melo Costa2

1. Introdução: breves considerações sobre os antecedentes históricos do Constitucionalismo

O constitucionalismo é um dos temas que ainda se caracteriza por apresentar grandes dúvidas e controvérsias no meio acadêmico, tanto por questões de ordem conotativa,
como pela escassez de estudos sobre o tema. Além disso, há conceitos não consolidados que produzem confusão entre institutos (BUCK, 2007), sendo que por esse motivo a
doutrina anglo-saxã prefere lhe dar um sentido mais abrangente, enquanto teoria constitucional
(BUCK, 2007), ao contrário de outros que o denominam sistemas constitucionais (CARVALHO, 2008). Há autores, ainda, que o relacionam à existência de constituições escritas,
porém a história demonstra que o liame não é de todo verdadeiro e obrigatório, como se extrai do Reino Unido, que até hoje não tem uma constituição escrita. Alguns autores
como Canotilho (1993) o denominam movimentos constitucionais e divide o constitucionalismo em antigo e moderno, enquanto outros preferem a ideia de sistemas
constitucionais, sempre a partir dos fatos históricos ingleses, norte-americanos e franceses. Com esses grandes sistemas constitucionais, segundo Miranda (2002), em algum
momento da vida jurídica dos países os principais institutos de direito constitucional remontam a algum deles.
Em que pese divergências doutrinárias, para fins desse trabalho será utilizada a nomenclatura que classifica o movimento como constitucionalismo, e o que antes das
revoluções liberais foi produzido em matéria constitucional, da forma como hoje é entendida, será concebido como antecedentes históricos do constitucionalismo. Além disso, o
estudo se limitará aos fatos ocorridos na Europa, ainda que de grande valor o movimento nos Estados Unidos.
Antes de adentrar ao tema propriamente dito, para melhor situar os momentos tratados neste trabalho, importa distinguir a História da Europa em quatro grandes eras.
A idade antiga é a primeira de que se tem notícia, e percorre longo período até chegar ao séc. V, com a tomada do Império Romano do Ocidente pelos bárbaros; a Idade Média
compreende o séc. V até a Queda de Constantinopla, em 1453 d.C.; a Idade Moderna, por sua vez, constitui-se do período de 1453 até a Revolução Francesa, em 1789; e, por fim,
a era atual, denominada Idade Contemporânea, que compreende o período pós-Revolução Francesa até os diasatuais.

No princípio era a força. Cada um por si. Depois vieram a família, as tribos, a sociedade primitiva. Os mitos e os deuses – múltiplos, ameaçadores, vingativos. Os
líderes religiosos tornam-se chefes absolutos. Antiguidade profunda, pré-bíblica, época de sacrifícios humanos, guerras, perseguições, escravidão. Na noite dos tempos,
acendem-se as primeiras luzes: surgem as leis, inicialmente morais, depois jurídicas. Regras de conduta que reprimem os instintos, a barbárie, disciplinam as relações
interpessoais e, claro, protegem a propriedade. Tem início o processo civilizatório. Uma aventura errante, longa, inacabada. Uma história sem fim (BARROSO, 2015,
p. 27)

Na Antiguidade Clássica, os hebreus, principalmente, confiavam poderes aos profetas com a finalidade de fiscalizar ações dos soberanos, a fim de evitar atos que
ultrapassassem os limites bíblicos. Como se percebe, trata-se em verdade de outro tipo de regramento, onde sequer se imaginava que um dia poderia existir o que atualmente se
denomina constitucionalismo. Foi um longo período de inspiração divina e de produção jurídica artesanal.
Um dos primeiros regramentos de que se tem notícia é o Código de Hamurabi, criado entre 1792-50 a.C., pelo Sexto Rei Sumérico, Hammurabi. O Código foi talhado em
pedra negra e cilíndrica de diorito e nele se instituiu direitos que garantissem a propriedade, a vida e a honra, além de prever a Lei de Talião, que estabelecia a reciprocidade da
ofensa causada ao agressor, além de abordar temas como a supremacia das leis aos atos dos governantes.
A experiência das cidades-estados gregas, por sua vez, demonstra que a democracia direta constituía um dos poucos exemplos conhecidos de sistema político no qual havia
plena identidade entre governantes e governados, com um poder político igualmente distribuído entre os cidadãos
(LOEWENSTEIN, 1976), excluídos dessa concepção, obviamente, mulheres e escravos. É em Atenas, mais precisamente, que primeiro se identifica a “limitação do poder político
– governo de leis, e não de homens – e de participação dos cidadãos nos assuntos políticos” (BARROSO, 2015). Nesse período também se vislumbrou a superioridade das leis,
conforme estabelecido na Antígona, de Sófocles, ao estabelecer regras de conduta oponíveis a todas as pessoas, principalmente contra injustiças e determinações tirânicas.
Em Roma, importante conquista ocorre no que diz respeito ao que futuramente seriam chamados de direitos humanos ou fundamentais, inseridos nos textos de diversas
constituições dos Estados europeus. Nesse período, institui-se o início do princípio da legalidade e da proteção à propriedade, à liberdade, à igualdade a todos (romanos ou não)
– jus gentium – visando à limitação do poder estatal. A Lei das doze tábuas, feita em doze pedaços de madeira, foi, talvez, o principal documento que consagrou tais direitos
(MORAES, 2011), principalmente por eliminar pioneiramente as divisões de classe e a imposição de leis apenas aos plebeus. Aos escravos, entretanto, nenhum direito
era resguardado.
A Idade Média é marcada, pela doutrina, como um período de crise, no qual o poder dos governantes estava centrado na vontade divina, e a sociedade era organizada por
uma forte separação de classes (suseranos e vassalos). Ainda assim, o período dá espaço para a criação de diversos documentos voltados para a limitação do poder real. Segundo
esclarece Lenza (2010), a Magna Carta de João Sem Terra, de 1215, na Inglaterra, é um dos grandes marcos do constitucionalismo medieval, principalmente ao estabelecer a
proteção a importantes direitos individuais. Escrita em latim e de caráter elitista, ela estabeleceu proteção ao barão inglês contra abusos do monarca da Inglaterra, João Sem Terra,
e previu a liberdade da Igreja da Inglaterra, impôs restrições tributárias e estabeleceu a proporcionalidade entre o delito e a pena (MORAES, 2011). Ainda nesse período são
elaborados os pactos e forais ou cartas de franquia, documentos mediante os quais os soberanos permitiam a participação dos súditos na elaboração de poucos e ainda limitados
direitos individuais, dirigidos a uma pequena camada da população. Nas palavras de Ferreira Filho (2008), trata-se de acordos entre monarca e súditos relativos ao modo de
governo e às garantias de direitos individuais, tendo como fundamento o acordo de vontades.
Durante a Idade Moderna, são elaborados importantes documentos garantidores de direitos na Europa, principalmente na Inglaterra. Insta mencionar que, apesar de os pactos
e forais surgirem na Idade Média, também foram utilizados na Idade Moderna, a exemplo da Petition of Rights (FERREIRA FILHO, 2008).
Após a criação dos Estados Nacionais absolutistas, com influência do Renascimento e da Reforma Protestante, o baronato inglês, através do Parlamento, estabeleceu
novamente a proibição de o Rei cobrar impostos, salvo com a autorização do Parlamento (RAMOS, 2015). É criada, então, a Petition of Right, em 1628, com a principal
característica de limitar o poder, agora centralizado na figura do rei. Mais tarde, a Revolução Inglesa, em 1642, acaba por influenciar a regulamentação de chamados direitos
humanos, de modo que nesse período, mais especificamente em 1679, é elaborada o Habeas Corpus Act3, na Inglaterra, com o objetivo de forçar os tribunais a apreciarem
medidas judiciais de pessoas presas injustamente, pois até então ela só existia com base no common law. Ainda na Inglaterra, em 1689, é elaborada a Declaração Inglesa de
Direitos ou Bill of Rights4, cujo principal aspecto foi reduzir o poder real, ressaltando a vontade da lei sobre a do monarca, como, por exemplo, impedir a suspensão de leis ou atos
normativos pela vontade do rei, sem a concordância do Parlamento, garantir a liberdade de eleição e de expressão e prevenir que tribunais suspendam ou impeçam debates
parlamentares por qualquer tribunal (RAMOS, 2015). Ademais, Moraes (2011) enfatiza que a Declaração fortaleceu o princípio da legalidade, impedindo que o rei suspendesse a
execução de leis sem a manifestação do Parlamento, criou o direito de petição, a liberdade de eleição dos parlamentares, além de estabelecer imunidades parlamentares e impedir
penas cruéis. Depois da Revolução Gloriosa5, que também contribuiu para a elaboração do Habeas Corpus Act, é criado o Act of Settlement, em 1701, reafirmando o poder do
Parlamento e o limite às leis, salvaguardando-se os direitos dos súditos contra o retorno da imposição dos monarcas (RAMOS, 2015).

2. Conceito

Constitucionalismo é um movimento que atravessou um longo período da história até encontrar sua consagração no séc. XX, conjuntamente à expansão democrática
(CAGGIANO, 2011), sendo estabelecido como uma teoria e um movimento jurídico e político (FERREIRA FILHO, 2008), constituído a partir das revoluções liberais, tendo
como finalidade criar regimes constitucionais, representando governos moderados, com limitação dos seus poderes, sendo submetidos a Constituições escritas (FERREIRA
FILHO, 2008). Há, para Caggiano (2011), uma necessária imbricação com a democracia, o que não será abordado neste trabalho, por não ser sua finalidade precípua.
Diante de acontecimentos que serão tratados em tópicos específicos, o constitucionalismo, movimento e teoria datados com mais de duzentos anos (BARROSO, 2015),
especificamente com as revoluções liberais, representa o anseio social por limitação do poder político e garantia de direitos individuais, fundamentais ao homem, elementos
centrais do constitucionalismo. Nessa esteira, Moraes (2011) leciona que o nascimento formal do constitucionalismo está intimamente ligado às Constituições dos Estados Unidos
da América, de 1787, e da França, de 1791, oferecendo dois traços bem definidos: a organização do Estado e a limitação do poder estatal, através de direitos e garantias
fundamentais. Segundo Miranda (2002), ainda hoje as ordens constitucionais dos mais diversos países recorrem às matrizes do constitucionalismo britânico, norte-americano e
francês. Entretanto, o presente trabalho fixará sua atenção aos movimentos ocorridos apenas na Europa, deixando de abordar a influência norte-americana na construção desse
importante movimento constitucional.
Segundo Canotilho (1993), utilizando-se da expressão movimentos constitucionais, constitucionalismo é uma teoria ou ideologia que apresenta o princípio de um governo
limitado, indispensável e garantidor de direitos da organização de uma sociedade.
Vale dizer que a característica fundamental do constitucionalismo é a limitação do poder político, que, para Barroso (2015), se organiza em três ordens. Aprimeira delas é a
de cunho material, e estabelece proteção aos direitos individuais e valores básicos do homem, como a justiça, a solidariedade, a garantia das liberdades e a dignidade humana.
A segunda pauta-se na existência de uma estrutura orgânica, com entraves às funções de legislar, administrar e julgar, que devem ser atribuídas a órgãos distintos, mas que
mantenham relação de controle recíproco (checks and balances). A terceira e última limitação diz respeito aos aspectos processuais, a qual atribui ao poder político a observância
do devido processo legal, que consagra regras procedimentais, tais como o contraditório e a ampla defesa, a inviolabilidade do domicílio, dentre outras, como as de natureza
substantiva, ao estabelecer a racionalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade. Estas limitações encontram guarida no art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, o qual estabelece que uma sociedade só terá uma Constituição quando estejam asseguradas a garantia dos direitos e a separação dos poderes.

3. Constitucionalismo Inglês

Na metade do séc. X o reino da Inglaterra se unificara com diversos outros reinos anglo-saxões espalhados pelas ilhas britânicas, em 1066, são introduzidas instituições
feudais, e já no séc. XIII o Parlamento, composto por aristocratas, clérigos, representantes da baixa aristocracia e da burguesia urbana, começa a ganhar força. No final do séc.
XVI, a Inglaterra já se constituía como uma monarquia estável, liberal, estabelecida a partir da Reforma Protestante, com forte poder naval (BARROSO, 2015), cujo poder político
já se via limitado, embora não tivesse (como ainda não tem) uma constituição escrita como atualmente se concebe, ainda que antes da independência dos EUA e da elaboração da
Constituição dos Estados Unidos, França e Polônia (SARLET, 2015), no final do séc. XVIII. Nessa esteira, a Inglaterra prescindia de uma constituição escrita pelo fato de que o
país não precisou passar por uma ruptura revolucionária para que se consolidassem os direitos civis, além do que a Revolução Inglesa6 não se fez para fortalecer a Monarquia, mas
o Parlamento (GRIMM,1991 apud SARLET,2015).
De qualquer modo, o processo de constitucionalização na Inglaterra inicia-se com o desenvolvimento das instituições feudais, através do fortalecimento do poder político dos
barões, com a elaboração da Magna Charta Libertatum7, de 1215. Importante destacar que, ao contrário do que acontecia em outros países europeus, a burguesia e a nobreza
conviviam harmoniosamente no Parlamento, baseadas em interesses em grande parte comuns (GRIMM,1991 apud SARLET, 2015). Durante os conflitos entre rei e Parlamento,
em 1603, o absolutismo inglês se mostrou frágil, uma vez que não tinha exército permanente, burocracia organizada e manutenção financeira própria (BARROSO, 2015), até que
se cria, em 1628, a Petição de Direitos (Petition of Rights), cujo principal objetivo era limitar o poder do Rei Carlos I, que, devido aos seus abusos no poder, culmina no
estabelecimento de um exército pelo Parlamento e na batalha com as forças reais, desencadeando uma guerra civil (SARLET, 2015), vencida pelas forças do Parlamento. Esse
período de guerra civil inicia-se por um extenso quadro de tensão política e religiosa, resultando na implantação da República, de 1649 até 1658, comandada por Cromwell
(BARROSO, 2015).
Oliver Cromwell rompe com a monarquia e institui a república, dissolvendo o Parlamento e instalando uma espécie de ditadura republicana, além de criar o que primeiro se
entendeu por constituição escrita (SARLET, 2015), o Instrument of Government, que vigorou até a morte de Cromwell e o restabelecimento da monarquia e da Câmara dos
Lordes. Segundo Grimm (1991 apud SARLET, 2015), essa única espécie de Constituição inglesa escrita só ficou em vigor por pouco tempo em razão de o Parlamento, após a
morte de Cromwell, ter optado por restabelecer a Monarquia, dissolvida durante o recente período ditatorial por que o país tinha passado. Nesse momento, o Parlamento começa a
ganhar vigor, ao mesmo tempo em que o poder vai sendo limitado com a elaboração da Declaração de Direitos8 (Bill of Rights).
O momento mais importante do Modelo Westminster9 é atribuído ao período entre 1688 e 1689, quando se estabelece mudanças institucionais e políticas, como a
solidificação da supremacia do Parlamento em relação ao rei e a Câmara dos Comuns sobre a Câmara dos Lordes (SARLET, 2015). Importa destacar que o modelo constitucional
inglês se consolidou em profundas raízes que não precisou de uma Constituição escrita, em que pese a existência de documentos de natureza constitucional relevantes
(BARROSO, 2015), espalhando seus ideais, direta ou indiretamente, sobre todo o mundo.
No momento atual do séc. XXI, o poder no Reino Unido constitui-se em três grandes instituições, quais sejam o Parlamento, a Coroa e o Governo, sendo que “a supremacia
do Parlamento é o princípio constitucional maior, e não a supremacia da Constituição, como ocorre nos países que admitem o controle de constitucionalidade dos atos legislativos”
(BARROSO, 2015, p. 36).

O Parlamento é composto pela Câmara dos Lordes, cujos poderes foram sendo progressiva e substancialmente reduzidos desde 1822 e, especialmente, após
o ParliamentAct, de 1911; e a Câmara dos Comuns, principal casa legislativa e política. Os principais partidos políticos são o Trabalhista e o Conservador.
A Coroa,embora integre formalmente o Governo, desempenha na atualidade funções predominantemente cerimoniais e simbólicas. A própria nomeação do
Primeiro-Ministro e do Governo por ele constituído, que nominalmente cabe ao Monarca, constitui mera chancela ao líder do partido majoritário na Câmara dos
Comuns. O Governo, composto pelo Primeiro-Ministro e seu Gabinete, desempenha as funções políticas e administrativas (BARROSO, 2015, p. 36).
A Constituição, não escrita e produto da história, tem amparo nas convenções e leis constitucionais, sendo que aquelas são práticas solidificadas durante os séculos na
manutenção do poder político, acrescentando sua organização e distribuição de competências (BARROSO, 2015), principalmente na atuação do Primeiro-Ministro, do Gabinete e
do Monarca, ao passo que as leis constitucionais são emanadas do Parlamento, tendo natureza constitucional em razão do seu conteúdo político e relativos aos direitos
fundamentais (BARROSO, 2015).

Precisamente por não se materializar em um texto escrito, a Constituição inglesa tem natureza flexível, podendo ser modificada por ato do Parlamento. Tal flexibilidade
decorre, como já registrado, do princípio da supremacia parlamentar, conceito-base da denominada democracia de Westminster (BARROSO, 2015, p.37).

Por fim, o direito inglês realizou duas importantes reformas no sistema constitucional, com a criação do Human Rights Act, em 1998, que inseriu em seu ordenamento
direitos previstos na Convenção Europeia de Direito Humanos, e o Constitutional Reform Act, de 2005, que alterou o Poder Judiciário inglês, para criar um Corte Constitucional e
dar autonomia ao Parlamento.

4. Constitucionalismo Francês

O atual território francês foi marcado por muitas disputas, sendo que dentre elas destacam-se as conquistas dos gauleses, as invasões bárbaras, que resultaram nos três reinos
dos visigodos, dos burgúndios e dos francos, a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra, e os sangrentos conflitos entre católicos e protestantes, até culminar nos reinados
absolutistas de Luís III, IV e V. No entanto, modernamente, o conflito de maior simbolismo para o país é a Revolução Francesa, que dá o verdadeiro sentido de revolução, com a
ruptura do antigo e a imposição de um novo curso da história (BARROSO, 2015).

Olhada a distância, depurada do aparente fracasso e de sua circularidade, foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a face
do Estado – convertido de absolutista em liberal – e da sociedade, não mais feudal e aristocrática, mas burguesa. Mais que isso: em meio aos acontecimentos, o povo
torna-se, tardiamente, agente de sua própria história. Não ainda como protagonista, já que a hora era da burguesia. Mas quando, na noite de 14 de julho de 1789, a
multidão sem controle marchou pelas ruas de Paris, então capital do mundo civilizado, e derrubou a Bastilha, os pobres e deserdados saíram pela primeira vez da
escuridão dos tempos. Daí para frente, passariam cada vez mais a desafiar a crença de que a miséria é destino e não consequência da exploração e dos privilégios das
classes dominantes (BARROSO, 2015, p. 49).

A Revolução Francesa influenciou de forma direta a mudança constitucional dos países europeus, e não só na França, principalmente por legar a Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão10, de 1789, que em seu art. 16 estabelece a separação dos poderes e a garantia de direitos fundamentais, e que serviu de marco para uma vasta gama de
documentos jurídicos que seriam elaborados pelos países europeus. Em outras palavras, é ela que inicia o constitucionalismo naEuropa.
Em 5 de maio de 1789, o Rei Luís XVI convoca uma Assembleia, que teve como função principal discutir a necessidade de elaboração da primeira constituição francesa,
posteriormente criada em 1791. Nesta Assembleia reuniram-se o clero, a nobreza e o povo, chamado então de Terceiro Estado11. A pressão exercida pelo povo resulta na
convocação de uma Assembleia Constituinte12, em 17 de junho de 1789, que elege um comitê para elaboração do projeto de constituição. Entretanto, o movimento toma força,
deixa de lado o projeto constitucional e elabora, em 26 de outubro de 1789, a Declaração de Direitos, que consagraria as liberdades civis almejadas pelo povo, como o direito à
propriedade, segurança e liberdade, além da própria concepção de constituição, conforme já citado art. 16. Com isso, o novo modelo rompe com o ancien regime, impõe nova
ordem estatal e social e extingue os privilégios da aristocracia (SARLET, 2015), além de instituir uma monarquia parlamentar e constitucional, onde o rei não mais era soberano
por direito próprio, passando à figura de delegado da nação (BARROSO, 2015).
Durante o período de 1792 a 1800, a França passaria por um período de forte instabilidade, ante os conflitos com as monarquias europeias. Em 1792, a Assembleia Nacional
é dissolvida e criada uma Convenção, que mais tarde elaboraria a Constituição de 179313 e governaria o país até 179514. Em seguida, findo o terror por que passara o país,
tenta-se, sem sucesso, instaurar uma espécie de republicanismo moderado, através do governo formado por um Diretório, composto por cinco membros. Ante a fragilidade deste
Diretório, o exército, comandado pelo general Napoleão Bonaparte, aplica o golpe de Estado denominado 18 de Brumário, que inicia a era napoleônica, na qual ele passa a exercer
o poder como cônsul, ditador e imperador (BARROSO, 2015), até que, em 1814, é abdicado do trono. Nesse período, a França e a Europa passavam por intensas modificações,
com o fim do antigo regime, e no que diz respeito ao constitucionalismo:

[...] consolidaram-se valores como o sufrágio universal, a soberania popular, a separação de Poderes, a proteção dos direitos individuais, com ênfase nas liberdades
públicas, na igualdade formal e na propriedade privada. Consumava-se a conquista do Estado pela burguesia, que conduzira o processo revolucionário do primeiro ao
último ano, salvo durante o breve intervalo jacobino. Com o Estado liberal burguês, o poder econômico e o poder político celebravam sua aliança definitiva, até aqui
inabalada (BARROSO, 2015, p. 52)

Importante para a história do constitucionalismo francês foi a Constituição de 1875, que instituiu a Terceira República, em vigor até 1940, com a ocupação da França pelos
alemães. Em 1946, já com o fim da Segunda Guerra Mundial, é elaborada uma nova Constituição e criada a Quarta República, na qual o Presidente era eleito indiretamente e não
tinha poderes essenciais e efetivos (BARROSO, 2015). Essa nova Constituição não foi bem aceita, e o general Charles De Gaulle lidera o movimento que criaria, em 04 de
outubro de 1958, a atual Constituição francesa, ampliando os poderes do Presidente. O período denominado Quinta República institui o modelo semipresidencialista, “fundado na
soberania popular, na separação dos Poderes e nos direitos individuais, tal como inscritos na Declaração de 1789 e complementados pelo Preâmbulo da Constituição de 1946”
(BARROSO, 2015). Ao longo de sua história, a Constituição foi por diversas vezes emendadas, e, dentre outras, em 1992 seu texto é alterado para registrar a entrada da França na
União Europeia.
Pela atual Constituição da França, o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro, sendo que o Presidente é o chefe de Estado, eleito
por sufrágio direto e universal, por maioria absoluta, para um mandato de sete anos, cujas competências são a “nomeação do Primeiro-Ministro, a presidência do Conselho de
Ministros, a possibilidade de dissolução da Assembleia Nacional, o comando das Forças Armadas e a negociação de tratados” (BARROSO, 2015), ao passo que o
Primeiro-Ministro é o chefe de governo e da administração, responsável perante o Parlamento, cujas atribuições são “competência para formular a política nacional, propor
projetos de lei, dar cumprimento às leis, exercer o poder regulamentar e nomear agentes públicos civis e militares” (BARROSO, 2015).
O Poder Legislativo é exercido pelo Parlamento, responsável por votar as leis do país, conforme art. 34 da Constituição, composto pela Assembleia Nacional e Senado,
sendo que, atualmente, a Assembleia Nacional, que detém maior representativa entre as duas casas, é composta por 577 deputados, eleitos diretamente, para um mandato de cinco
anos, e cujas funções principais são dar a última palavra no processo legislativo e promover a responsabilização política do governo; o Senado, por sua vez, é composto por 521
senadores, eleitos indiretamente, para um mandato de nove anos, e representam as coletividades territoriais (BARROSO,2015).
O Poder Judiciário15, no entanto, recebeu pouca atenção na Constituição de 1958, que o estabelece “mais como um departamento especializado do que como um verdadeiro
Poder” (BARROSO, 2015), cujas duas ordens de jurisdição são a judicial, com a Corte de Cassação, e a administrativa, “em cujo topo está o Conselho de Estado, com atribuição
de julgar, em última instância, os litígios entre os particulares e o Estado ou qualquer outra pessoa pública” (BARROSO,2015).
Diferentemente de outros países, o constitucionalismo francês apresenta duas instituições com características e funções especializadas: o Conselho de Estado e o
Conselho Constitucional.

O Conselho de Estado existe desde a Constituição do ano VIII (1799) e desempenha, sob a Constituição de 1958, um duplo papel: a) é a mais alta instância da
jurisdição administrativa, [...]; b) é o mais alto órgão consultivo do governo. No desempenho de sua atividade de órgão do contencioso administrativo, cabe ao
Conselho julgar a conformidade dos regulamentos à lei, aos princípios gerais do direito e à Constituição. Em sua atividade consultiva – que é a única prevista
constitucionalmente –, cabe ao Conselho manifestar-se previamente acerca de projetos de lei, medidas provisórias (ordonnances) e decretos regulamentares que
interfiram com textos de caráter legislativo. Os pareceres do Conselho de Estado não são vinculantes, mas gozam de elevada respeitabilidade. Quanto ao Conselho
Constitucional, deve-se fazer uma observação prévia. Na França, jamais se admitiu o controle de constitucionalidade das leis nos moldes norte-americano ou
continental europeu. Sob a Constituição de 1958, todavia, passou a existir um procedimento específico, prévio e preventivo, de verificação da conformidade dos atos
legislativos com a Constituição, levado a efeito perante o Conselho Constitucional.
O Conselho Constitucional exerce competências de órgão eleitoral e de juiz constitucional (jugeconstitutionnel), ao qual devem obrigatoriamente ser submetidas as leis
orgânicas e os regimentos das assembleias parlamentares (BARROSO, 2015, p. 55).

Por fim, em 23 de julho de 2008, é realizada uma reforma constitucional na França, mediante a Lei Constitucional nº 2008-724, denominada Lei de Modernização das
Instituições da V República, que insere um novo modelo de fiscalização da constitucionalidade das leis, após sua promulgação e vigência, em conformidade com os tribunais
constitucionais europeus.

5. Constitucionalismo alemão
O constitucionalismo só aparece na história do país após a unificação comandada pela Prússia, em 1817, quando então se percebe a necessidade uma constituição que
limitaria o poder político.
Em que pese a influência da Revolução de 1848/1849 e da Constituição da Igreja de São Paulo (Paulskirchenverfassung), que previa diversos direitos fundamentais,
sucedida pela unificação político-territorial e formação do primeiro Reich, que teve sua própria Constituição, em 1871, somente após a Primeira Guerra Mundial permitiu-se a
promulgação da primeira Constituição Democrática do país, até o advento da Lei Fundamental de 1949 (SARLET, 2015), denominada Constituição da República de Weimar16,
de 1919, que serve como modelo de constitucionalismo democrático e social até hoje, para os Estados contemporâneos (SARLET, 2015). Vale salientar que a Constituição de
Weimar foi elaborada em um período de forte turbulência, influenciada por diversas ideologias, de modo que se procurou conciliar em seu texto os mais variados interesses
políticos da época (BARROSO, 2015). Ela foi estruturada em duas grandes partes, sendo que na primeira tratava-se, basicamente, da organização do Estado, ao passo que na
segunda parte estabeleciam-se os direitos fundamentais.

A Constituição de Weimar, por um lado, positivava a igualdade perante a lei (art. 109), a liberdade de locomoção (art. 111), o direito das minorias linguísticas (art.113),
a garantia da legalidade (art. 114), a inviolabilidade do domicílio (art. 115), a irretroatividade da lei penal (art. 116), a inviolabilidade da correspondência e das
comunicações telegráficas e telefônicas (art. 117) e a liberdade de expressão (art. 118). Por outro lado, a Constituição positivava também a proteção à família e à
maternidade (art. 119), a liberdade de reunião (art. 123), o acesso gratuito à arte, à ciência e à educação (art. 142), a prestação de educação pública para os jovens
(art.143), a obrigatoriedade da educação básica (art. 145). Além disso, determinava que a economia deveria ser “organizada sobre os princípios da justiça”, com o
propósito de realizar a “dignidade para todos” (art. 151); instituía a função social da propriedade, utilizando a famosa expressão “a propriedade obriga” (art. 153); e
estabelecia direitos trabalhistas (arts. 157-165) e previdenciários (art. 161) (BARROSO, 2015, p. 59)

Entretanto, com os resultados da Primeira Guerra Mundial e a tomada do poder por Adolf Hitler, a Constituição perde sua eficácia, e, em março de 1933, o governo publica a
lei de autorização (Ermächtigungsgesetz), autorizando-o a editar leis contrárias à própria Constituição.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e os julgamentos de Nuremberg, é promulgada, em 23 de maio de 1949, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha,
reafirmando os valores democráticos, os direitos fundamentais, focada nos clássicos direitos de liberdade (inviolabilidade corporal, liberdade de locomoção, expressão e
consciência), dentre outros (BARROSO, 2015), além do art. 1º que estabeleceu a inviolabilidade da dignidade humana. Não obstante estas previsões, o reconhecimento dos
direitos sociais, ainda que não expressos claramente na Constituição, ocorre através do liame entre concepção de Estado Social, eficácia irradiante dos direitos fundamentais e
teoria dos deveres de proteção do Estado (BARROSO, 2015).
Como atual Constituição da Alemanha, a Lei Fundamental adotou a forma federativa de Estado, dividindo-o em quinze estados-membros, com duas cidades-Estados, sendo
elas Berlim e Hamburgo (BARROSO, 2015), e prevê as competências privativa e concorrente, modelo que influenciou a Constituição brasileira de 1988.Ao contrário do modelo
inglês, na Alemanha a supremacia é da constituição, que estabelece a separação de poderes e adota a forma e o sistema de governo de República Parlamentar.
O Poder Legislativo é composto por duas câmaras, sendo o Parlamento Federal (Bundestag) o representante do povo, com cerca de 600 membros eleitos por voto direto, e o
Conselho Federal (Bundesrat), que representa os Estados, cujos representantes são nomeados pelos governos estaduais e à proporção da população de cada Estado.
O Poder Executivo é dividido entre o Presidente da República e o Governo Federal. O Presidente é eleito pela Assembleia Nacional17, para um mandato de cinco anos, e
exerce as funções comuns de Chefe de Estado. O Governo Federal, por sua vez, é “composto pelo Primeiro-Ministro ou Chanceler (Bundeskanzler) e pelos ministros do seu
gabinete, nomeados e destituídos pelo Presidente mediante proposta do Chanceler” (BARROSO, 2015, p. 62). O Governo Federal tem como função conduzir a política interna
da Alemanha.
O Poder Judiciário é regulamentado a partir do art. 92 da Lei Fundamental, sendo composto por juízes independentes, submetidos apenas à lei, conforme art.97 da Lei
Fundamental, e por cinco tribunais: Tribunal Federal (Bundesgerichtshof), Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht), Tribunal Federal Financeiro
(Bundesfinanzhof), Tribunal Federal Trabalhista (Bundesarbeitsgericht) e Tribunal Federal Social (Bundessozialgericht). Além disso, a administração dos órgãos que compõem o
Judiciário é exercida pelo Ministério da Justiça
REFERÊNCIAS

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Pós-Graduação da Faculdade de Direito de USP, São Paulo, n. 1, 2011.

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.

CARVALHO, K. G. Direito Constitucional: teoria do Estado e da Constituição: direito constitucional positivo. 14. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 2008.

FERREIRA FILHO, M. G. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.

GRIMM, D. Die Zukunft der Verfassung. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1991.

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MORAES, A. de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1. a 5. da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed.
São Paulo: Atlas, 2011.

RAMOS, A. de C. Curso de direitos humanos. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015.

SARLET, I.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional. 4. ed. ampl., incluindo novo capítulo sobre princípios fundamentais. São Paulo:
Saraiva, 2015.

Notas de Rodapé
1 Advogado, com Curso de Extensão em Mediação e Arbitragem e Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
2 Advogado, Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campus Campinas, Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Direito Político e
Econômico e Doutorando em Direito Político e Econômico, todos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
3 Lei do Parlamento, aprovada pelo rei Charles II.
4 É uma declaração de direitos pequena, não muito extensa.
5 Revolução ocorrida na Inglaterra, entre 1688 e 1689, que depôs o rei Jaime II, sendo substituído por sua filha Maria e por seu genro, Guilherme (Deyvid de
Orange).
6 Ocorrida no séc. XVII, a revolução representou a primeira manifestação de crise do absolutismo da época moderna, iniciando-se com a Revolução Puritana de
1640 até encerrar-se com a Revolução Gloriosa, em 1688. O poder monárquico, severamente limitado, cedeu a maior parte de suas prerrogativas ao
Parlamento e instaurou-se o regime parlamentarista que permanece até hoje.
7 Documento histórico que resguardava os direitos feudais dos barões, principalmente o direito à liberdade e à propriedade, vindo a assumir um caráter de carta
geral de liberdades públicas somente mais tarde.
8 Ela foi estabelecida entre a Coroa e o Parlamento, como resultando na permanência dos conservadores direitos ingleses.
9 Modelo de democracia inglesa, que recebeu esse nome por ter a sede do Parlamento no Palácio de Westminster.
10 Documento jurídico contrário aos privilégios da nobreza e da sociedade hierarquizada, ainda que não se representasse de fato os anseios de uma sociedade
democrática e igualitária, mas que representava os ideais liberais da burguesia.
11 O Terceiro Estado era composto por camponeses, trabalhadores urbanos e pela burguesia.
12 Ao contrário do modelo norte-americano, a Assembleia Constituinte francesa rompe com o passado e institui uma nova ordem estatal e social.
13 Constituição do ano I.
14 Ano de elaboração da Constituição do ano III.
15 A Constituição refere-se a l´autoritéjudiciaire.
16 Ela vigorou apenas até 1933, quando a Alemanha já se encontrava sob a ditadura de Hitler.
17 A Assembleia Nacional, composta pelos membros do Parlamento Federal, é organizada apenas para o fim de eleger o Presidente da República.
18 Possui graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal.
Pós-Graduação lato sensu em Direitos Fundamentais realizada no IBCCRIM, em conjunto com a Universidade de Coimbra (2016). Especialização em
Compliance no INSPER/SP (2016). Pós-Graduação lato sensu em Direito Constitucional realizada na PUC/SP (2017). Mestrando em Direito Político e
Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (conclusão prevista para o primeiro semestre de 2019).
19 Diz-se pelo menos em tese, pois em muitos casos as regras que limitavam o poder do Estado não eram efetivamente aplicadas. Acerca desta problemática,
vale transcrever os ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Em muitos casos o êxito do constitucionalismo não foi além das aparências,
fornecendo roupagem brilhante para vestir uma realidade adversa” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 7).
20 MALUF, Sahid. Direito Constitucional (conforme a Constituição Federal de 1967). 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Sugestões Literárias S/A, 1968. p. 40.
21 Acerca de um marco característico do constitucionalismo francês, cumpre salientar a rigidez do princípio da separação de poderes e sua relação com o Poder
Judiciário, que tem característica peculiar. Conforme preconiza Luís Roberto Barroso: “Na França, desde a Revolução, levou-se às últimas consequên-
cias a ideia de separação dos Poderes no tocante ao Judiciário, objeto de desconfianças históricas. A ele sempre foi vetado apreciar atos do Parlamento ou
do governo. Foram criadas, assim, duas ordens de jurisdição totalmente distintas: a) a jurisdição judicial, em cuja cúpula está a Corte de Cassação; e b) a
jurisdição administrativa, em cujo topo está o Conselho de Estado, com atribuição de julgar, em última instância, os litígios entre os particulares e o Estado
ou qualquer outra pessoa pública” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção
do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 54-55).
22 Sobre constitucionalismo inglês, Paulino Jacques afirma que: “Apesar de habitada desde 500 a.C., só com a conquista normanda (franca, francesa), sob
GUILHERME I (1066-1087), foi que a Inglaterra assentou os marcos de uma future organização política. ” Ainda, referido autor identifica os ensinamentos
que a Constituição inglesa trouxe aos continentes europeu e americano: “A Constituição inglesa, peculiar ao povo britânico, ensinou aos povos da Europa e
da América que, ao lado de leis escritas institucionais, podem atuar costumes e os precedentes políticos, integrando a estruturação do Estado com a
mesma eficiência que os códigos fundamentais” (JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revista
Forense, 1958. p. 43 e 52, respectivamente).
23 Sobre o a Constituição americana, diferente em muitos aspectos da brasileira especialmente, mas não somente, em razão do sistema jurídico estar fundado
no common law, Luís Roberto Barroso afirma que passados: “Mais de duzentos anos após sua entrada em vigor, a Constituição americana ainda conserva
sete artigos apenas, tendo sofrido o número reduzido de vinte e sete emendas ao lodo deste período. Nela institucionalizou-se, de forma pioneira e
duradoura, um modelo de separação nítida entre Executivo, Legislativo e Judiciário, em um Estado republicano e sob o sistema presidencialista”
(BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2015. p. 29).
Por sua vez, sobre a influência da Constituição americana na América Latina, Paulino Jacques assevera que: “Foi na América Latina (central e meridional) que a
influência das instituições norte-americanas mais se fez sentir, a começar pela independência e republicanização das colônias hispano-americanas e a
terminar com a adoção do regime das Constituições escritas e rígidas” (JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Revista Forense, 1958. p. 65, respectivamente).
24 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 7.
25 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 1.
26 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 29.
27 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 27.
28 O autor aponta como atributos três tipos de limitações do poder: materiais (valores mínimos de proteção ao ser humano e direitos fundamentais), estrutura
orgânica (separação dos poderes e aplicação do princípio chamado de checks and balances) e processuais (aqueles que exercem o poder devem agir não
só de acordo com a lei, mas também observar o devido processo legal, que tem o viés procedimental e o substantivo (BARROSO, Luís Roberto. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 29-30).

2. O NEOCONSTITUCIONALISMO E A EFETIVAÇÃO PRÁTICA DA CIÊNCIA DO DIREITO

Gabriel Druda Deveikis18

1. Constitucionalismo: evolução histórica e conceito

Uma ótica viável de se analisar o constitucionalismo é abordar o termo como uma dinâmica constitucional, ou melhor, como uma etapa do Direito Constitucional, suscetível
à evolução, mas não à supressão.
Então, é válido afirmar que o neoconstitucionalismo e o constitucionalismo multinível surgem, como uma nova etapa do constitucionalismo (um passo além).
Ao se dizer evolução, mostra-se necessário ressaltar que as características inerentes a cada conceito perduram ao longo do tempo, ou seja, o neoconstitucionalismo abarca as
características definidoras do constitucionalismo, mas vai um pouco adiante, trazendo as necessidades e vontades atuais da sociedade quanto à ideia de Constituição.
Em outras palavras, cada termo representa os anseios das sociedades em determinado momento da história, sendo que as vontades passam a ser representadas em regras
constitucionais (precisamente, Constituições; escritas ou não).
E é justamente por todos os termos estarem interligados e serem dependentes entre si que um completo entendimento do que vem ser constitucionalismo multinível esbarra
no domínio do que é o constitucionalismo e o neoconstitucionalismo.
Pois bem: Especificamente acerca do constitucionalismo, é pacífico o entendimento de que surgiu a partir do momento em que a sociedade entendeu ser necessário limitar o
poder autoritário de quem estava no poder.
Tal vontade de limitar o poder estatal foi identificada pela primeira vez por Karl Loewenstein já na Antiguidade clássica. O autor considerou se tratar de constitucionalismo
o poder concedido aos profetas de fiscalizar os atos dos governantes que pudessem vir a extrapolar o disposto na bíblia. Por isso não se diz que o constitucionalismo surgiu como
uma forma de limitar o poder estatal, uma vez que sequer havia Estado.
Na Idade Média, a Magna Carta de 1215 é o marco do constitucionalismo de tal época, isso porque estabeleceu de maneira formal limites ao poder do governante por meio
da previsão de direitos individuais.
Por sua vez, na Idade Moderna, é possível citar diversos instrumentos jurídicos que surgiram como forma de limitar o poder do Estado: Petition of Rigths, de 1628; Habeas
Corpus Act, de 1679; Bill of Rigths, de 1689; e o Act of Settlement, de 1701.
De certa maneira, todos os instrumentos citados no parágrafo anterior podem ser vistos como pactos que previam direitos individuais, limitando, assim, o poder do
governante (pelo menos em tese19).
Ademais, também é importante lembrar dos forais ou cartas de franquia, igualmente voltados, assim como os pactos, para a proteção de direitos individuais. Aqueles
diferenciam-se desses, pois permitem que os súditos participem do governo local.
Observe-se que todos esses instrumentos citados até o presente momento previam direitos individuais como uma forma de limitar o poder do Estado. Contudo, não havia
universalidade, ou seja, direcionavam-se somente a determinados indivíduos, o que demonstra como era a época em que estavam inseridos: coberta de privilégios a certas classes
(uma das razões pelas quais se buscava mais direitos e igualdade).
Isso não quer dizer que todos esses instrumentos não tiveram sua importância, uma vez que serviram de ponto de partida para o que hoje se conhece como Estado
Democrático de Direito.
Aprofundando-se no aspecto brasileiro, vale transcrever os ensinamentos de Sahid Maluf sobre o constitucionalismo no Brasil:

O constitucionalismo, no Brasil, surgiu concomitantemente com a independência. Ainda não havia sido declarada oficialmente a nossa emancipação e já o
príncipe-regente, D. Pedro I, atendendo à representação do Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias, redigida por Gonçalves Ledo, decretara, a 3 de junho de
1822, a convocação de uma Assembleia Constituinte e Legislativa que deveria elaborar o código fundamental do Império20.
A partir dessa breve introdução histórica, necessária e suficiente para a conceituação do que é o constitucionalismo, já é possível constatar o que significa referido termo:
limitação do poder de autoridades (em última análise, do poder estatal) a partir de regras, escritas ou não, que dispõem sobre a prevalência dedireitos.
Fala-se em conceito pacífico, mas não dominante, tendo em vista que cada autor, apesar de sustentar que o constitucionalismo tem as características supracitadas em
qualquer lugar que tenha surgido, apresenta contornos próprios ao termo.
Nesse sentido, José Joaquim Gomes Canotilho não ataca a conceituação supracitada, inclusive adotando-a, mas prefere falar em “movimentos constitucionais”, o que
corrobora a ideia exposta no início do presente Capítulo, qual seja: os “movimentos constitucionais” são complementares e em nenhum momento podem ser vistos como
suprimidos pelo ideal posterior.
A opção de José Joaquim Gomes Canotilho por tal termo se deu em razão do autor entender que cada Estado (cada sociedade) tem um constitucionalismo com características
próprias (a despeito de carregar as características inerentes a todos os movimentos, que, em suma, é a limitação do poder).
Trata-se de uma leitura importante, pois o autor enxerga que no seio de cada meio social há semelhanças e diferenças. Sendo o constitucionalismo uma cria dos anseios
sociais, não haveria como ser idêntico em todas as suas formas.
Assim, José Joaquim Gomes Canotilho cita três “movimentos constitucionalistas” marcantes: francês21, inglês22 e americano23.
Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho adota o conceito tradicional de constitucionalismo, fazendo uma ressalva quanto à efetividade das regras que limitam o
poder estatal:

Esse conceito polêmico é que alimenta o movimento político e jurídico, chamado constitucionalismo. Esse visa estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer
dizer, governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas.
[...]
Por outro lado, esse regime depende da existência de uma opinião pública ativa e informada e esta depende de um certo grau de lazer, instrução, riqueza, que só num
certo grau de desenvolvimento pode um Estado alcançar. De um modo geral, os povos mais ricos tendem a ser os mais livres e o enriquecimento geral propicia a
reivindicação de liberdade maior24.

Seguindo a mesma linha de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Alexandre de Moraes também adota o conceito tradicional de constitucionalismo, ao passo que destaca dois
aspectos, dificilmente citados por outros autores constitucionalistas.
Para Alexandre de Moraes, o constitucionalismo é, de fato, marcado pela limitação do poder de autoridades por meio da previsão de direitos fundamentais, entretanto, o
autor enfatiza que não se pode esquecer que regras de organização do Estado e a previsão de garantias fundamentais também englobam o referido termo (observe-se que a
conceituação tradicional apenas aponta limitação do Estado por meio de direitos fundamentais).

A origem formal do constitucionalismo está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a Independência das 13 Colônias,
e da França, em 1791, a partir da Revolução Francesa, apresentando dois traços marcantes: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio da previsão
de direitos e garantais fundamentais25.

Em um primeiro momento, a conceituação proposta por Alexandre de Moraes pode parecer idêntica a dos demais autores, mas chamar a atenção para o fato de que garantias
fundamentais e regras de organização do Estado também fizeram parte do início do constitucionalismo é de extrema importância, tendo em vista que denota que a sociedade
humana, há muito tempo, entende que a efetividade da limitação do poder das autoridades depende de garantias que façam valer os direitos previstos, bem como da previsão de
organização do Estado (é uma visão, ainda que tímida, no sentido de que os direitos devem ter concretude, aplicação prática, o que é tratado a fundo pelo ideal neoconstitucional,
que surge após o constitucionalismo).
Inclusive, a definição de constitucionalismo proposta por Alexandre de Moraes vai de encontro à realidade apresentada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, citada
anteriormente: em muitos casos, o constitucionalismo apenas se apresentou de maneira formal, mas nunca com suas disposições exercidas na prática.
Ainda, vale trazer a visão de Luís Roberto Barroso acerca do tema, para o qual a definição de constitucionalismo é a seguinte:

Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de Direito, rule of law, Rechtsstaat). O nome sugere, de modo explícito, a
existência de uma constituição, mas a associação nem sempre é necessária e verdadeira. Há pelo menos um caso notório em que o ideal constitucionalista está presente
independentemente de Constituição escrita – o do Reino Unido – e outros, muito mais numerosos, em que ele passa longe, apesar da vigência formal e solene de Cartas
escritas. Exemplo inequívoco é o fornecido pelas múltiplas ditaduras latino-americanas dos últimos quarenta anos. Não basta, portanto, a existência de uma ordem
jurídica qualquer. É preciso que ela seja dotada de determinados atributos e que tenha legitimidade, a adesão voluntária e espontânea de seus destinatários26.

Frente ao conceito de constitucionalismo trazido por Luís Roberto Barroso, é possível concluir que para o autor, o “ideal constitucional”27, ou seja, a limitação do poder do
Estado e prevalência da lei, depende de certos atributos28 e, especialmente, da legitimidade, que o autor chama de “[...] adequação voluntária e espontânea de seus
destinatários”29.
Enquanto que Alexandre de Moraes ressalta a necessidade de garantias fundamentais e regras de organização do Estado para a aplicabilidade fática do constitucionalismo,
Luís Roberto Barroso aponta que a legitimidade é indispensável.
Assim, referido autor, acertadamente, valoriza a importância da pessoa humana (da sociedade) na construção de um Estado mais justo.
De fato, não há que se falar em constitucionalismo se não houver o apoio da sociedade a qual as regras estão direcionadas. Seria até uma contradição admitir a possibilidade
de efetividade e longevidade de determinado constitucionalismo (inglês, brasileiro, americano etc.) sem a participação consciente e voluntária de quem criou a regra de caráter
constitucional (a própria sociedade é a criadora, a fomentadora e a destinatária final do constitucionalismo).
Antes de concluir, cumpre diferenciar constitucionalismo de democracia, tendo em vista que quando se trata da legitimidade como condição indispensável à efetividade
daquele, pode surgir uma confusão conceitual, problema esse também enfrentado por Luís Roberto Barroso:

Constitucionalismo e democracia são conceitos que se aproximam, frequentemente se superpõem, mas que não se confundem. Eventualmente, pode haver até mesmo
tensão entre eles. Constitucionalismo traduz [...] limitação do poder e Estado de Direito. Democracia identifica [...] soberania popular e governo da maioria30.

A democracia é outra condição indispensável ao constitucionalismo, pois representa a participação permanente e consciente, direta ou indireta, do povo na organização e
deliberação políticas do Estado. Em outras palavras, onde o povo não pode se manifestar e participar das decisões, não há que se falar em limitação do poder do Estado, uma das
características básicas do constitucionalismo.
Afinal, analisando-se historicamente o constitucionalismo, bem como os diferentes contornos dados pelos mais variados doutrinadores quando de sua conceituação, pode-se
chegar à seguinte definição (atual): a) trata-se de um posicionamento de certa sociedade frente ao poder, estatal ou não, b) visando limitá-lo por meio da previsão de direitos
fundamentais, de garantias fundamentais e de regras mínimas que visam organizá-lo, c) bem como havendo a necessidade de que se faça presente a democracia e a vontade (de
nenhuma maneira destorcida) consciente e voluntária do povo (criador e destinatário) de fazer valer as regrascriadas.
Frente a tudo o que foi exposto, resta claro que o constitucionalismo é um marco para o Direito Constitucional, pois se trata do ponto de partida para a limitação do poder: de
início, o poder de pessoas foi limitado, sendo que somente depois foi possível constatar a limitação do poder do Estado (como apontando anteriormente, a origem do
constitucionalismo é remota).
Além do mais, o movimento constitucional denominado como constitucionalismo é mais do que uma questão eminentemente doutrinária, ou melhor, intrinsecamente
relacionada à ciência jurídica, sendo possível perceber a sua inevitável importância para a adoção de uma nova concepção de relação da sociedade para com o poder constituído,
sendo que esse passou a ser visto como necessariamente regulado e limitado às vontades e anseios daquela.
O constitucionalismo caracteriza o rompimento de uma relação exclusivamente autoritária de poder para uma relação na qual o meio social é visto como o verdadeiro
detentor dos meios coercitivos, apenas delegando tal função.
A importância é inegável, sendo que a realidade democrática a qual o mundo está inserido nos dias de hoje é indissociável à existência do constitucionalismo.

2. Neoconstitucionalismo e o problema da aplicabilidade fática das regras constitucionais: o descompasso da ciência jurídica para com realidade social

A partir do início do século XXI, a doutrina passa a analisar que o constitucionalismo necessita de uma nova abordagem, identificando um novo campo de interpretação31.
Frise-se que a ideia do constitucionalismo já estava estabelecida nos seios social e político, sendo um marco na história do Direito Constitucional e na própria sociedade,
além de representar o rompimento do poder autoritário e a consequente abertura para um viés mais democrático.
Ocorre que, com o passar do tempo, percebeu-se que muitas das regras constitucionais tinham caráter meramente formal e retórico, padecendo de aplicabilidade fática.
Essa ausência de efetividade prática das regras constitucionais (escritas ou não) saltou aos olhos da doutrina, que enxergou uma incongruência: não basta a mera previsão de
regras constitucionais se essas não são dotadas da respectiva aplicabilidade. Assim, a essa necessidade do exercício prático de regras constitucionais (concretização de direitos) foi
dado o nome de neoconstitucionalismo.
Seguindo a linha de pensamento proposta pela doutrina, Ana Paula de Barcellos entende o neoconstitucionalismo da seguinte maneira:
[...] passagem, do teórico ao concreto, de feérica, instável e em muitas ocasiões inacabada construção de instrumentos por meio dos quais se poderá transformar os
ideais da normatividade, superioridade e centralidade da Constituição em técnica dogmaticamente consistente e utilizável na prática32.

Essa nova abordagem do constitucionalismo, chamada por Ana Paula de Barcellos de “constitucionalismo contemporâneo”33 (ao invés de neoconstitucionalismo), implica
em vários fatores que modificaram e modificam o Direito Constitucional, como se verá adiante.
Em primeiro lugar, a Constituição e todas as regras constitucionais passam a ser o centro do sistema jurídico.
Antes, quando do constitucionalismo, a preocupação era a de que o Estado observasse os ditames constitucionais, apenas atuando de maneira a respeitar os limites impostos.
Agora, não se aceita somente a irrestrita observância, mas também se exige a efetivação prática do conteúdo valorativo que toda regra constitucional carrega.
Ainda, a centralidade implica que toda a atuação estatal esteja norteada (pautada) nos ditames constitucionais. Não só isso, todos os ramos do Direito também dever ser
interpretados a partir do que dispõe a Constituição (trata-se da chamada constitucionalização do Direito).
Ademais, passa-se a entender que toda regra constitucional também é uma regra jurídica, dotada, então, de imperatividade e superioridade. Isso quer dizer que começa a se
enxergar uma força normativa na regra constitucional.
Observe-se que o reconhecimento de que as regras constitucionais também são dotadas de imperatividade implica na necessidade de concretização do espírito do texto. De
fato, a imperatividade da regra jurídica é uma de suas principais características, pois significa a possibilidade de fazer valer, seja pela força ou por qualquer outra medida, o efeito
pretendido pelo texto34.
Já a superioridade significa, como a própria palavra indica, que a Constituição e as regras constitucionais estão em um patamar acima do restante do ordenamento jurídico,
ou seja, são rígidas35.
Esses três elementos36 são o alicerce do neoconstitucionalismo, também denotando um processo histórico de mudança do entendimento do Direito Constitucional, tendo em
vista que as Constituições e as demais regras constitucionais deixam de ser somente um instrumento formal, meramente retórico e de viés político para serem juridicamente
dotadas de forte imperatividade.
Ainda, há outros dois elementos intrínsecos ao neoconstitucionalismo, que Ana Paula de Barcellos chama de materiais:

[...] (i) incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade humana e dos direitos
fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro dos próprios sistema constitucional37.

Sem dúvida, a incorporação explícita, por parte das regras constitucionais, de valores e opções políticas, evidencia a preocupação em demarcar uma linha axiológica que
deve ser atingida. A esses valores constitucionais é dado o nome de conteúdo axiológico constitucional.
Esse conteúdo axiológico constitucional se mostra presente de maneira acentuada em diversas regras constitucionais, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, período
marcado pela destruição de direitos fundamentais e do próprio ser humano38. Daí surge a preocupação de se prever constitucionalmente a maior gama possível de direitos
fundamentais.
Além do conteúdo axiológico, Ana Paula de Barcellos também identifica como marco das regras constitucionais no neoconstitucionalismo a previsão de opções políticas
gerais (como, por exemplo, a redução de desigualdades sociais) e específicas (como, por exemplo, a prestação estatal de serviços de saúde)39.
Ana Paula de Barcellos, como transcrito, preocupa-se em apontar como elemento do neoconstitucionalismo: a) a existência de conflitos jurídicos gerais (toma-se a
Constituição como um todo, “inundando” axiologicamente todo o sistema jurídico e, consequentemente, as relações sociais); e b) específicos (direito à vida e direito a uma morte
digna, por exemplo).
Portanto, a supracitada autora identifica uma nova era do constitucionalismo, definindo-a como “constitucionalismo contemporâneo”, sem se aprofundar, contudo, na
problemática de como concretizar direitos constitucionalmente previstos.
Na verdade, a autora apresenta um estudo metodológico-formal, esgotando os elementos identificadores do neoconstitucionalismo para assim demonstrar a existência desta
nova era.
A mesma linha segue Luís Roberto Barroso, que também aponta que o neoconstitucionalismo tem elementos que o identificam (todavia, o autor chega a discorrer um pouco
mais sobre como concretizar direitos, o que será analisado adiante): marco histórico, marco filosófico e marco teórico40.
Para o supracitado autor, o marco histórico do neoconstitucionalismo, na Europa, foi o pós-guerra (Segunda Grande Guerra), sendo que, no Brasil, foi a Constituição de
1988. O marco filosófico é caracterizado pelo chamado pós-positivismo, que é um conjunto de ideias que apontam para a superação de um modelo formal (engessado) de Direito,
em que a regra é o centro do pensamento jurídico. Por fim, o marco teórico é representando por três grandes mudanças: a) as disposições constitucionais passam a ser vistas como
normas, o que implica que sejam efetivadas no plano da realidade fática e não somente respeitadas formalmente (força normativa da Constituição); b) constitucionalização do
direito, ou seja, o direito constitucional passa a nortear os outros campos da ciência jurídica; e c) desenvolvimento de novos métodos e técnicas de interpretação constitucional41.
Por sua vez, Lenio Luiz Streck também identifica o neoconstitucionalismo como um novo momento do Direito Constitucional, focando seu estudo em como fazer para que
as disposições constitucionais tenham efetividade.
Para ele, não só o Direito Constitucional, mas a ciência do Direito em sua totalidade vem apresentando, especialmente a partir de 1988, um problema, que o referido autor
enfrenta, na verdade, como uma crise, chamando-a de paradigmática, ou seja, há falta de sentido, de significado42.
Isso quer dizer que as regras jurídicas como um todo, ou seja, constitucionais ou não, ostentam aplicabilidade social mínima. É o Direito em descompasso com a realidade
social a qual está inserido.
Realmente, as regras constitucionais realçam a ausência de concretização, pois versam sobre direitos mais caros à pessoa humana, como, por exemplo, a saúde. De fato, salta
mais aos olhos a ausência de um sistema de saúde minimamente digno à pessoa humana do que a ausência de uma regulação efetivamente segura do mercado acionário.
Segundo Lenio Luiz Streck, a crise de efetividade das regras jurídicas (evidenciando-se mais as constitucionais) tem ocorrido desde 1988 em especialporque:

“[...] com sustentação em Kelsen e Hart (para falar apenas destes), passando pelos realistas norte-americanos e escandinavos, construiu-se, com o passar dos anos, uma
resistência ao novo paradigma de direito e de Estado que exsurgiu com o segundo pós-guerra. O novo constitucionalismo – que exige uma nova teoria das fontes, uma
nova teoria da norma e um novo modo de compreender o direito – ainda não aconteceu, com a necessária suficiência, em terrae brasilis. Ainda não compreendemos o
cerne da crise, isto é, que o novo paradigma do direito instituído pelo Estado Democrático de Direito é nitidamente incompatível com a velha teoria das fontes, com a
plenipotenciariedade dos discursos de fundamentação, sustentada no predomínio da regra e no desprezo pelos discursos de aplicação e, finalmente, da filosofia da
consciência. Assim, a teoria positivista das fontes vem a ser superada pela Constituição; a velha teoria da norma cederá lugar à superação da regra pelo princípio; e o
velho modus interpretativo subsuntivo-dedutivo – fundado na relação epistemológica sujeito-objeto – vem a dar lugar ao giro linguístico-ontológico, fundado na
intersubjetividade.”43

Não há como negar que a crise de aplicabilidade fática a qual as disposições constitucionais se encontram desde 1988 se dá muito em razão da maciça presença do
sentimento44 positivista no Brasil.
A não aceitação de uma nova realidade jurídica faz com o que o Direito se comporte de maneira avessa às demais ciências e teorias interpretativas, necessárias e
indispensáveis à concretização de direitos constitucionalmente previstos45.
A predominância do positivismo46, baseada no entendimento de Hans Kelsen, significa estabelecer a regra jurídica como a) o centro do sistema jurídico e b) a solução para
os inúmeros conflitos.
O positivismo também implica na impossibilidade de entender a regra jurídica como parte de um todo, desconsiderando-se sua aplicação a partir da conjunção com demais
disposições legais (ou constitucionais). E mais, recusam-se os processos interpretativos, assim como teorias da argumentação e teorias do discurso, prevalecendo a literalidade.
Tudo isso, então, gera uma consequência: afastar as demais ciências de um debate com a ciência jurídica, engessando a consagração de direitos.
A abordagem positivista não mais se sustenta a partir de 1988 porque as realidades sociais não são estanques; muito pelo contrário, prevalece a ininterrupta e constante
mudança (fluidez). Toda a realidade social se inicia e se encerra de maneira efêmera a todo momento, caracterizando-se, também, pela ausência de profundidade nas relações47.
Dessa maneira, é incompatível, desde 1988, mas especialmente desde os anos 2000, conceber e entender o Direito apenas como um conjunto de regras isoladas em um
sistema, alheias a métodos e técnicas interpretativas.
Observe-se que isso quer dizer que a conjunção interpretativa da ciência do Direito com demais ciências também se faz indispensável no momento de aplicação fática dos
postulados jurídicos48. A fluidez e complexidade das relações sociais implicam numa construção jurídica que envolva os mais variados campos de atuação.
Conceber a prestação jurídica de maneira diversa, ou seja, da maneira que positivismo entende, é aceitar que o Direito será insuficiente para propor soluções aos inúmeros
problemas sociais apresentados, isso porque a regra jurídica isolada se mostra, há muito tempo, insuficiente para prever toda a complexidade social.
Antes de 1988, frente ao contexto social apresentado, podia ser suficiente apenas a aplicação pura e simples do conteúdo escrito de uma regra jurídica (positivismo). Porém,
pós-1988, a construção jurídica pressupõe, além da análise dos postulados jurídicos aplicáveis ao caso (o que significa uma negativa à extinção do positivismo, mas sim superação
de uma etapa meramente tradicional e formal), o aprofundamento analítico de campos científicos que não Direito, que servirão, além da regra, para a formação de um
entendimento mais aprofundado e seguro, além de célere.
Portanto, a solução jurídica deve ser apresentada por meio de técnicas interpretativas e técnicas dos discursos (em suma, técnicas retórico-argumentativas), que demonstrarão
se as bases fundantes do entendimento exposto são válidas ou não (como visto no parágrafo anterior, a regra não está descartada, mas é complementada).
Trata-se de legitimar a construção de um pensamento jurídico, que, antes do advento da Constituição de 1988, sustenta-se apenas no viés legalista49.
Além do mais, sendo o Direito uma ciência eminentemente de cunho social, deve acompanhar a realidade afeita a seu campo de atuação, que é a fluidez das relações pessoais
(o positivismo prioriza a regra e sua literalidade, ou seja, o oposto da constante mutabilidade social).
Ainda, dizer que o Direito é uma ciência social implica no fato de reconhecer que a sua aplicação deve trazer à sociedade soluções práticas aos problemasapresentados.

Como o direito é um saber prático e que deve servir para resolver problemas e concretizar as promessas da modernidade que ganharam espaço nos textos
constitucionais, a superação dos obstáculos que impedem o acontecer do constitucionalismo de caráter transformador estabelecido pelo novo paradigma do Estado
Democrático de Direito pressupõe a construção das bases que possibilitem a compreensão do estado da arte do modus operacional do direito, levando em conta um
texto constitucional de nítida feição compromissória e dirigente, e que, passadas quase duas décadas, longe está de ser concretizado. Na base dessa inefetividade, para
além do problema relacionado à configuração política econômica da sociedade brasileira (democracia em consolidação, alternando longos espaços de ausência de
estado de direito, a histórica desigualdade social, a cultura patrimonialista, o regime presidencialista que se mantém com governabilidade ad hoc, etc.), encontra-se
solidificada uma cultura jurídica positivista que coloniza a operacionalidade (doutrina e jurisprudência) e o processo de elaboração da leis, em um processo de
retroalimentação50.

Não se trata, pois, de uma crise entre modelos do Direito, em que o positivismo deve ser expurgado da ciência jurídica, mas, na verdade, uma crise entre um pensamento
jurídico velho e um pensamento jurídico atual; um entendimento jurídico antigo e um entendimento jurídico moderno; modos de ver e utilizar o Direito, que representam e se
adequam conforme os anseios e necessidades sociais de cada época51.
Fato é que não se pode olvidar da necessidade da regra escrita, o que não significa dizer que o mundo atual é compatível com a visão de que essa é, sozinha e isolada,
suficiente para solucionar questões das mais variadas temáticas. De tal maneira também entende Susanna Pozzolo:

O neoconstitucionalismo, portanto, afirma a arcaicidade do positivismo jurídico, não por razões a ele internas, mas porque, como um antigo instrumento de relevância
científica, uma vez conferida a maior complexidade do fenômeno que deveria medir, então, constatada a sua imprecisão e ineficiência descritiva, é substituído por
instrumentos mais atuais e sofisticados, resultado da evolução científica. Substancialmente, o argumento neoconstitucionalista sustenta que, determinada a mais
complexa natureza do objeto ‘direito positivo’ no âmbito do estado constitucional (em relação ao estado de direito), o instrumento ‘positivismo jurídico’ deve ser
substituído porque obsoleto. Pode-se duvidar dessa reconstrução ‘científico-descritiva’, que torna necessária a escolha neoconstitucionalista, se não outra, porque isso
que o neoconstitucionalismo apresenta como um objetivo modelo institucional corresponde mais a uma característica concepção de constituição. Para os teóricos do
direito a adoção de uma concepção perceptiva da constituição não é uma necessidade, mas uma escolha: um modo de conceber o papel e a função da constituição é
tudo o que determina a reconstrução neoconstitucionalista do direito do estado constitucional52.

Assim, a problemática da inefetividade dos postulados constitucionais brasileiros parte, inicialmente, da ainda não presente superação do pensamento positivista para uma
visão mais fluídica do Direito, em que o operador dessa ciência constata que a regra isolada, até então centro da ciência jurídica, é incapaz, por si só, de solucionar todos os
problemas que emergem53.
É claro que a superação do paradigma positivista trará diversas alterações ao modo de abordar e aplicar a ciência do Direito, matéria também analisada por Lenio
Luiz Streck:

As características desse novo constitucionalismo provocam profundas alterações no direito, proporcionando a superação do paradigma positivista, que pode ser
compreendido no Brasil como produto de um simbiose entre formalismo e positivismo, no modo como ambos são entendidos pela(s) teoria(s) crítica(s) do direito. Na
verdade, embora o positivismo possa ser compreendido no seu sentido positivo, como uma construção humana do direito enquanto contraponto ao jusnaturalismo, e
tenha, portanto, representado um papel relevante em um dado contexto temporal, no decorrer da história acabou se transformando – e no Brasil essa questão assume
foros de dramaticidade – em uma concepção matematizante do social, a partir de uma dogmática jurídica formalista, de nítido caráter retórico. Com efeito, se o
formalismo e o positivismo marca(ra)m indelevelmente o pensamento jurídico moderno, no Brasil é possível dizer que em muitos aspectos ambos (ainda) se
confundem, isto porque se engendrou um imaginário jurídico atrelado, ao mesmo tempo, ao formalismo e às suas insuficiências, para explicar direito e a realidade (o
direito é concebido no plano abstrato e entendido como sendo apenas um objeto histórico-cultural), e ao positivismo, com as suas características que vêm delineando os
caminhos da doutrina e jurisprudência, como por exemplo: a não-admissão de lacunas; o não-reconhecimento dos princípios como normas; as dificuldades para
explicar os “conceitos indeterminados”, as normas penais em branco e as proposições carente de preenchimento com valorações, proporcionando a discricionariedade
do juiz, que acaba de transformando em arbítrio judicial (ou decisionismos voluntaristas); a inoperância em face dos conflitos entre princípios, culminando, via de
regra, na sua negação, com a remessa da solução à discricionariedade do juiz; e, por último, tem ficado visível que o positivismo não tem como tratar da questão da
legitimidade do direito. Por isto, a legalidade ocupa o lugar da legitimidade. [...] Como consequência dessa (con)fusão entre normativismo e positivismo, tem-se uma
verdadeira blindagem contra a “intervenção” da Constituição (entendida nos quadros do neoconstitucionalismo), que introduz as condições para a superação do
problema da identificação (imanência) normativista-positivista entre vigência e validade: na verdade, a Constituição introduz a diferença entre vigência e validade,
alcançando a validade à condição primeira, caindo por terra a plenipotenciaridede textual-normativa e tudo o que isto vem representando no campo jurídico54.
Ao passo que Lenio Luiz Streck, acertadamente, constata um problema na cultura jurídica do Brasil como um todo, que ainda não conseguiu superar os alicerces fundantes
do positivismo, Luís Roberto Barroso enfatiza o papel do Supremo Tribunal Federal, vendo na Corte Suprema a solução para a problemática da inefetividade das
regras constitucionais.
Ocorre que destacar o papel do Supremo Tribunal Federal no neoconstitucionalismo, como faz Luís Roberto Barroso, é dar enfoque apenas a um dos sujeitos atuantes na
concretização de direitos constitucionais, trazendo o debate unicamente à seara da judicialização dos direitos e de como deve se portar o Judiciário.
Diferentemente, Lenio Luiz Streck entende que compete a todos os atores do mundo jurídico, por meio da já explicada quebra do velho paradigma, buscar a consagração
fática dos ditames constitucionais.
De outro lado, visualizar, como faz Luís Roberto Barroso, o Supremo Tribunal Federal como o principal ator do neoconstitucionalismo, dando importância desmedida à sua
atuação, é manter o mesmo racional dado ao tema até o advento do positivismo, ou seja, entender que há solução única à inefetividade das regras constitucionais, qual seja: as
decisões proferidas pela Corte Suprema; antes, entendia-se que a solução viria unicamente da regra.
Pois bem: Luís Roberto Barroso aceita que o Direito deve se aproximar mais da interpretação e argumentação, mas o entendimento ainda é no sentido de enxergar
isoladamente única solução (paradigma jurídico velho): antes, a regra era vista como fonte de toda e qualquer solução; agora, o autor entende que da regra não partirá toda e
qualquer solução, mas somente a um dos atores do mundo jurídico caberá a concretização de direitos constitucionais, que é o Supremo Tribunal Federal.
Constata-se, assim, que o raciocínio de Luís Roberto Barroso é o mesmo utilizado pela teoria positivista, qual seja, o de centralizar e individualizar o que enxerga como o
ponto mais importante do sistema jurídico: retira-se a regra do centro, sem, contudo, dissipar quem a aplica, o que, no fundo, é manter o mesmo modo de enxergar o Direito, que
existe desde o advento do positivismo. Centraliza-se a solução de problemas em única figura. E é justamente isso que este novo conjunto de ideias, chamado de
neoconstitucionalismo ou pós-positivismo, busca evitar.
A complexidade social a qual a ciência do Direito está inserida já não permite mais que a prestação jurídica esteja focada apenas na regra escrita, bem como na figura do
Judiciário.
Essa abordagem que enxerga o tradicionalismo e formalismo jurídicos como únicas soluções às diversas problemáticas que o mundo apresenta hoje deve ser urgentemente
vista como insuficiente.
A efetivação de direitos constitucionais e a solução célere de problemas jurídicos-constitucionais passará a acontecer a partir do momento em que as teorias de interpretação
e dos discursos, entre elas a da argumentação jurídica, serem aceitas como fontes do direito e vistas como capazes de solucionar conflitos (a base permanece a regra escrita, que
norteia a aplicação de tais teorias).
E mais, de nada adianta que as supracitadas fontes estejam focadas em apenas uma figura, como, por exemplo, o Judiciário; há de se aceitar, também, que a aplicação seja
dissipada entre as mais variadas figuras que atuam no mundo jurídico.
Verifica-se, então, que a exigência é de uma ciência do Direito mais fluídica e adaptável, que, quando demandada, prestará um entendimento mais adequado ao caso por
meio da junção de diversos elementos jurídicos que não só a regra escrita, incapaz de prever as constantes e diversas ebulições sociais que lhe são submetidas.
De outra forma não poderia ser, pois os conflitos brotam de uma realidade social complexa e que, sob nenhum aspecto, é estanque e imutável (características do ainda
presente formalismo jurídico, que enxerga na literalidade da regra a fonte da solução).
REFERÊNCIAS

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GRAU, E. R. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

JACQUES, P. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958.

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PAZZOLO, S. Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional ou uma concepção da Constituição? Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 1, n. 7, jan./jun. 2006.

PIOVESAN, F. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

______. Temas de direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

STRECK, L. L. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. Revista do Instituto de Pesquisa e Estudos, Bauru,
v. 40, n. 45, jan./jun. 2006.

Notas de Rodapé
17 A Assembleia Nacional, composta pelos membros do Parlamento Federal, é organizada apenas para o fim de eleger o Presidente da República.
18 Possui graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal.
Pós-Graduação lato sensu em Direitos Fundamentais realizada no IBCCRIM, em conjunto com a Universidade de Coimbra (2016). Especialização em
Compliance no INSPER/SP (2016). Pós-Graduação lato sensu em Direito Constitucional realizada na PUC/SP (2017). Mestrando em Direito Político e
Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (conclusão prevista para o primeiro semestre de 2019).
19 Diz-se pelo menos em tese, pois em muitos casos as regras que limitavam o poder do Estado não eram efetivamente aplicadas. Acerca desta problemática,
vale transcrever os ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Em muitos casos o êxito do constitucionalismo não foi além das aparências,
fornecendo roupagem brilhante para vestir uma realidade adversa” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 7).
20 MALUF, Sahid. Direito Constitucional (conforme a Constituição Federal de 1967). 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Sugestões Literárias S/A, 1968. p. 40.
21 Acerca de um marco característico do constitucionalismo francês, cumpre salientar a rigidez do princípio da separação de poderes e sua relação com o Poder
Judiciário, que tem característica peculiar. Conforme preconiza Luís Roberto Barroso: “Na França, desde a Revolução, levou-se às últimas consequên-
cias a ideia de separação dos Poderes no tocante ao Judiciário, objeto de desconfianças históricas. A ele sempre foi vetado apreciar atos do Parlamento ou
do governo. Foram criadas, assim, duas ordens de jurisdição totalmente distintas: a) a jurisdição judicial, em cuja cúpula está a Corte de Cassação; e b) a
jurisdição administrativa, em cujo topo está o Conselho de Estado, com atribuição de julgar, em última instância, os litígios entre os particulares e o Estado
ou qualquer outra pessoa pública” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção
do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 54-55).
22 Sobre constitucionalismo inglês, Paulino Jacques afirma que: “Apesar de habitada desde 500 a.C., só com a conquista normanda (franca, francesa), sob
GUILHERME I (1066-1087), foi que a Inglaterra assentou os marcos de uma future organização política. ” Ainda, referido autor identifica os ensinamentos
que a Constituição inglesa trouxe aos continentes europeu e americano: “A Constituição inglesa, peculiar ao povo britânico, ensinou aos povos da Europa e
da América que, ao lado de leis escritas institucionais, podem atuar costumes e os precedentes políticos, integrando a estruturação do Estado com a
mesma eficiência que os códigos fundamentais” (JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revista
Forense, 1958. p. 43 e 52, respectivamente).
23 Sobre o a Constituição americana, diferente em muitos aspectos da brasileira especialmente, mas não somente, em razão do sistema jurídico estar fundado
no common law, Luís Roberto Barroso afirma que passados: “Mais de duzentos anos após sua entrada em vigor, a Constituição americana ainda conserva
sete artigos apenas, tendo sofrido o número reduzido de vinte e sete emendas ao lodo deste período. Nela institucionalizou-se, de forma pioneira e
duradoura, um modelo de separação nítida entre Executivo, Legislativo e Judiciário, em um Estado republicano e sob o sistema presidencialista”
(BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2015. p. 29).
Por sua vez, sobre a influência da Constituição americana na América Latina, Paulino Jacques assevera que: “Foi na América Latina (central e meridional) que a
influência das instituições norte-americanas mais se fez sentir, a começar pela independência e republicanização das colônias hispano-americanas e a
terminar com a adoção do regime das Constituições escritas e rígidas” (JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Revista Forense, 1958. p. 65, respectivamente).
24 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 7.
25 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 1.
26 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 29.
27 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 27.
28 O autor aponta como atributos três tipos de limitações do poder: materiais (valores mínimos de proteção ao ser humano e direitos fundamentais), estrutura
orgânica (separação dos poderes e aplicação do princípio chamado de checks and balances) e processuais (aqueles que exercem o poder devem agir não
só de acordo com a lei, mas também observar o devido processo legal, que tem o viés procedimental e o substantivo (BARROSO, Luís Roberto. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 29-30).
29 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 29.
30 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015. p. 29.
31 Cumpre salientar que o termo constitucionalismo surgiu para definir diversos movimentos sociais que reivindicavam um poder político mais igualitário por meio
de regras constitucionais. Por seu turno, o neoconstitucionalismo é mais uma construção doutrinária, que identificou a necessidade de levar o
constitucionalismo a novo patamar, do que um termo criado para definir anseios sociais recorrentes. Isso quer dizer que o ponto de partida de cada um de
tais conceitos é diverso: enquanto que no constitucionalismo a realidade moldou a doutrina, no neoconstitucionalismo a doutrina passa a moldar a
sociedade, constatando uma necessidade ainda latente nessa.
32 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, Bahia, n. 240, p. 3,
2007.
33 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, Bahia, n. 240, p. 1,
2007.
34 O tema da imperatividade da regra jurídica foi a fundo estudado e debatido pelo jurista italiano Norberto Bobbio, especialmente nas seguintes obras: Teoria da
Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico.
35 Em suma, uma Constituição é considerada rígida quando a sua reforma depende de um processo muito mais complexo do que o previsto para a mudança de
leis infraconstitucionais. Isso, por si só, já deixa claro que a Constituição está acima das demais regras jurídicas.
36 Ana Paula de Barcellos chama essas três características de metodológicas-formais, tratando-as como as premissas fundamentais dos sistemas jurídicos
contemporâneos (BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico,
Bahia, n. 240, p. 2-3, 2007).
37 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, Bahia, n. 240, p. 4,
2007.
38 A professora Flavia Piovesan aprofunda-se no tema e explica as razões pelas quais regras constitucionais de direitos fundamentais e direitos humanos
ganharam destaque após a Segunda Guerra Mundial (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015; PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2015).
39 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. n. 240. Bahia: Revista Diálogo Jurídico,
2007.
40 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, jan. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695>. Acesso em: 01 fev. 2017, 15:59:07.
41 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 3-12, jan. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695>. Acesso em: 01 fev. 2017, 15:59:07.
42 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. Revista do
Instituto de Pesquisa e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, jan. /jun. 2006, p. 257-290.
43 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. Revista do
Instituto de Pesquisa e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, jan. /jun. 2006, p. 258.
44 Utiliza-se a palavra sentimento e não pensamento, uma vez que se trata muito mais de um ato aprendido e repetido de pensar o Direito do que racionalmente
decidir por determinada corrente.
45 Cite-se como exemplo o fato de que, em muitos casos, para se chegar a uma solução, mostra-se insuficiente o postulado escrito da regra jurídica, havendo
necessidade de diálogo entre a ciência jurídica, a Filosofia e a Sociologia. A partir desse diálogo, então, chega-se a uma conclusão jurídica sobre
determinada situação concreta. Trata-se, portanto, de um processo de construção de um entendimento jurídico, que envolve inúmero métodos
interpretativos e a conjunção de várias ciências.
46 O positivismo tem como características principais: a) a autoridade que estabelece leis (Estado, legislador, princípio etc.); b) os direitos são laicos e
contingenciais, ou seja, são criados com base em determinado momento da realidade social; c) os direito são temporais, mutáveis e circunscritos
(espacialmente delimitados): temporais porque são criados a partir de determinado momento social, relacionando-se a certo período; mutáveis porque
podem ser modificados ou extintos; e circunscritos porque se referem a determinada realidade fática, como, por exemplo, as leis brasileiras e as leis
francesas; e d) fundamento de que os direitos estão baseados no consenso social, ou seja, que representam, espelham, o comportamento da grande
maioria das pessoas daquela realidade fática a qual estão circunscritos. Diferentemente do direito natural, o positivismo não se baseia no sagrado: ao se
falar que existe um Ser Maior, parte-se do pressuposto que há perfeição, havendo, assim, um bem absoluto, que é o princípio de todas as coisas. Portanto,
as regras estabelecidas pelo Ser Maior são perfeitas. Ademais, considerando que a figura do Ser Maior está fora do tempo, pois o tempo é uma noção para
os seres vivos, sendo, assim, Sua figura também eterna, conclui-se que as regras estabelecidas sempre estarão de acordo com a realidade do tempo dos
seres vivos. Em outras palavras, o direito natural é sempre imutável, valendo para todos os seres humanos em todos os momentos. Por seu turno, o direito
posto, positivado, representado pela corrente positivista, é sempre mutável, como visto no início, servindo para regulamentar as relações sociais. Ocorre
que essa mutabilidade não significa que as regras jurídicas são e devem ser constantemente modificadas para acompanhar a realidade social; pelo
contrário, o entendimento positivista é estanque, baseando-se na ideia de que uma cerca quantidade de regras jurídicas é suficiente, por considerável
período, para regular a sociedade. A base fundante do positivismo é, então, o postulado jurídico formalmente posto, afastando-se qualquer interferência ao
que dispõe a regra jurídica, vista como única e intocável.
47 O sociólogo Zygmunt Bauman estuda a fundo este novo tipo de realidade social muito presente a partir dos anos 2000, trazendo o conceito de “modernidade
líquida” para definir a fluidez com que os acontecimentos sociais se dão.
48 Um exemplo claro de que o Direito depende da conjunção interpretativa com postulados das demais ciências foi a análise, pelo Supremo Tribunal Federal, do
aborto de feto anencéfalo. Em suma, para que a Corte Suprema do Brasil chegasse a uma conclusão acerca de tal conduta ser típica ou não, precisou
abordar diversos estudos elaborados pelos mais variados campos de atuação: medicina, teologia, direito, sociologia etc.
49 Ver GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
50 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. Revista do Instituto de
Pesquisa e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45,
p. 282-283, jan./jun. 2006.
51 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. Revista do Instituto de
Pesquisa e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45,
p. 283, jan./jun. 2006.
52 PAZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional ou uma concepção da Constituição? Revista Brasileira de Direito Constitucional, v.
1, n. 7, p. 234, jan./jun. 2006.
53 Luís Roberto Barroso também entende que o neoconstitucionalismo é eminentemente marcado por uma nova forma de entender o direito, que aproxima essa
ciência mais da teoria dos discursos, destacando-se a filosofia, do que da teoria da norma: “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do
positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O
pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a
categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar
voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção
incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da
argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre
o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a filosofia.” Ocorre que, a despeito do autor de fato
verificar uma era pós-positivista, entende que o ator principal neste novo momento constitucional é o Supremo Tribunal Federal, o que mantém o velho
entendimento jurídico, só que com nova roupagem. Adiante o presente tema também será tratado de maneira mais aprofundada (BARROSO, Luís Roberto.
Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 240, p. 4-5, jan. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695>. Acesso em: 1º
fev. 2017, às 15:59:07).
54 STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo. Revista do Instituto de
Pesquisa e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45,
p. 285, jan./jun. 2006.
55 Thaís Duarte Zappelini é Mestranda (2016) e bolsista (Mackpesquisa, mérito bolsa-MP, 2017) em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM). É bacharel em Direito pela UPM (2016); estudou como bolsista na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
(2014). É membro da Comissão de Eventos; da Comissão de Acompanhamento Científico; do Grupo de Pesquisa em Direitos Sociais e Políticas Públicas e
do Grupo de Pesquisa Filosofia do Direito (Neo) Kantiana da UPM.
56 O autor é mestrando em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
E-mail: [email protected]
57 DALLARI, Dalmo de Abreu. Regime constitucional dos servidores públicos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 28.
58 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 150.

3. RANÇOS DO PATRIMONIALISMO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA E A ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988

Thaís Duarte Zappelini55

1. Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise crítica acerca das repercussões do modelo patrimonialista na Administração Pública brasileira, em especial no que tange a
contraposição dos resultados das reformas administrativa face à Constituição de 1988, frisando suas consequências e resquícios nos sistemas burocrático, principalmente, e
gerencial, para apresentar práticas que conduziram aos entraves administrativos contemporâneos, especialmente os relacionados a trocas de favores em geral, ao clientelismo, ao
mandonismo, ao nepotismo e à corrupção como um todo.
Para isso, o primeiro capítulo desse artigo foi dedicado ao esclarecimento das características patrimonialistas mais marcantes na sociedade brasileira, descrevendo o seu
desenvolvimento a partir do fenômeno do coronelismo, em particular, e tomando por base a obra Coronelismo, Enxada e Voto (1948), de Victor Nunes Leal (1914-1965), dada a
sua completude e pioneirismo no tema. No mais, discorreu-se sobre a implantação da burocracia (de moldes weberianos) no Brasil perante todas as dificuldades econômicas,
sociais e políticas do arcabouço administrativo anterior.
O segundo capítulo refere-se às influências diretas do patrimonialismo nos outros modelos de gestão, dando ênfase às deturpações efetuadas na teoria de Max Weber
(1864-1920) e a premissa de uma suposta burocracia patrimonialista a partir da argumentação de Raymundo Faoro (1925-1979) em Os Donos do Poder (1958), em decorrência
do peso de suas considerações históricas e também do distanciamento visível das proposições weberianas.
Foi também abordada a Reforma do Aparelho do Estado da década de 1990, que implantou o Gerencialismo, com foco na arriscada relação de intimidade entre a ceara
pública e a privada e as suas repercussões diante da Carta de 1988.
Por fim, em conclusão, foram apontados os aspectos basilares do patrimonialismo que resistiram ao longo dos séculos na sociedade brasileira e em que medida eles
produziram efeitos no funcionamento da gestão administrativa no Brasil, destacando a logicidade por trás do caráter contínuo dessas relações, bem como as razões de sua
perpetuação.

2. Hegemonia social e patrimonialismo

2.1 O coronelismo e a pessoalidade das relações administrativas

Da República Velha até a década de 1930 preponderava no contexto brasileiro uma estrutura geopolítica agrária, na qual ainda se consolidava, tardiamente, a noção de
Estado Moderno. Ainda longe da expansão industrial, o país caracterizava-se por uma descentralização administrativa, de forma que as regiões menos favorecidas apresentavam
recursos orçamentários escassos, valendo-se do poder privado para a supressão de suas necessidades básicas (NOHARA; MARQUES SILVA, 2007, p. 107-108).
Na esfera local, especificamente nos Municípios rurais, havia uma latente rarefação do poder público e a vida era precária. Destarte, a distribuição de bens mínimos era feita
pelos coronéis (denominação oriunda de posto militar à venda na época), que eram vistos pelo povo como benfeitores, já que custeavam a infraestrutura local e provinham favores
à população, desde comida, remédios, até transporte e empréstimos em pecúnia (NOHARA; MARQUES SILVA, 2007, p.107-108).
E eram os fazendeiros e chefes locais que financiavam as despesas do alistamento e das eleições (LEAL, 2012, p. 647). Sua liderança não provinha, contudo, unicamente do
poder inerente ao latifúndio, mas também estava relacionada à capacidade de suprir os interesses locais genéricos e da consequente submissão e dependência dos trabalhadores
rurais. Com o advento da Constituição de 1891, que transformou os trabalhadores em eleitores e a falta de autonomia municipal, o coronelismo foi instituído, gerando uma
hipertrofia da esfera privada sobre a pública, com a manipulação das votações e a predominância da pessoalidade das relações na administração pública (NOHARA; MARQUES
SILVA, 2007, p. 107-108).
Tal como bem explana Victor Nunes Leal (1914-1965) em Coronelismo, Enxada e Voto (1948), o fenômeno do coronelismo é marcado pela desorganização do serviço
público; pelo filhotismo (preenchimento de cargos públicos segundo os interesses particulares dos chefes locais) e sua outra face: o mandonismo, manifestado na perseguição e
humilhação dos adversários; além da condução dos denominados votos de cabresto, por meio da manobra sobre as massas eleitorais, obrigando-as a responder a uma opressiva
“troca de favores” (LEAL, 2012, p. 539-791).
O coronelismo foi permeado por um sistema de reciprocidade entre o Governo Estadual e o governismo do eleitorado do interior, de sorte que os chefes municipais e os
coronéis constrangiam o eleitorado para a manutenção dos grupos políticos dominantes, que dispunham do erário, recursos humanos, favores e força policial. No âmbito estadual,
a mesma lógica entre os coronéis e o poder público municipal é repetida, aqui em relação ao poder central por meio da chamada política dos governadores (LEAL, 2012,
p. 734-792). Em suma:

A essência, portanto, do compromisso “coronelista” – salvo situações especiais que não constituem regra- consiste no seguinte: da parte dos chefes locais,
incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca do chefe local governista (de preferência
o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao Município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar (LEAL, 2012, p. 815-822).

Nesse momento, uma administração paralela começa a se formar: perante a falta de autonomia legal da Municipalidade, os chefes governistas gozavam de uma ampla
autonomia extralegal. É possível advertir que entre os fatores que contribuíram para a atrofia dos nossos Municípios, incluem-se a diminuição e mesmo supressão de suas
atribuições autônomas, o excesso de encargos, a insuficiência orçamentária, as limitações ao princípio da eletividade de sua administração e a intervenção política dos pleitos
locais (LEAL, 2012, p. 822-828).
Nota-se que o patrimonialismo como modelo de administração adotado na época se baseava na pessoalidade, sendo então caracterizado por uma amalgamação entre público
e privado, o que impunha à Administração Pública um funcionamento desencadeado, propiciando favoritismos, nepotismos e corrupção. E “até mesmo o patrimonialismo
preburocrático ainda sobrevive por meio das evidências de nepotismo, gerontocracia, corrupção e nos sistemas de designação de cargos públicos baseados na lealdade política”
(SECCHI, 2009, p. 365).
Nesse sentido, interessante a posição de Aguiar (2000), que argumenta que o patriarcado no pensamento social brasileiro se encontra em um sistema de denominação que
transcende a esfera política para adentrar nas relações hierárquicas da conjuntura doméstica, sendo, assim, concebido de forma ampla, incorporando as dimensões da sexualidade,
reprodução e relação entre homens e mulheres no contexto de um sistema escravista. O patrimonialismo, nessa vereda, seria uma transformação do patriarcado pelo processo de
diferenciação, construído a partir das relações de dependência entre o senhor e um terceiro (AGUIAR, 2000, p. 316-327).
E mesmo nas sociedades nas quais o público prepondera sobre o privado, é possível observar a continuidade das relações patriarcais, de modo que nas sociedades
patrimoniais a intimidade entre público e privado não resultou em maior participação política do povo, especialmente no que se diz respeito às mulheres (AGUIAR, 2000, p. 327).
Insta pontuar que a origem patriarcal do estamento burocrático traz consigo consequências acentuadas, conferindo perpetuação ao clientelismo.
Coronelismo, Mandonismo e Clientelismo, tal como esclarece José Murilo de Carvalho, são conceitos relacionados, porém não sinônimos, de forma que cada um apresenta
uma especificidade, representando curvas diferentes de evolução. Segundo essa perspectiva, o coronelismo foi um sistema político nacional, fundamentado em barganhas entre o
governo e os coronéis, de modo que ao governo estadual cabia garantir, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e rivais. Trata-se, pois, de uma fase de um extenso
processo de relacionamento entre os fazendeiros e o governo, que teria desfalecido simbolicamente quando da prisão dos grandes coronéis baianos (1930) e, definitivamente,
findado em 1937, (Estado Novo e a derrubada de Flores da Cunha, último dos grandes caudilhos gaúchos) (CARVALHO, 1998, p. 131-133).
Já o mandonismo faz referência à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder. Há o exercício do controle de algum recurso estratégico – em geral a
posse da terra – e a população sofre um domínio pessoal e arbitrário que obsta seu livre acesso ao mercado e à sociedade política. Diferentemente do coronelismo, não é um
sistema. É uma característica da política tradicional e sua trajetória funde-se com a história da formação da cidadania (CARVALHO, 1998, p. 132-135).
Outrossim, insta salientar que a dispersa formação das grandes propriedades em núcleos isolados torna a problemática do mandonismo um processo nacional, considerando o
coronelismo não apenas um fenômeno social, mas um movimento de aparato geográfico: as câmaras municipais foram sendo preenchidas, desde a Colônia, por grandes
proprietários de terra, relação continuado por barões e coronéis (CARONE, 1971, p. 85-86).
E o clientelismo, por fim, é um termo utilizado mormente por autores estrangeiros que escrevem sobre o Brasil. Refere-se a uma conceituação mais ampla e indica um tipo
de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos em troca de apoio, mormente na forma de voto. É um atributo variável de sistemas políticos macro,
como um mandonismo visto do ponto de vista bilateral. Seu conteúdo varia temporalmente (o que não ocorre com o coronelismo), conforme os recursos controlados por tais atores
(pelos “mandões” e pelo governo). Em outras palavras, as relações clientelísticas dispensam a presença do coronel (CARVALHO, 1998, p. 132-137).
Logo, adotando-se essa visão, seria incorreto falar em “coronelismo urbano” ou “coronelismo do século XIX”, o que não significa que o fenômeno não tenha deixado
repercussões históricas. O patrimonialismo, todavia, em se tratando de um sistema ou modelo administrativo permanece ainda vivo. Frisa-se que é difícil sustentar a superação
total de um modelo pelo outro no panorama brasileiro (CARVALHO, 1998, p. 132-137).
Quer dizer, assim como apesar de o discurso oficial da Reforma Administrativa da década de 1990, que buscou implantar o modelo gerencial, insistir em uma
“desburocratização”, a burocracia ainda tem suas bases sólidas, mesmo tendo sido apenas formalmente adotada pelo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE)
para o núcleo estratégico do Estado; também o patrimonialismo não foi inteiramente eliminado, apesar de suas reverberações práticas não serem positivas na Contemporaneidade.

2.2 O domínio tradicional-legal frente à herança patrimonialista

Elementos como a universalização do sufrágio e o voto secreto, a industrialização, a urbanização (conjuntamente ao êxodo rural) e a consequente formação de uma classe
média contribuíram para um desaparelhamento do Estado frente a novas funções sociais. Ainda que tais condições tenham direcionado à escolha de uma diferente gestão
administrativa, persistia a burla do sistema, por exemplo, a partir da admissão dos funcionários públicos extranumerários (por tempo determinado) sem o ingresso por concurso
público, necessário aos permanentes (NOHARA, 2012, p. 19-21).
O Código Eleitoral de 1932 propiciou mudanças notáveis na vida política dos cidadãos: instituiu o voto feminino, abaixou para dezoito anos o limite de idade para votar,
instituiu o sigilo do sufrágio, o sistema de representação e a Justiça Eleitoral – que foi, contudo, integrada na estrutura do Poder Judiciário somente catorze anos depois, por meio
de Constituição de 1946-. Não obstante, era feito o uso de diferentes tamanhos de cartões para as cédulas, o que possibilitava a identificação do voto. Ademais, eram utilizados
nomes de mortos e ausentes e as câmaras legislativas frequentemente cassavam diplomas de candidatos “indesejados” na provação final. Prosseguia a coação dos partidos oficias,
difusa, mas efetiva, além da violência preparatória nas eleições (LEAL, 2002, p. 3080-3094).
A gestão patrimonialista foi, assim, se tornando incompatível à realidade brasileira do fim da Primeira República. Marx Weber (1864-1920) tratou de maneira mais
aprofundada a edificação de uma administração burocrática no Estado moderno e então na década de 1930, influenciado pelo modelo europeu continental, o Brasil buscou
implementar esse modelo, com o viés de imprimir maior impessoalidade e eficiência à administração pública, atendendo à demanda de consolidação de um novo papel do Estado
(NOHARA, 2012, p. 19-27). Para Weber, “uma burocracia, uma vez plenamente realizada pertence aos complexos sociais mais dificilmente destrutíveis” (WEBER, 2004, p. 222).
A Burocracia proposta por Max Weber não foi, entretanto, adotada em sua originalidade ou em sua plenitude no Brasil.
A Sociologia genuinamente construída pelo autor previa a dominação como elemento da ação social e, analisando-a sob o aspecto de sua vinculação à administração, buscou
estruturar tipos legítimos, dentre os quais teríamos um poder de mando em autoridade pessoal, cujo fundamento pode se encontrar na tradição sagrada (habitualidade), que
pressupõe a obediência mediante determinadas pessoas ou pode se basear na crença do carisma – no caso de profetas, redentores ou heróis (WEBER, 2004, p. 193-198). Assim:

A ação social, numa situação vinculada a relações de autoridade tradicionais, está tipicamente representada pelo “patriarcalismo”. A formação de dominação
“carismática” apoia-se na autoridade não racionalmente nem tradicionalmente fundamentada de personalidades concretas (WEBER, 2004, p. 198).

O domínio burocrático, por sua vez, seria o tipo mais racional, utilizado pela moderna administração pública. Caracterizado por uma arquitetura específica do funcionalismo,
baseia-se no princípio das competências oficiais fixas, pressupondo, na dominação baseada no direito público, uma autoridade burocrática e, na ceara privada, de uma empresa ou
aparato burocrático. Supõe, dentre outros fatores, a hierarquia de cargos; a existência de documentos oficiais e de atividades especializadas; a vitaliciedade dos cargos;
remuneração; além da administração conforme regras preestabelecidas e do estabelecimento do profissionalismo (WEBER, 2004, p. 198-205).
Sendo assim, a proposta de Weber asseverou os atributos de uma organização racional-legal, inclinada a garantir a divisão dos trabalhos entre seus participantes, a
consolidação de regras gerais de funcionamento, a separação entre propriedade pessoal e organizacional e a seleção para os cargos públicos com base em qualificações técnicas.
Também, implicou em uma estruturação na qual é imperativa uma obediência à ordem impessoal legalmente estabelecida (MEIDEIROS, 2006, p. 146-147).
As adaptações históricas da Burocracia aos moldes do cenário econômico, social e institucional das sociedades modernas, que diferiam do que foi inicialmente projetado por
Weber passaram a ser vistas como disfunções (MEIDEIROS, 2006, p. 148). No Brasil, o governo provisório de Getúlio Vargas criaria o Departamento e Administração do Serviço
Público (DASP) em 1938, cuja instituição tem sido relacionada à instauração da burocracia weberiana no Brasil. Aadmissão da necessidade industrializante gerou um movimento
de reaparelhamento do Estado, contudo, significou o que alguns autores tomam por “ burocracia patrimonialista”, uma conformação compatível com as estruturas brasileiras
(PINHO, 1998, p. 60). Isto é:

Em outras palavras, as mesmas mãos que queriam ser weberianas não conseguiam, ou não podiam resistir ao poder histórico do patrimonialismo. Construímos assim
um híbrido administrativo onde convivem uma estrutura meio weberiana e a sólida estrutura patrimonialista ainda que esta se atualize, se transmute para ficar
contemporânea. Evidentemente esse sistema exibe alto grau de promiscuidade com a interpenetração de uma esfera pela outra, onde a estrutura weberiana, ou já meio
weberiana, é contaminada e se deixa contaminar pela patrimonialista e esta até pode ter uma face, uma aparência weberiana (PINHO, 1998, p. 62).

Deste modo, Vargas procurou direcionar a Reforma da administração pública em diretrizes de inspiração britânica que consistiam, basicamente, em critérios de natureza
profissional para ingresso no serviço público, instituição de planos de carreiras e promoção com fulcro no mérito. Porém, ao passo que nos altos escalões da administração pública
tais normas foram tomadas com mais rigor, em se tratando dos escalões inferiores (ao exemplo dos órgãos incumbidos dos serviços de saúde e assistência social), prevalecia o
critério clientelista de recrutamento por indicação e a manipulação populista de recursos públicos (MARTINS, 1997, p. 17-18).
O Estado Nacional teve sua formação embebida na Colônia, de modo que sua construção foi qualificada por um processo que abarcava em um vasto território, com pequenos
contingentes populacionais vocacionados para uma autossuficiência e dispostos a se contrapor ao controle Estatal. Os descompassos e desajustes tiveram origem na situação da
administração pública que, mesmo quando embrionária, esteve sempre marcada pelo desempenho de funções viciárias e compensatórias (NOGUEIRA, 1996, p. 7).
Nesta esteira, Weber concebe um sistema que preza pela polidez das instituições, oficialidade segundo regras e procedimentos previamente estabelecidos e um
funcionalismo público embasado em especificidade e impessoalidade. Não seria aceitável em sua conjectura qualquer forma burocrática que guardasse características
patrimonialista, pois isso significaria que o modelo em pauta não estaria plenamente consolidado e se teria uma mera desvirtuação do mesmo.

3. Repercussões patrimonialistas na gestão administrativa

3.1 Qual a face da burocracia no Brasil?

Raymundo Faoro (1925-1979) em Os Donos do Poder (1958) faz uma análise de embasamento histórico que penetra nas relações de poder entre as oligarquias coloniais até
o estabelecimento das estruturas burocráticas. Sustenta que o poder dos coronéis substituiu a farsa eleitoral da monarquia pela farsa eleitoral republicana, com a mesma
unanimidade (FAORO, 1958, p. 738). O autor frisa que:

O patrimonialismo pulveriza-se, num localismo isolado, que o retraimento do estamento secular acentua, de modo a converter o agente público num cliente, dentro de
uma extensa rede clientelista. O coronel utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura, não raro, a organização estatal e seu erário com os bens próprios
(FAORO, 1958, p. 757).

Faoro acastela a existência de uma burocracia patrimonialista na realidade brasileira. Argumenta que o patrimonialismo estatal incentiva o setor especulativo da Economia
de um lado, tendo seus interesses voltados ao desenvolvimento econômico sob o comando político, de outro. Faz uma crítica às concepções liberais e marxistas que admitem a
realidade histórica do Estado patrimonial como um fenômeno transitório, considerando que a própria realidade brasileira teria demonstrado a insistência secular da estrutura
patrimonial, resistente à experiência capitalista (FAORO, 1958, p. 866-869). Em suma, corrobora que:

O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de comando do chefe, junto à casa real, que se estende sobre o largo território,
subordinando muitas unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia dispersa assume caráter patriarcal, identificável no mando do fazendeiro, do senhor de
engenho e nos coronéis. Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos
bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com
divisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal. O caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e transações, não
desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como a
técnica de operação da economia. Daí se arma o capitalismo político, ou capitalismo politicamente orientado, não calculável nas suas operações, em terminologia
adotada no curso deste trabalho. A compatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional, equivocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das
chaves da compreensão do fenômeno histórico português-brasileiro, ao longo de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, centrado
em mercados condutores, numa pressão de fora para dentro (FAORO, 1958, p. 870-871).
Da mesma forma, o autor aponta que sobre a sociedade paira um aparelhamento político acima das classes que impera e governa, paradoxalmente, renovando-se. Haveria
uma burocracia relativa à expressão formal do domínio racional e o estamento burocrático, oriundo do patrimonialismo, que se perpetuaria em outro tipo social, apresentando um
caráter não transitório (FAORO, 1958, p. 871-872).
Por consectário, a estrutura administrativa brasileira estaria edificada, portanto, em uma burocracia patrimonialista compatível com o capitalismo, considerando a herança
histórica latente que carrega. O patrimonialismo estatal teria fulcro, pois, no estamento, que se perpetuaria ao longo dos séculos. Cumpre observar, contudo, que a desenvoltura
weberiana não concebe a simultaneidade dos domínios tradicional e racional-legal. Vale citar a notável explicação deCampante:

No amplo estudo tipológico que Weber faz do patrimonialismo, de forma alguma há, entre os tipos extremos do sultanismo (ou patrimonialismo “puro”, ou patriarcal) e
do feudalismo (ou patrimonialismo estamental), um salto abrupto ou uma passagem automática, mas sim um amplo leque de composições de poder específicas e
constantemente tensas. Nessa zona de transição, pensamos, encaixar-se-ia o patrimonialismo brasileiro – tomado em sentido amplo como dominação tradicional: nem
patrimonialismo patriarcal (ou “puro”) nem feudalismo, com uma camada de notáveis amparando-se na tradição para se autonomizar perante o príncipe (CAMPANTE,
2003, p. 160).

Uma imutabilidade histórica é tomada como base por Faoro, de sorte que o Estado não assumiria o papel de mantenedor de uma ordem jurídica, mas seria responsável por
intervir, planejar e dirigir a economia tendo em vistas os interesses particulares do grupo responsável pelo seu controle (o estamento), inexistido, dessa maneira, regras estáveis na
economia, pois estas atenderiam ao subjetivismo dos detentores do poder (CAMPANTE, 2003, p. 153-164).
A burocracia seria uma qualificação e não substância, cujo funcionalismo seria um veículo para a diferenciação social. O estamento feudal é em Weber um grupo que se
origina do patrimonialismo mas acaba negando-o em parte, e o estamento político burocrático para Faoro advém do patrimonialismo e reforça-o (CAMPANTE, 2003, p. 154-163).
A teoria de Weber no Brasil foi então utilizada equivocadamente para explicar elencados atrasos da sociedade Brasileira, associando-o a uma ruptura tida como necessária
para a conclusão de mudanças sociais que conduzem ao moderno. O autor tem sido, desde a década de 1950, um dos principais marcos teóricos estudados pela Sociologia
Brasileira, ao exemplo das interpretações de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Euclides da Cunha (VIANNA, 1999, p. 33-34).

3.2 O Modelo Gerencial: perigos da intimidade entre público e privado

No governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), em meio à corrida industrializante, a tentativa de aceleração do crescimento econômico abriu espaço para a criação de
mecanismos paralelos de governo. O desenvolvimento não conseguiu prosseguir em seu rumo e na década de 1990 a denominada Reforma do (Aparelho do) Estado no Brasil
sucedeu uma tradição autoritária e centralizadora de gestão; e consistiu, na verdade, mais na reforma da administração do Executivo do que em uma ampla reforma estatal
(PINHO, 1998, p. 60-63). Ou seja:

Configura-se, como em momentos anteriores, a ideia de dois mundos polares: um seria conspurcado, eivado de interesses clientelistas, populistas, um mundo que,
apesar de toda introdução de esquemas modernizadores não teria conseguido vencer o patrimonialismo; de outro lado, um mundo ágil, eficiente, marcado pelo
desimpedimento e, principalmente, livre dos vícios históricos da sociedade brasileira. Em outras palavras, esta concepção estaria marcada pela ideia de que o mundo da
administração indireta seria impermeável às características estruturais da sociedade brasileira onde ela, administração indireta, está também inserida (PINHO, 1998,
p. 67).

Nota-se que dentre as reformas mais significativas da história brasileira temos a anteriormente mencionada, da década de 1930 no Governo Vargas, que refletiu na
hipertrofia do Poder Executivo; subsequentemente a realizada na vigência da ditadura militar, sob representação do Decreto n. 200/ 67, a qual consistiu em medidas
centralizadoras encobertas por um discurso oficial de descentralização (que ocorreu essencialmente no âmbito da Administração Indireta) e que foi responsável por gerar o
embrião do modelo Gerencial no Brasil com a criação de autarquias e o movimento de submissão das fundações públicas ao regime privatístico (NOHARA, 2016, p. 40-54).
E enfim, na década de 1990, com Fernando Henrique Cardoso no poder e Bresser Pereira atuando como Ministro da Reforma, a crise econômica e inflação impulsionaram a
implantação de um novo modelo. O contexto histórico pós-ditadura foi apropriado pela gestão governamental para transmitir uma ideia de redemocratização associada à reforma,
assim como as disfunções produzidas pela desvirtuação da burocracia weberiana foram utilizadas como antônimo da modernidade e sinal de atraso. Assim, o argumento oficial fez
uso amoldado do New Public Management (NPM) dos países de common law para implantar o gerencialismo no “aparelho” estatal, expressão linguística utilizada para transmitir a
ideia de mudança instrumental e não orgânica (NOHARA, 2016, p. 77-89).
Bresser Pereira assevera que entre os motivos da Reforma estavam as tendências: liberalizante do comércio e privatizadora, iniciadas na década de 1980, além do
pressuposto neoliberal do Estado mínimo. Afirma também que a característica definidora do governo nas sociedades pré-capitalistas e pré-democráticas era a privatização do
Estado e a confusão patrimonial entre público e privado. Destaca que a burocracia de Weber adquiriu um sentido próprio no Estado Liberal ao enfatizar a superioridade da
autoridade racional-legal sobre o poder patrimonialista e que a nova administração pública deveria ser eficiente em proteger os bens públicos e garantir razoavelmente os direitos
individuais (BRESSER PEREIRA, 2005, p. 5-8).
Argumenta o ex-ministro, quanto à burocracia que “a estratégia talvez pudesse evitar a corrupção e o nepotismo, mas era lenta, cara e ineficaz” (BRESSER PEREIRA, 2005,
p. 8). Infere-se que há diversos paradoxos identificáveis na Reforma, tais como a flexibilização do controle e qualidade dos serviços, mediante a racionalidade do regime da
Constituição Federal de 1988, e as medidas de ajuste fiscal, que controlam a burocracia e as organizações (NOHARA, 2016, p. 86-145).
Dentre os pontos essenciais do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), alguns nos interessam mais no que se diz respeito ao enfoque patrimonialista.
Primeiramente a aproximação entre a esfera pública e a esfera privada, que guardava um viés de privatização do serviço público. A noção de se tratar o Estado como mero
coordenador e o deslocamento de atividades para o setor público não estatal (serviços que não evolver o exercício do poder estatal mas deve ser subsidiados por ele) por meio da
chamada “publicização” em nome de uma eventual “maior eficiência” (NOHARA, 2016, p. 79) abrem espaço para favoritismos e clientelismos a partir de uma diminuição
qualitativa do controle dos serviços e, notadamente, dos procedimentos inerentes à sua prestação.
Ao passo que a burocracia trouxe consigo mais transparência à administração pública, de modo que o cidadão passou a promover maior controle sobre a mesma, a
prerrogativa de “cidadão-cliente” deslocou a sua posição participativa para uma modalidade mínima, na qual o foco está nos resultados, colocando-o como destinatário final,
consumidor. Neste bojo, houve, logo, uma mudança no status do cidadão frente à administração pública.

3.3 O Gerencialismo e as consequências reformistas em face da Constituição Federal de 1988

Além dos paradoxos mencionados na reforma administrativa que teve como fundamento a instauração do modelo Gerencial, a perspectiva do “cidadão-cliente”, voltada em
regra à percepção dos resultados, traria uma ampliação da autonomia do Executivo, porém, na Administração Indireta, o ajuste fiscal objetivado obstaculizava a mesma, tal como
ocorreu com as Agências Reguladoras, baseadas no modelo estadunidense, que não disfrutaram de toda a liberdade antevista. Vale mencionar:

[...] há uma contradição entre os objetivos do ajuste fiscal e os de mudança institucional associados à performance, que reduz em muito as chances de cooperação
simultânea. Por esta razão, as reformas têm grandes chances de falhar. Tal contradição resulta em um não alinhamento de interesses entre a organização interessada em
elevar a performance e os atores estratégicos, uma vez que o ajuste fiscal tende a produzir mais controle burocrático, e a mudança institucional tende, por outro lado, a
demandar menos controle (REZENDE, 2002, p. 129).

No trecho acima, Rezende toca em um ponto crucial: todas as reformas experimentaram momentos de cisão entre as elites dominantes, que conduziram a uma mudança de
diretrizes políticas. No mais, é clara a contraposição entre as ideias liberais e a teoria da escolha pública, que afirma que os princípios econômicos devem ser aplicados para aclarar
temas políticos (ARAÚJO; PEREIRA, 2012, p. 1182) somada à atenção dada às exigências internacionais, peculiarmente no que se refere à globalização, que refletiam, junto ao
ajuste fiscal, medidas neoliberais que explanavam o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social e colocavam os direitos sociais em segundo plano.
A racionalidade imprimida na Ordem Constitucional instaurada em 1988 enfrentou disparidades com os ditames postulados pelo modelo Gerencial, conformado pelo Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), conflitos que geraram a Emenda Constitucional nº 19/98. Tais impasses, foram, inclusive, explicitados no próprio texto do
PDRAE, o qual colocava a Constituição Cidadã como representativa de um retrocesso burocrático (NOHARA, 2012, p.120-121).
A Emenda Constitucional nº 19/98 buscou um ajuste dentre as divergências em pauta, essencialmente no que se refere à identificação da necessidade de um regime jurídico
diferenciado para as estatais atuantes no domínio econômico. O discurso gerencial propagava a redefinição do papel do Estado, operando a sua diminuição no que tange à
produção e desenvolvimento de bens e serviços. Em outras palavras, a face neoliberal enraizada no discurso reformista não propunha efetivamente medidas que possibilitasse essa
mudança, considerando que os papéis do Estado já haviam sido constitucionalmente definidos, ao exemplo do artigo 3º da Norma Fundamental, que dispõe sobre os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil. Apesar disso, a reforma Gerencial foi associada, pelo discurso oficial, a um viés redemocratizante e a ações que trariam maior
funcionalidade ao aparelho Estatal (NOHARA, 2012, p. 122).
O conteúdo da Constituição de 1988 conferiu ênfase aos direitos sociais e rompeu com a tendência intervencionista da Constituição de 1967/1969, considerando dentre as
atividades essenciais do Estado a seguridade, assistência social etc. (Título VIII), podendo as demais atividades sofrer transferência à iniciativa privada (SANT’ANNA, 2005,
p. 43-59).
Frisa-se que a ênfase dada à eficiência e qualidade na prestação de serviços, bem como a adoção do princípio da subsidiariedade, que organiza atribuições em função da
complexidade e do atendimento dos interesses sociais, ou seja, o cidadão-cliente, acabaram por gerar uma postura mais individualista, operando uma minimização da dimensão
político-participativa da cidadania. Quer dizer, ao passo que uma gama de direitos passou a ser constitucionalmente protegidos a estrutura administrativa exigida pelo
Gerencialismo significou uma expectativa de retorno, de sorte que o papel ativo do cidadão foi sendo reduzido (SANT’ANNA, 2005, p. 43-59).
Importante, ainda, salientar que o artigo 37, II, da Constituição Federal de 1988 trouxe a obrigatoriedade da investidura em cargo ou emprego público dependente de
aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos. A impessoalidade burocrática teve a chancela constitucional para assegurar a sua manutenção, contudo, a
pessoalidade nas relações administrativas continuou presente, principalmente no que se refere à Administração Indireta, em se tratando de cargos de confiança, por exemplo.
Assim, as brechas deixadas pelo histórico patrimonialista concederam espaço à troca de favores e, enfim, à persistência de uma administração paralela, que traça um contínuo
embate com o garantismo da Norma Fundamental, buscando em suas raízes, a perpetuação do poder de grupos dominantes.

4. Conclusão

Do exposto, conclui-se que a estrutura territorial e política do Brasil Colônia conduziu ao isolamento de pequenas regiões em um território vasto. O país já começava a sua
história com dívidas à Coroa Portuguesa, que fazia “vistas grossas” à gradual formação de um poder local vocalizado à autonomia. Assim, o coronelismo se formou como um
fenômeno temporal (da República Velha à década de 1930) a partir da hegemonia social dos latifundiários e chefes locais.
Os coronéis mantinham a sua posição não apenas pela posse da terra, mas pela capacidade de conferir benefícios e exigir favores da população, promovendo benfeitorias
onde o Poder Público não chegava e obrigando, em contrapartida, os trabalhadores rurais, transformados em eleitores pelo Constituição de 1891, a provar a sua lealdade pelo voto
de cabresto. Oprimindo seus adversários pelo mandonismo e preenchendo os cargos públicos conforme seus interesses pelo filhotismo, o poder privado local detinha, além de
tudo, mando sobre a polícia e o apoio do governo estadual, que mantinha prática semelhante com o governo central através da política dos governadores.
Portanto, a vida era precária e miserável para os trabalhadores rurais e preponderava a descentralização administrativa, a falta de autonomia Municipal, a hipertrofia do poder
privado e a confusão, acima de tudo patrimonial, entre as esferas pública e privada. Destarte, os Municípios rurais, ao enfrentarem essa rarefação do Poder Público, também
suportavam a desorganização dos serviços, conjuntamente à contínua formação de uma administração paralela, desde a Colônia, com expressão no Governo Vargas sob a figura
dos funcionários extranumerários, que não dependiam de concurso público e que poderiam ser contratados a qualquer tempo.
Basicamente, os chefes governistas tinham em suas mãos uma autonomia extralegal, conquanto as Municipalidades se atrofiavam cada vez mais pela diminuição e supressão
de suas atribuições autônomas, pelo excesso de encargos, insuficiência orçamentária, limitações ao princípio da eletividade de sua administração e intervenção política dos pleitos
locais. O coronelismo era, enfim, um sistema político nacional.
Cumpre ainda pontuar que as Câmaras Municipais foram sendo preenchidas, desde a época colonial, por grandes proprietários de terra. O patrimonialismo nasce, então,
como modelo na administração pública tendo por base a pessoalidade das relações e imprimindo um domínio de tipo tradicional, conforme a concepção weberiana. Quer dizer, em
outras palavras, a trajetória do patrimonialismo corresponde ao processo de formação das elites dominantes no cenário político brasileiro.
Os vícios que acompanharam a Administração Pública desde sua formação incluem a negativa de exclusão plena da impessoalidade: vale mencionar, a flexibilização do
serviço público ocorre em determinados espaços, que se transformam em lacunas e são preenchidos pelo clientelismo, mandonismo e corrupção. Inexiste regra fixa na política, se
sorte que há a manutenção de um estamento, tendo o patrimonialismo caráter fixo na política nacional.
Fatores como a universalização do sufrágio e o voto secreto, a industrialização, a urbanização e a formação de uma classe média contribuíram para um desaparelhamento do
e remodelamento do papel do Estado para o fim do coronelismo, mas não das relações patrimoniais. Importantes mudanças foram introduzidas pelo Código Eleitoral de 1932,
melhorando demasiadamente o sistema das eleições, não contendo, contudo, a falsificação dos votos e, especialmente, a violência nessa ceara, que se propaga até os dias de hoje.
Por conseguinte, a burocracia de Weber foi utilizada no Brasil com o intuito de imprimir profissionalismo e uma organização racional-legal à Administração, inclinada a
garantir a divisão dos trabalhos entre seus participantes, a existência de regras antevistas, a separação entre o patrimônio pessoal e organizacional e a seleção para os cargos
públicos com base em qualificações técnicas. Contudo, não foi plenamente instaurada na realidade brasileira de sorte que as adaptações realizadas se converteram em verdadeiras
deturpações. Quer dizer, a burocracia possui suas próprias patologias, porém representou um enorme avanço no Brasil em termos de funcionalismo público e
controle procedimental.
Raymundo Faoro defende, em Os Donos do Poder, uma burocracia patrimonialista. Apesar de ser incontestável o fato de o patrimonialismo ter persistido na estrutura
política brasileira, concorda-se, todavia, com Campante (2003), que explana que Weber diferencia o patrimonialismo puro do feudalismo e que o Brasil estaria em uma transição
entre os dois, inadmitindo-se a coexistência entre domínio tradicional e domínio racional-legal.
A burocracia foi, assim, desvirtuada quando da sua instituição no Brasil, sofrendo um desmerecimento quando o argumento oficial da Reforma do Aparelho do Estado da
década de 1990 defendeu a desburocratização como forma de alcançar a eficiência e compensar atrasos. Da mesma maneira, foi relacionada ao contexto redemocratizante de um
Brasil marcado por uma tradição autoritária e centralizadora.
A Reforma em apreço foi paradoxal, principalmente, na medida em que combinou o ajuste fiscal (que tem intrínseco um poder de controle), a flexibilização dos serviços
públicos e a racionalidade da Constituição Cidadã com as ideias neoliberais. A burocracia trouxe consigo mais transparência à administração pública, de modo que o cidadão
passou a promover maior controle sobre a mesma.
Diferentemente, a prerrogativa gerencialista trouxe a noção do “cidadão-cliente”, que minimizou a posição participativa do cidadão. E essa ânsia de aferimento e enfoque
nos resultados em regra traria uma ampliação da autonomia do Executivo, porém, na Administração Indireta, o ajuste fiscal objetivado obstaculizava a autonomia administrativa,
tal como ocorreu com as Agências Reguladoras.
Por fim, cumpre destacar, no Modelo Gerencial, que encontrou impasses frente à Constituição de 1988, perante o embate do discurso neoliberal com a racionalidade da Carta
protetiva de direitos, sobrevive uma administração paralela, bem como a exasperação da proximidade entre o público e privado (que retoma as suas origens patrimonialistas), a
diminuição do tamanho do Estado, o incentivo à privatização e o consequente deslocamento dos direitos fundamentais sociais para um segundo plano, a persistência do
clientelismo, nepotismo e mandonismo, a manobra das massas eleitorais, a violência e opressão nas eleições (que hoje se manifestam de diversas formas, inclusive pela mídia) e a
corrupção que permeiam o paradigma brasileiro, além da contínua hipertrofia do Poder Executivo e manutenção de grupos dominantes no poder.
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WEBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. São Paulo: Editora Universidade de Brasília
(UnB), 2004. v. 2.

Notas de Rodapé
55 Thaís Duarte Zappelini é Mestranda (2016) e bolsista (Mackpesquisa, mérito bolsa-MP, 2017) em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM). É bacharel em Direito pela UPM (2016); estudou como bolsista na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
(2014). É membro da Comissão de Eventos; da Comissão de Acompanhamento Científico; do Grupo de Pesquisa em Direitos Sociais e Políticas Públicas e
do Grupo de Pesquisa Filosofia do Direito (Neo) Kantiana da UPM.
56 O autor é mestrando em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
E-mail: [email protected]
57 DALLARI, Dalmo de Abreu. Regime constitucional dos servidores públicos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 28.
58 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 150.
59 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 490.
60 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 683. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 set. 2017.
61 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
2.
62 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Op. cit., p. 2-6.
63 MACHADO JÚNIOR, Agapito. Concursos públicos. São Paulo: Atlas, 2008. p. 9.

4. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS PARA ACESSO AOS CARGOS EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL

Vicente Nicola Novellino56

1. Introdução

Todo o brasileiro tem o direito de participar da Administração Pública de seu país abrangidas as três esferas de poder: municipal, estadual e federal. Seu acesso aos cargos,
empregos e funções públicas deve ser definido por um conjunto de regramentos claros e transparentes que é o que se espera de um regime democrático que tem dentre seus
principais pilares a obediência aos mandamentos legais que caracterizam o estado de direito.
O concurso público de provas ou de provas e títulos é o meio mais democrático para acesso a esse rol de cargos, empregos e funções públicas, não obstante existirem
também outras formas de participação por meio das funções de confiança, ou seja, os cargos comissionados de livre nomeação que fazem parte de umGoverno.
O objeto deste capítulo será, contudo, analisar os fundamentos constitucionais para acesso aos cargos, empregos e funções públicas que representam toda a base jurídica que
rege o assunto e sobre a qual todos os gestores públicos devem se apoiar para prover não só os cargos vagos como também para aqueles que porventura venham a ser, por
lei, criados.
A Constituição Federal de 1988 (CF), dentre seus vários dispositivos pertinentes ao tema, fixa de forma clara os princípios que devem ser observados os quais compõe,
também, todo um conjunto normativo da Administração Pública.
Com base na Lei Maior, todo o regramento infraconstitucional, tais como legislação específica e instrumentos de direito administrativo como o edital de um concurso
público, deverá seguir esse alinhamento, não obstante existirem alguns aspectos que permitem ao administrador público exercer o seu poder discricionário na fixação de certos
requisitos específicos desde que pertinentes ao cargo, empego ou função pública.
Assim sendo, com base na doutrina e jurisprudência serão tratados aspectos dessa matéria para que o leitor tenha uma visão geral e específica sobre a questão referente aos
fundamentos constitucionais que regem os concursos públicos no Brasil.

2. A previsão constitucional

A Constituição Federal de 1988, juntamente com as alterações introduzidas pelas Emendas Constitucionais nº 19 (Reforma Administrativa) e 20 (Reforma Previdenciária)
estabeleceu os princípios fundamentais da administração pública direta ou indireta aplicáveis aos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como
disciplinou as formas de acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas, sendo o concurso público de provas ou de provas e títulos o veículo principal e também
mais importante:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da
lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a
complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998

Como se verifica na parte final do inciso II, a Constituição estabelece outras exceções, como as referentes à nomeação dos membros dos Tribunais (arts. 73, § 2º, 94, 101,
104, parágrafo único, II, 107, 111-A, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, 119, II, 120, III, e 123).
A Lei principal do país assegurou, assim, a qualquer um do povo o direito de se tornar um servidor público (em sentido amplo), pelo princípio da isonomia, bastando apenas
que demonstre possuir os requisitos necessários ao exercício das funções públicas:

Em resumo, todo brasileiro tem constitucionalmente assegurado o direito de, por qualquer forma, participar da administração pública, direta ou indiretamente, mesmo
quando ela se apresenta com uma roupagem de pessoa jurídica de direito privado. Para que se tenha uma ideia da importância do tema, basta dizer que ele figura no
texto da Declaração Geral dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948, com o seguinte enunciado: ‘Cada indivíduo tem
o direito ao ingresso, sob condições iguais, no serviço de seu país’57.

Com isso, foi possível à Administração criar um corpo de servidores técnicos, especializados, escolhidos mediante concurso público. O que o legislador constitucional
pretendeu foi afastar o que alguns doutrinadores chamam de “spoil’s system” (sistema de despojos) que consiste na troca de servidores de acordo com cada mudança de governo o
que provoca uma descontinuidade nos serviços, sendo extremamente prejudicial ao interesse público.
É importante frisar que a CF previu que determinados cargos são privativos de brasileiros natos sendo eles: os de Presidente e Vice-Presidente da República; de Presidente
da Câmara dos Deputados; de Presidente do Senado Federal; de Ministro do Supremo Tribunal Federal; de carreira diplomática; de Oficial das Forças Armadas e de Ministro
de Estado da Defesa (Artigo 12 § 3º).
A Constituição também reservou aos brasileiros natos seis assentos no Conselho da República, sobre o qual Moraes explica o seguinte:
O Conselho da República é órgão superior de consulta do Presidente da República e dele participam: O Vice-Presidente da República; o Presidente da Câmara dos
Deputados; o Presidente do Senado Federal; os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados, os líderes da maioria e da minoria no Senado Federal; o
Ministro da Justiça; seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo
Senado Federal e dois eleitos pela Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução58.

Seguindo a tradição pátria, a Lei Maior estabeleceu, ainda, que será de iniciativa privativa do Presidente da República projetos de lei que disponham sobre a criação de
cargos, empregos ou funções públicas na administração direta e autárquica (CF, artigo 61, § 1º, II, a). A mesma orientação deve ser seguida pelos Estados-membros, Distrito
Federal e Municípios.
A Constituição do Estado de São Paulo, no que se refere ao acesso aos cargos, empregos e funções públicas também disciplina o tema, perfeitamente alinhado à Lei Maior:

Artigo 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é
obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preenchem os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da
lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional Estadual nº 21, de 14/02/2006).
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para
cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;
III – o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período. A nomeação do candidato aprovado obedecerá à ordem
declassificação;
IV – durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, o aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade
sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira;
[...]

Na regulamentação do direito de acesso ao serviço público, é possível a fixação de determinados requisitos, desde que sejam observados os princípios constitucionais da
Administração Pública e compatíveis com a natureza do cargo, emprego ou função a serem desempenhados pelo futuro servidor, conforme se depreende da análise e interpretação
dos dispositivos constitucionais.
O artigo 39, § 3º da CF estabelece que deve ser aplicado aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no artigo 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XV, XVI, XVII, XIX, XX,
XXII e XXX, bem como estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.
Da interpretação do dispositivo citado no parágrafo anterior, com o inciso I do artigo 37 da CF, chega-se à conclusão de que não basta a previsão legal desses requisitos, mas
eles devem ser justificados em face das peculiaridades do cargo ou função do servidor, consagrando-se a aplicação do princípio da razoabilidade como limitador da
discricionariedade da Administração Pública.
Um exemplo de requisito diferenciado que é estabelecido em alguns concursos públicos é o limite de idade, mínimo ou máximo, para um determinado cargo público. Nesse
caso não se pode falar em discriminação abusiva se tal limitação tiver pertinência lógica com o exercício da função pública. Nesse mesmo sentido é a opinião dos doutrinadores:
Embora o objetivo do constituinte seja o de proibir o limite de idade e outros tipos de discriminação, a proibição não pode ser interpretada de modo absoluto; primeiro
porque o artigo 37, I, deixa para a lei ordinária a fixação dos requisitos de acesso aos cargos, empregos e funções; segundo, porque, para determinados tipos de cargo, seria
inconcebível a inexistência de uma limitação, quer em relação a sexo, quer em relação a idade. Não se poderia conceber que, para o cargo de guarda de presídio masculino, fossem
admitidas candidatas do sexo feminino, ou que para certos cargos policiais fossem aceitas pessoas de idade mais avançada. Como diz Celso Antônio Bandeira de Mello (1978,
p. 24), ‘as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade
diferencial acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida’. E acrescenta que, ‘por via do princípio da igualdade, o que a ordem
jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas’59.
Com relação ao requisito idade, presente em alguns concursos públicos específicos, cabe mencionar também o disposto na Súmula nº 683, do Supremo Tribunal Federal, a
qual estabelece que: o limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face dos art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza
das atribuições do cargo a ser preenchido60.
Não obstante a expressa disposição na Constituição Federal acima mencionada (artigo 39 § 3º) a Constituição do Estado de São Paulo tem previsão diversa: é vedada a
estipulação de limite de idade para ingresso por concurso público na administração direta, empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia e fundações instituídas ou
mantidas pelo Poder Público, respeitando-se apenas o limite constitucional para aposentadoria compulsória (inciso XXVII, do artigo115).
Assim poderia parecer uma incompatibilidade de disposições para a mesma questão que é a possibilidade de fixação de requisitos diferenciados para provimento de cargos
públicos. Mas aplicando-se o princípio da supremacia da Constituição Federal o dispositivo do diploma estadual deve ser interpretado de tal maneira que se compatibilize com a
redação do artigo 39, § 3º mencionado, pelo qual é possível a fixação de um requisito diferenciador num cargo público não se podendo falar em ofensa à igualdade como fator de
discriminação de qualquer natureza.
Determinadas funções de natureza pública tem peculiaridades próprias como por exemplo as carreiras policiais para as quais se exigem determinados requisitos, tais como a
idade para ingresso e a estatura física, perfeitamente compatíveis com o escopo constitucional.

3. O concurso público

Maia e Queiroz, citando Cretella Júnior, afirmam que desde a antiguidade os governantes se preocuparam com um sistema que pudesse melhor escolher os cidadãos para
ocuparem os cargos do Estado e agir com legitimidade na administração da coisa pública61.
Assim, historicamente podem ser apontados como formas de ingresso nos cargos públicos: sorteio, compra e venda, herança, arrendamento, nomeação, eleição e concurso.
O sorteio, que era considerado um processo de inspiração divina, foi muito utilizado na antiguidade clássica, mais especificamente pelos gregos de Esparta e Atenas. Por
esse sistema afastavam-se as escolhas pessoais e os favoritismos, porém, privilegiava-se o acaso, ou seja, nem sempre o sorteado tinha as melhores condições técnicas e
conhecimentos para ocupar um cargo público.
A compra em venda foi muito utilizada na Idade Média, sendo implantado na França, tendo sido criado o escritório de vendas eventuais, em 1529. Os cargos públicos eram
transformados em objetos de valor econômico e oferecidos aos membros mais ricos da sociedade, sendo inclusive suscetíveis de transmissão hereditária. Esse sistema tinha como
virtude o aumento patrimonial do Estado, mas, por outro lado, nem sempre o cargo comprado era ocupado pelo maiscompetente.
A transmissão hereditária de cargos públicos consistia na passagem de um cargo de pai para filho pelo vínculo sanguíneo. Esse também se revelou um sistema ineficaz na
medida em que os sucessores não tinham a mesma competência e zelo iguais aos antecessores e muitos ainda delegavam esses ofícios a substitutos menos preparados e
sem decoro.
O arrendamento era a cessão de cargos públicos pelo Estado aos particulares, mediante contraprestação pecuniária e por tempo determinado. Diferenciava-se da compra e
venda pelo fato do Estado não transferir tal múnus aos particulares.
A nomeação era a livre escolha do Governo na indicação de pessoa para ocupar determinado cargo público, não havendo nenhuma regra clara para balizamentos dessas
indicações. Dessa forma, privilegiavam-se os apadrinhados, bem como se evidenciavam condições para o nepotismo.
O sistema das eleições era um meio de acesso aos cargos administrativos não se confundindo com o sistema eleitoral dos parlamentares e Chefes do Poder Executivo. Por
este método era possível ao povo de maneira direta ou indireta escolher os ocupantes dos cargos administrativos, porém, como nos sistemas já expostos, muitas vezes não era
eleito o mais capaz e grupos dominantes conduziam os processos eleitorais da forma como lhes convinha. Tendo sua origem na França disseminou-se nos Estados Unidos
passando a fazer parte do direito público deste país pelo qual em muitos Estados é utilizado para vários cargos inclusive a magistratura.
Dos sistemas até agora mencionados, no Brasil, a nomeação é utilizada para a escolha de alguns membros dos tribunais do Poder Judiciário e outros cargos de relevo. As
eleições são usadas em regra para escolha de agentes políticos e, excepcionalmente, de agentes públicos como juiz de paz (art. 98 II, da CF/88), membros do Conselho da
República do qual se falou anteriormente (art. 89, VII, da CF/88) e dos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público (art.103-B, XIII, e art. 130-A, VI, ambos da
CF/88).
Mas sem dúvida é o concurso público o melhor e mais democrático sistema de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, pois garante a indisponibilidade do interesse
e a escolha da pessoa mais bem preparada e capacitada para exercer o “múnus” público.
O processo de seleção por meio de concurso público tem sua origem na França a partir de Napoleão e hoje o sistema mais usado para escolha dos administradores públicos
nas mais modernas democracias62.
No Brasil, o marco histórico do concurso público foi a Constituição de 1934, na qual essa modalidade de seleção de pessoas aos cargos públicos foi elevada a um princípio
constitucional conforme dispunha o § 2º, art. 170: a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e nos demais que a lei determinar, effectuar-se-á
depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos (sic).
As Constituições de 1937 e de 1946 mantiveram a mesma linha da Constituição de 1934, ou seja, exigia-se o concurso público para a primeira investidura nos cargos de
carreira, como também para os demais cargos, desde que houvesse exigência na legislação infraconstitucional.
A Constituição de 1967, com relação ao concurso público, assim dispunha:
Art 95 – Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, preenchidos os requisitos que a lei estabelecer.
§ 1º – A nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos.
§ 2º – Prescinde de concurso a nomeação para cargos em comissão, declarados em lei, de livre nomeação e exoneração.
§ 3º – Serão providos somente por brasileiros natos os cargos da carreira de Diplomata, os de Embaixador e outros previstos nesta Constituição.

No mesmo sentido foi a Emenda Constitucional nº 1, com as alterações da Emenda Constitucional nº 8, de 1977:
Art. 97. Os cargos públicos serão acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei.
§ 1° A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei.
§ 2° Prescindirá de concurso a nomeação para cargos em comissão, declarados em lei, de livre nomeação e exoneração.
§ 3º Nenhum concurso terá validade por prazo maior de quatro anos contado da homologação

Assim, as Constituições de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 consagraram essa forma de seleção por intermédio dos concursos públicos de provas ou de provas e
títulos, vedando a utilização da modalidade de seleção por concurso público somente por títulos como era possível nas Constituiçõesanteriores.
E por derradeiro a Constituição Federal de 1988 consagrou o concurso público como meio constitucional de que se vale a Administração Pública (direta e indireta) para
garantir o acesso das pessoas aos cargos, empregos e funções públicas, preservando-se a indisponibilidade do interesse público, a isonomia, a moralidade e a eficiência dos
serviços públicos.
O termo vem do latim, conforme explica De Plácido e Silva apud Machado Júnior:

[...] Concursus, de concurrere; possui, de um modo geral, sentido análogo a concorrência, pois que significa o ato ou fato de concorrer, em virtude do que mostra, em
regra, a participação de várias pessoas a um ato, ou a afluência de coisas ou atos para composição de outra coisa, evidência de um fato, ou constituição de um ato. [...]
Na técnica do Direito Administrativo e do Direito Civil, embora não se prive o vocábulo de seu sentido originário, de afluência de disputantes à conquista de
determinado prêmio ou promessa, possui a função de designar o processo de seleção, posto em prática por uma pessoa ou pela autoridade pública, a fim de escolher
candidatos de um trabalho ou ao exercício de um cargo63.

Meirelles ao conceituar concurso público apresenta suas principais características:

O concurso é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo
tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se, pois,
os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se
mantém no poder leiloando empregos públicos.[...] Os concursos não têm forma ou procedimento estabelecido na Constituição, mas é de toda a conveniência que sejam
precedidos de uma regulamentação legal ou administrativa, amplamente divulgada, para que os candidatos se inteirem de suas bases e matérias exigidas. Como atos
administrativos, devem ser realizados através de bancas ou comissões examinadoras, regularmente constituídas com elementos capazes e idôneos dos quadros do
funcionalismo ou não, e com recurso para órgãos superiores, visto que o regime democrático é contrário a decisões únicas, soberanas e irrecorríveis. De qualquer
forma, caberá sempre reapreciação judicial do resultado dos concursos, limitada ao aspecto da legalidade da constituição das bancas ou comissões examinadoras, dos
critérios adotados para o julgamento e classificação dos candidatos. Isto porque nenhuma lesão ou ameaça a direito individual poderá ser excluída da apreciação do
Poder Judiciário (CF, art. 5º., XXXV)64.
O concurso público é uma sucessão ordenada de atos, que correspondem às etapas e se destina a selecionar o candidato mais capacitado de acordo com os requisitos
estabelecidos para determinado cargo ou emprego público. Alguns doutrinadores entendem que o objeto material do concurso são os cargos ou empregos públicos vagos que
necessitam de preenchimento para continuidade do serviço público. E por objeto jurídico o preenchimento desses lugares vagos na estrutura administrativa por pessoas
selecionadas pelo concurso, criando um vínculo funcional entre o agora servidor público e o Estado.
Há autores que mencionam a diferença entre concurso público e processo de seleção pública. O primeiro, como já se viu, destina-se a selecionar pessoas para os cargos ou
empregos públicos permanentes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e das respectivas entidades autárquicas e fundacionais, das empresas públicas e das sociedades
de economia mista. O processo de seleção pública se aplica às pessoas jurídicas de direito público e às de direito privado no que se refere às contratações de pessoal não sujeitas ao
concurso público como, por exemplo, a contratação temporária para atender a excepcional interesse público prevista no inciso IX do artigo 37 da CF.

4. Princípios constitucionais do concurso público

O concurso público, como já se viu, é o mais democrático meio para acesso aos cargos empregos e funções públicas. A Administração Pública por sua vez é balizada por um
conjunto de princípios de ordem constitucional sobre os quais se fundamentam todas as demais normas legais. Essas regras básicas também são chamadas pelos doutrinadores de
princípios constitucionais da Administração Pública, os quais têm como objetivo fundamental a garantia da honestidade na gerência da res pública.
A Constituição Federal no artigo 37 caput consagra esses princípios: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].
Além desse rol taxativo há uma série de outros princípios e disposições constitucionais e infraconstitucionais que se aplicam à gestão da coisa pública sobre os quais se
alicerça todo o regramento jurídico do concurso público.

4.1 Princípio da legalidade

Esse importante princípio se encontra previsto no artigo 5º II da Constituição Federal e tem uma incidência especial sobre os atos da Administração Pública. Significa que o
administrador público só pode fazer o que a lei lhe autorize, inexistindo assim, qualquer participação da vontade subjetiva, ao passo que ao particular é permitido fazer tudo o que
a lei não proíbe.
O administrador é mero executor e todos os seus atos visam à consecução do interesse público. No entanto, a lei muitas vezes deixa a critério do administrador público uma
pequena margem para decisão, para a qual se utiliza do chamado poder discricionário, que nada mais é do que uma liberdade de ação dentro de certos critérios, os quais, em se
tratando de concurso público, podem variar conforme a natureza do cargo a ser preenchido.
Contudo a plena eficácia na aplicação deste princípio constitucional poderá ser aferida pela previsão do controle dos atos da Administração Pública pelo Poder Judiciário:

A observância do referido preceito constitucional é garantida por meio de outro direito assegurado pelo mesmo dispositivo, em seu inciso XXXV, em decorrência do
qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão”, ainda que a mesma decorra de ato da Administração. E a Constituição ainda prevê
outros remédios específicos contra a ilegalidade administrativa, como a ação popular, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança e o mandado de
injunção; tudo isto sem falar no controle pelo Legislativo, diretamente ou com auxílio do Tribunal de Contas, e no controle pela própria Administração65.

4.2 Princípio da impessoalidade

Também conhecido como princípio da finalidade pública, ou seja, o ato é praticado pelo agente público em nome do ente estatal. Meirelles, ao referir-se a esse princípio,
assim se manifestou:
O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (art. 37, caput), nada mais é que o clássico da finalidade, o qual impõe ao administrador público que
só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato,
de formaimpessoal.
Esse princípio, também deve ser entendido para excluir a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos sobre suas realizações administrativas (CF, art. 37,
§1º).
E finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. Todo ato que se apartar desse objetivo sujeitar-se-á a
invalidação por desvio de finalidade, que a nossa lei da ação popular conceituou como o ‘fim diverso daquele previsto explícita ou implicitamente, na regra de
competência’ do agente (Lei 4.717/65, art. 2º., parágrafo único, ‘e’).
Desde que o princípio da finalidade exige que o ato seja praticado sempre com finalidade pública, o administrador fica impedido de buscar outro objetivo ou de
praticá-lo no interesse próprio ou de terceiros66.

O princípio da impessoalidade deriva da ideia de indisponibilidade do interesse público e do postulado da igualdade e visa evitar a interferência do agente público que,
movido por convicções políticas, ideológicas ou religiosas, por exemplo, influencie uma decisão, seja por preferências ilegítimas ou perseguições abomináveis, o que seria
incompatível com sua conduta no serviço público.
Mello sintetiza o princípio da impessoalidade e afirma que:

[...] se traduz a idéia de que a Administração tem de tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem
perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses
sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie67.

4.3 Princípio da moralidade

Com a Constituição de 1988 a moralidade se tornou um parâmetro fundamental para validar todo o ato praticado pelo administrador público. Di Pietro ao referir-se a esse
princípio afirma que: exige da Administração comportamento não apenas lícito, mas também consoante com a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os
princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade68. De uma forma bem sintética significa dizer que nem sempre um ato legal seja necessariamente honesto.

Pode-se pensar na dificuldade que será desfazer um ato, produzido conforme a lei, sob o fundamento de vício de imoralidade. Mas isso é possível porque a moralidade
administrativa não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de regras e princípios da Administração. A lei pode
ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar alguém deliberadamente, ou com o intuito de
favorecer alguém, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente comprometido com a moralidade administrativa69.

A não observância por parte de governantes e agentes públicos desse princípio importa em atos de improbidade administrativa. Portanto, a probidade é um dever que deve
caracterizar qualquer ato dos agentes públicos. Medauar explica que:

Na linguagem comum, probidade equivale a honestidade, honradez, integridade de caráter, retidão. A Improbidade administrativa tem um sentido forte de conduta que
lese o erário público, que importe em enriquecimento ilícito ou proveito próprio ou de outrem no exercício de mandamento, cargo, função, emprego público70.

4.4 Princípio da publicidade

A publicidade dos atos do administrador público se relaciona com a necessidade de transparência ou visibilidade da gerência da coisa pública evitando assim o desconhecido
conteúdo de processos arbitrariamente sigilosos e sobretudo, proporciona o controle desses atos seja pela via administrativa ou judicial. A regra é a publicidade que só poderá
deixar de ser observada se o interesse público assim o exigir.
Em regra, os atos administrativos são publicados no Diário Oficial, tanto na esfera Federal, como Estadual e Municipal. Também estará sendo atendido o princípio da
publicidade, por exemplo, se um edital for afixado em lugar próprio de divulgação de atos ao público.
Mais uma vez vale a pena citar Medauar, a qual, referindo outros doutrinadores, oferece uma visão bem clara da importância desse princípio aos administradores públicos:

Ao discorrer sobre democracia e poder invisível, Bobbio caracteriza a democracia, sob tal prisma, como o ‘governo do poder público em público’, atribuindo a este
último vocábulo o sentido de ‘manifesto’, ‘visível’ (O futuro da democracia, 1986, p. 84). Por sua vez, Celso Lafer pondera que ‘numa democracia a visibilidade e a
publicidade do poder são ingredientes básicos, posto que permitem um importante mecanismo de controle ‘ex parte populi’ da conduta dos governantes... Numa
democracia a publicidade é a regra básica do poder e o segredo, a exceção, o que significa que é extremamente limitado o espaço dos segredos de Estado’ (A ruptura
totalitária e a reconstrução dos direitos humanos, 1988, p. 243-244)71.

4.5 Princípio da eficiência

O princípio da eficiência foi acrescido ao caput do artigo 37 da CF por força da EC nº 19/98 e norteia toda a Administração Pública. Significa que o administrador deve agir
de modo rápido e preciso para conseguir os melhores resultados possíveis que atendam ao interesse público:

O administrador público precisa ser eficiente, ou seja, deve ser aquele que produz o efeito desejado, que dá bom resultado, exercendo suas atividades sob o manto da
igualdade de todos perante a lei, velando pela objetividade e imparcialidade.
Assim, princípio da eficiência é aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de
suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios
legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social.
Note-se que não se trata da consagração da tecnocracia, muito pelo contrário, o princípio da eficiência dirige-se para a razão e fim maior do Estado, a prestação dos
serviços sociais essenciais à população, visando a adoção de todos os meios legais e morais possíveis para satisfação do bem comum72.

Todos os princípios até agora citados se referem basicamente ao texto do artigo 37 caput da Constituição Federal, que são a base para toda a AdministraçãoPública.

4.6 Princípios correlatos aplicáveis aos concursos públicos

Os doutrinadores, porém, ao tratarem de concurso público, mencionam vários outros dispositivos que se podem chamar também de princípios e são aplicáveis a todo o
processo de seleção de forma a garantir aos candidatos a igualdade de oportunidades e principalmente clareza na regras e lisura na condução desse processo73.

4.6.1 Princípio da igualdade

O Princípio da Igualdade certamente é um dos princípios mais importantes em matéria de concurso público. Trata-se de garantir a todos os candidatos a isonomia plena
tendo em vista que, como já se mencionou, a CF é clara nesse aspecto: os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei [...].
Significa estabelecer regras para que todos possam concorrer ao cargo público em igualdade de condições e propiciar que o concorrente mais bem preparado consiga êxito
em conquistar uma das vagas.
Não obstante tal princípio, há unanimidade na doutrina e jurisprudência no sentido de que é possível à Administração fixar determinados critérios de acesso, desde que a
natureza do cargo assim o exija (CF/88 artigo 39 § 3º com redação dada pela EC nº 19/98), conforme já exposto no item referente à previsão constitucional.

4.6.2 Princípio da competitividade

Em decorrência do princípio da eficiência administrativa a competitividade é a forma de se obter as melhores pessoas para prestar serviços ao Estado. Oedital não deve
estabelecer restrições e exigências desnecessárias ao processo seletivo como, por exemplo, regras excessivamente rigorosas impondo um sacrifício desnecessário aos candidatos e
prejudicando a competitividade em face do natural desinteresse que ocorreria nesses casos.
Como exemplo prático de ofensa ao princípio da competitividade seria a transformação de empregos em cargos públicos, ou seja:

Ademais, a transformação do emprego público em cargo estatutário, com o aproveitamento do empregado público como titular do cargo público assim criado, sem
novo concurso, ofende o princípio da competitividade, jacente no princípio da isonomia. De fato, inúmeros pretendentes ao ingresso no quadro de pessoal da
Administração Pública, desinteressaram-se do certame para ocupar um emprego público porque seu regime era celetista e não lhe oferecia maiores atrativos. Esses,
certamente, dele teriam participado se soubessem que mais tarde seus vencedores poderiam, sem outras exigências, portanto, sem novo concurso público, titularizar um
cargo de provimento efetivo, que lhes permitisse ingressar e obter as vantagens da carreira. Se não acudiram ao referido concurso por essa razão, é evidente que tal
motivo frustrou a competição e o concurso foi, desse modo, fraudado. Com efeito, teve menos candidatos do que teria se todos soubessem que a Administração
Pública, mais tarde, transformaria os empregos públicos em cargos de provimento efetivo, diminuindo, destarte, a possibilidade de melhor seleção dos concursandos74.

4.6.3 Princípio da instrumentalidade


A obediência ao princípio da instrumentalidade se aplica ao concurso público na medida em que este procedimento não pode ser informal considerando a importância que é a
competição para acesso aos cargos empregos ou funções públicas.
A observância da forma dos atos administrativos constitui um requisito de validade:

No direito administrativo, o aspecto formal do ato é de muito maior relevância do que no direito privado, já que a obediência à forma (no sentido estrito) e ao
procedimento constitui garantia jurídica para o administrado e para a própria Administração; é pelo respeito à forma que se possibilita o controle do ato administrativo,
quer pelos seus destinatários, quer pela própria Administração, quer pelos demais Poderes do Estado75.

4.6.4 Princípio da seletividade

Como já foi dito, o objetivo de um concurso público é selecionar os melhores candidatos. Quanto maior for o número de candidatos inscritos maior será a competitividade o
que obriga a uma preparação melhor. A seletividade se relaciona diretamente ao perfil do candidato que se pretende obter, sendo importante que ao serem fixados os requisitos
estes tenham relação direta com o cargo ou emprego que será desempenhado.

A atividade de selecionar pressupõe, em essência, a existência de uma multiplicidade de elementos e um critério de discrímen previamente estipulado, com o fito de
atender a determinada finalidade.
Por isso, no seio dos procedimentos concorrenciais, a competitividade é um dos caminhos que levam à seletividade, pois a experiência demonstra que a competição
proporciona e estimula uma escolha mais eficaz e eficiente76.

4.6.5 Princípio da vinculação ao edital

O Edital é o instrumento mais importante do concurso público. Por meio dele a Administração torna público a abertura do concurso e fixa todas as regras do processo
seletivo, abrangendo os requisitos exigidos para ingresso e fornecendo todas as informações necessárias aos candidatos.
Machado Júnior conceitua edital como sendo ato administrativo instrumental e divulgador do concurso público e de seu regramento, visando a dar-lhe publicidade, sendo
ainda o ato que deflagra a chamada fase externa do certame77.
O Edital do concurso público nada mais é do que o instrumento pelo qual se dá amplo conhecimento não só da oportunidade de as pessoas ingressarem no serviço público
como também discrimina de forma clara todas as regras do certame.
O Poder Público, em face da discricionariedade, que nada mais é do que um limite de liberdade de atuação no espaço que a lei lhe dá, pode e deve fixar critérios para a
escolha de seus agentes. Uma vez fixadas essas regras e publicadas no Edital de concurso, há uma vinculação, ou seja, como acentuam os magistrados, o Edital é a lei entre
as partes:

EMENTA: CONCURSO PÚBLICO. VINCULAÇÃO AO EDITAL. DESCUMPRIMENTO DE EXIGÊNCIA POR PARTE DO CANDIDATO. EFICÁCIA
PRECLUSIVA DO PRAZO FIXADO NO EDITAL. INSCRIÇÃO INDEFERIDA. LEGITIMIDADE. RECURSO IMPROVIDO.
– Não tem direito à inscrição, em concurso público, o candidato, que, em virtude de omissão a ele unicamente imputável, deixa de atender, dentro do prazo assinalado
no edital, à exigência neste fixada.
– O edital de concurso público qualifica-se como instrumento revestido de essencial importância, pois estabelece – tanto para a Administração Pública, quanto para os
candidatos – uma pauta vinculante de prescrições, a cuja observância acham-se todos submetidos.
A Administração Pública e os candidatos não podem descumprir as normas, as condições, os requisitos e os encargos definidos no edital, eis que este – enquanto
estatuto de regência do concurso público – constitui a lei interna do certame, desde que em relação de harmonia, no plano hierárquico-normativo, com o texto da
Constituição e das leis da República. Precedentes do STF78.

4.6.6 Princípio da razoabilidade

Este é um dos princípios mais utilizados na discussão de questões sobre concursos públicos. Significa que o Administrador ao tomar decisões deve fazê-lo de acordo com o
que seria razoável, ou seja, aceito pela ótica do senso comum das pessoas, aceitável perante a lei. Tem por finalidade a proteção dos direitos fundamentais contra condutas
administrativas do Poder Público que se caracterizem pelo conteúdo arbitrário, irrazoável e desproporcional.
Esse princípio é limitador da discricionariedade administrativa e, portanto, encontra plena aplicabilidade nos concursos públicos. Essa é a opinião dos doutrinadores,
conforme se pode aferir abaixo:

Assim sendo, o princípio da razoabilidade funciona como verdadeiro ‘freio’ da postura discricionária, no afã de compatibilizá-la com os direitos dos administrados, via
adoção de critérios racionais e lógicos no processo de escolha e valoração das soluções administrativas, máxime no que concerne à estipulação do sentido e alcance de
conceitos legais indeterminados ou noções imprecisas79.

Mais uma vez vale a pena mencionar a lição de Mello, o qual, sobre discricionariedade, afirma que:

[...] é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dói
comportamentos cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da
fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente80.

Nota-se que, pela falta de regulamentação legal do instituto do concurso público, existe uma ampla margem de atuação discricionária das bancas examinadoras ao serem
fixados requisitos de ingresso, bem como critérios de valoração das diferentes etapas do processo seletivo, daí a importância da ideia de razoabilidade nessa atuação.

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. TESTE DE APTIDÃO FÍSICA. MODIFICAÇÃO
NA ORDEM DE APLICAÇÃO DAS PROVAS. PRÉVIA DIVULGAÇÃO POR EDITAL COMPLEMENTAR. ISONOMIA.LEGALIDADE.
[...]
3. Não houve ilegalidade na alteração da ordem das provas porque o instrumento convocatório previa, em cláusula específica, a divulgação de data, horário e local das
provas por meio de edital complementar, divulgado “com antecedência mínima de dez dias da aplicação” prazo que foi efetivamente respeitado.
4. A simples alteração na ordem de aplicação de provas de teste físico, desde que anunciadas com antecedência e nos termos admitidos pelo edital do certame, não
viola direito líquido e certo dos candidatos, pois respeita os princípios constitucionais da publicidade e da razoabilidade, previstos no art. 37, caput, da Constituição
Federal e nos arts. 2.º parágrafo único, incisos I a VIII e XIII, 26 e 28 da Lei Federal n. 9.784/1999, que esta Corte tem por aplicável aos Estados que não disponham de
norma própria para regular processos administrativos.
5. o objetivo dos concursos públicos de provas ou provas e títulos, previstos nos incisos I a IV do art. 37 da Constituição Federal é assegurar a observância do princípio
constitucional da isonomia para ingresso nos quadros efetivos da Administração Pública. Essa é a razão pela qual alterações na ordem de aplicação das provas
integrantes do teste físico, divulgada com antecedência e aplicada igualmente a todos os candidatos inscritos, não viola tal princípio, não se apresentando, igualmente,
nem ilegal, nem abusiva81.

5. Conclusão

O capítulo tratou do acesso aos cargos e funções públicas no Brasil com base nos parâmetros fixados pela Constituição Federal de 1988 consolidados na forma de princípios
os quais regem também toda a Administração Pública.
Ser um servidor público em qualquer das três esferas de poder é um direito afeto a todo o cidadão e cabe ao administrador público providenciar o completamento de cargos
vagos estabelecendo as regras para a competição dentre aqueles que satisfizerem os requisitos necessários.
A esse processo deu-se o nome de concurso público, cujo edital que forma a sua base, é considerado lei entre as partes e deve obedecer aos princípios constitucionais
expressos e outros deles decorrentes que são aplicáveis à matéria, para garantir a mais absoluta lisura e transparência que são pressupostos básicos de uma Administração Pública
num estado democrático de direito.
Assim, o que se pretende é selecionar o melhor profissional que irá atuar no serviço público, dentre aqueles candidatos que se apresentaram para disputar as vagas existentes,
com regras claras e fundamentadas juridicamente, não havendo espaços para subjetivismos ou favorecimentos de cunho pessoal. Esse processo que se convencionou chamar de
concurso público é o que melhor se adequa aos propósitos da Administração Pública, sendo, sem dúvida o mais democrático meio de acesso aos cargos, empregos e
funções públicas.
Os dispositivos constitucionais expressos e os correlatos mencionados formam os parâmetros de regramentos que devem ser seguidos, sob pena de flagrante ilegalidade, não
obstante, como foi comentado, existir um espaço no qual o administrador público pode exercer seu poder discricionário ao fixar critérios diferenciadores, desde que estes tenham
uma pertinência lógica ao exercício do cargo, emprego ou função pública.
REFERÊNCIAS

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SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

Notas de Rodapé
55 Thaís Duarte Zappelini é Mestranda (2016) e bolsista (Mackpesquisa, mérito bolsa-MP, 2017) em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM). É bacharel em Direito pela UPM (2016); estudou como bolsista na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
(2014). É membro da Comissão de Eventos; da Comissão de Acompanhamento Científico; do Grupo de Pesquisa em Direitos Sociais e Políticas Públicas e
do Grupo de Pesquisa Filosofia do Direito (Neo) Kantiana da UPM.
56 O autor é mestrando em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
E-mail: [email protected]
57 DALLARI, Dalmo de Abreu. Regime constitucional dos servidores públicos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 28.
58 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 150.
59 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 490.
60 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 683. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 set. 2017.
61 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
2.
62 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Op. cit., p. 2-6.
63 MACHADO JÚNIOR, Agapito. Concursos públicos. São Paulo: Atlas, 2008. p. 9.
64 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 380.
65 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 59.
66 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 85.
67 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 104.
68 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 333.
69 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 616.
70 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 146.
71 Idem. Ibidem, p. 147.
72 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 326.
73 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Op. cit., passim.
74 GASPARINI, Diógenes. Parecer sobre regime jurídico de servidores de autarquia municipal ante a EC 19/98. Disponível em:
<https://jus.com.br/pareceres/16259/parecer-sobre-regime-juridico-de-servidores-de-autarquia-municipal-ante-a-ec-19-98>. Acesso em: 24 set. 2017.
75 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 193.
76 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Op. cit., p. 32.
77 MACHADO JÚNIOR, Agapito. Op. cit., p. 116.
78 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RMS 22.342-SP. Relator Ministro Celso de Mello. Informativo 261. Concurso Público – Edital – Vinculação (Transcrições).
Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo261.htm>. Acesso em: 24 set. 2017.
79 MAIA, Márcio Barbosa; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro. Op. cit., p. 37.
80 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Op. cit., p. 831.
81 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 36.064/MT. Relator Ministro Sergio Kukina – Primeira Turma julgado em 13/06/2017. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/? num_registro=201102402276&dt_publicacao=22/06/2017>. Acesso em: 24 set. 2017.
82 Advogado, com Curso de Extensão em Mediação e Arbitragem e Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
83 Advogado, Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campus Campinas, Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Direito Político e
Econômico e Doutorando em Direito Político e Econômico, todos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
84 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Trad. Daniela BeccacciaVersiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
85 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
86 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, art. 1°, parágrafo único.
87 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
88 FRANCO, Afonso Arinos de Mello. História e Teoria do Partido Político no Direito Constitucional Brasileiro.
89 ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional.
90 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império.
91 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.
92 MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade. Atualizador: Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2002.
93 Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, artigo 1º.
94 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 13. ed. Trad. Carmen C. Varriale et al. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 2009.
95 Idem.

5. A ORIGEM DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E OS PARTIDOS POLÍTICOS

Heleno Aparecido Facco Junior82


Pedro Vítor Melo Costa83

1. O nascimento da democracia

É inegável a relação entre o nascimento da democracia e a conquista dos direitos políticos, adquiridos por meio de lutas e reivindicações populares e logo sociais. Tais
direitos limitaram os abusos dos governos em desfavor dos povos.
Conceitualmente, segundo Bobbio84:

por democracia entende-se uma das várias formas de governo, em particular aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mais de todos, ou
melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e oligarquia.

Na Grécia antiga, as primeiras manifestações da democracia ocorriam quando o povo se dirigia as praças públicas chamadas de ágora e deliberavam sobre o que era melhor
para Atenas e para os seus compatriotas.
Os citados movimentos sociais levaram algumas cidades-estados gregas a atribuir a cidadãos de condições notáveis, a incumbência de criar as leis, sendo estes nomeados
“tiranos” (senhores em grego). Os tiranos recebiam a missão de defender os direitos do povo em face da nobreza, aumentando assim os direitos políticos e diminuindo
gradativamente a dependência dos cidadãos em favor dos clãs e seus chefes, sistema no qual os direitos acabavam se centralizando nanobreza.
Segundo a bibliografia existente, podemos afirmar que o conceito de democracia nasceu na Grécia antiga e vem em constante evolução até os dias atuais, encontrando
grandes mudanças evolutivas nos momentos de crises e disputas.
De acordo com conceito trazido por Bobbio, quanto a organização da democracia85:

Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo
autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas
e com quais procedimentos. Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria
sobrevivência, tanto interna como externamente.

Considerando a afirmação trazida acima a um panorama mais atual, poderíamos até afirmar que a atual crise política do Brasil constitui um processo evolutivo da
democracia nacional, pois a presente problemática trouxe para a sociedade um debate sobre as mudanças necessárias para alcançar a democracia de uma forma plena, fato que
exige mudanças nas regras legislativas.
Para melhor entender a forma democrática praticada atualmente, se faz necessário estudar o que seria a democracia direta e a representativa, itens analisados no tópico
a seguir.

2. Democracia representativa e democracia direta

Democracia direta e representativa são filhas do princípio da soberania popular, ou seja, como existente no texto da Constituição da República de 198886: “todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
No entanto, democracia direta e representativa se diferenciam em suas modalidades e formas de se praticar a vontade do povo, o que não significa que não possam ser
aplicadas conjuntamente.
É inevitável não atribuir o pensamento de democracia representativa aos liberais, pois foram eles os pregadores na necessidade de se instalar um “Estado de Direto” onde os
“jurisdicionados” ou melhor “cidadãos”, teriam o direito de participar das decisões políticas. Na presente visão, inevitável foi o questionamento sobre como aplicar a democracia
remetendo aquela praticada na Grécia antiga, em localidades densas e muito populosas.
Da dificuldade de se praticar a democracia nos moldes da antiguidade grega, ou seja, reunir toda a população e discutir decisões, ante o risco de inviabilizar a participação
popular, foi instituída a ideia de representação.
A democracia representativa consiste então, na chamada por aqueles dotados de “direitos políticos” a escolher representantes para tomar as decisões políticas em seu nome,
conforme atestado por Norberto Bobbio87:

A expressão democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são
tomadas não diretamente por aquele que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. [...]. Em outras palavras, um Estado representativo é um Estado
no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de decisão são o parlamento, o presidente da
república, o parlamento mais os conselhos regionais.

Como bem lecionado por Bobbio, podemos constatar que a democracia representativa está presente em nosso sistema político, em especial pelo sistema de representação
onde um candidato se filia a um partido político e lança sua campanha para junto deste partido representar a vontade de seus eleitores.
Mas a democracia representativa não existe isoladamente em nosso sistema político, possuímos ainda a democracia direta, mais parecida com o sistema Grego antigo, que
nada mais é do que o ato do “cidadão” dotado de “direitos políticos” exercer diretamente perante a sociedade sua manifestação de vontade ante as decisões de caráter político e de
condução do Estado.
Embora Bobbio defenda a dificuldade de se exercer a democracia direta nos tempos atuais, entendemos que o plebiscito, o referendo e até mesmo o próprio ato de votar em
um candidato que exercerá a representação política, são formas de se exercer a democracia de forma direta, porém em um sentido contemporâneo.
3. A origem dos partidos políticos

Os partidos políticos têm seu surgimento na Inglaterra por volta de 1558 e 1603, onde haviam imensas disputas pelo Poder, tendo neste sentido destaque os “Tories” que
eram representantes dos interesses feudais e agrários e os “Whigs” mais liberais que representavam a vontade urbana e capitalista.
Conforme leciona Afonso Arinos de Mello Franco88, no século XIX surgem dois partidos políticos, de concepção mais parecida com a que hoje conhecemos, tornando-se os
“Tories” no partido Conservador e os “Whigs” no partido Liberal.
Importante se faz demonstrar as lições do professor Wilson Accioli89, que demonstra a evidencia de partidos no império romano, sendo ali chamados de “optimates” e
“populares”. Embora o sistema eleitoral romano permitisse o voto aos “plebeus” o senado nunca representou de fato a vontade desses.
No Brasil, segundo leciona Joaquim Nabuco90, os dois primeiros partidos brasileiros se formaram em meados de 1838, sob os nomes de partido Conservador e Partido
Liberal, sendo os monarquistas do partido Conservador e os mais radicais e moderados do partido Liberal.
Segundo leciona Marcos Romayana91, “na 1ª fase da República surgiram os partidos Republicanos Federal, Conservador e Liberal. Naquela época registra-se o Partido
Comunista Brasileiro cassado em 1947”.
Continua Romayana, lecionando que com a criação do Estatuto dos Partidos Políticos, Lei nº 4.740, surgiu a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro), partidos que polarizaram as ideias e disputas nas políticas no sistema de Estado brasileiro.
Em melhor análise, segundo Pontes de Miranda, os partidos políticos não possuíam previsão constitucional anterior ao século XX, conforme podemos atestar pela citação
abaixo descrita92:

Os programas dos partidos são os seus propósitos explícitos. De ordinário, têm, além desses, outros propósitos, mais ou menos velados; e propósitos implícitos, que são
os decorrentes de serem partidos, do nome que adotam, ou de outro qualquer elemento essencial à sua estrutura. É de estranhar-se que as democracias dos séculos
XVIII e XIX, bem como as do começo deste, não introduzissem no direito constitucional, nem, sequer, no direito público não-constitucional, os partidos. Viviam eles
dentro do direito privado, como sociedades particulares, ou, até, sem qualquer existência jurídica. Ainda que, o defeito foi da técnica de realização prática, e não da
democracia em si.

Os partidos políticos tiveram seu nascimento jurídico de fato, nas constituições posteriores ao início do século XX, onde podemos constatar a evolução destes para o
formato atual, com representação jurídica dos interesses das nações.
Os partidos políticos são os órgãos mais importantes para o exercício da democracia. Com o nascimento de grandes povoados e continentes, a manifestação direta de vontade
tornou-se fato complicador do exercício dos direitos políticos em ambiente amplo. Os partidos, assim como a democracia, embora ainda carentes de evoluções, são hoje o melhor
meio de formação de governos e exercício dos direitos políticos.

4. O conceito e a criação dos partidos políticos

Os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado, suas principais funções são as de garantir, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema
representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal93. Os partidos políticos são formados pela livre associação de pessoas, com a finalidade de
se obter o poder político-estatal, para assim implementar seus ideais, podendo fiscalizar e fomentar as instituições nacionais, dentre outras funções legais ou estatutárias.
Para Bobbio, Matteucci e Pasquino94, os partidos políticos seriam intermediadores da vontade entre o povo e os “Governos” sendo então:

“formações sociais assaz diversas, desde os grupos unidos por vínculos pessoais e particularistas às organizações complexas de estilo burocrático e impessoal, cuja
característica comum é a de se moverem na esfera do poder político”. As associações propriamente consideradas como partidos”.

Sobre o surgimento dos Partidos Políticos, continuam os autores95:

surgem quando o sistema político alcançou um certo grau de autonomia estrutural, de complexidade interna e de divisão de trabalho que permitam, por um lado, um
processo de tomada de decisões políticas em que participem diversas partes do sistema e, por outro, que, entre essas partes, se incluam, por princípio ou de fato, os
representantes daqueles a quem as decisões políticas se referem. Daí que, na noção de partido, entrem todas as organizações da sociedade civil surgidas no momento
em que se reconheça teórica ou praticamente ao povo o direito de participar na gestão do poder político. É com esse fim que ele se associa, cria instrumento de
organização e atua.

Na visão de Bobbio, Matteucci e Pasquino, as Partidos Políticos são o resultado de uma evolução do sistema estrutural político, onde participariam das decisões todas as
partes componentes da democracia, dentre elas os representantes do povo, exercendo-se assim uma democracia representativa plena.
Uadi Lammêgo Bulos96 também traz importante definição para os partidos políticos, que seriam:

associações de pessoas, unidas por uma ideologia ou interesse comuns, que, organizadas estavelmente, influenciam a opinião popular e a orientação política do país.

Neste mesmo sentido, entende Celso Ribeiro Bastos97:

trata-se de uma organização de pessoas reunidas em torno de um mesmo programa político com a finalidade de assumir o poder e de mantê-lo ou, ao menos, de
influenciar na gestão da coisa pública através de críticas e oposição.

Conforme Uadi e Celso Bastos, seriam os partidos instituições para formação de ideias, visando disseminar a ideologia do partido e de seus militantes por meio da aquisição
do Poder. Tais ações poderiam ser tomadas por meio de projetos de governos, leis e até mesmo por manifestações públicas e pela propaganda partidária empregada nos meios de
comunicação.
Sobre a ideia de que os partidos políticos seriam manifestações da vontade e ideais da nação, lecionam Thales Tácito Cerqueirac Camila Albuquerque Cerqueira98:

é um fragmento do pensamento político da nação, cujos adeptos ou simpatizantes se vinculam a ideologias por afinidade, buscando o exercício do poder (situação) ou a
fiscalização dos detentores desse poder (oposição), sem prejuízo de atividades administrativas e institucionais.

Pelas conceituações acima trazidas, é possível entender que os partidos políticos, são organizações da sociedade civil com a finalidade de exercer a democracia
representativa, onde os cidadãos detentores de direitos políticos, escolhem de acordo com suas crenças, ideologias e projetos, os candidatos e partidos que mais se assimilam aos
seus ideais, para representarem a sua vontade junto do Estado.
Sobre a criação, os partidos políticos, conforme prevê o art. 2º da Lei n° 9.096/9599, são de livre criação, fusão ou extinção. Tais liberdades são asseguradas com o viés de se
manter uma livre representação democrática incluindo a pluralidade de partidos, garantindo a representação de diversas ideologias e modos de pensamento nas
decisões democráticas.
A criação de um partido político tem como regra, a obrigatoriedade de registro no respectivo cartório, na Capital Federal, devendo ser subscrito pelos seus fundadores, em
número nunca inferior a cento e um, devendo existir o domicílio eleitoral em pelo menos 1/3 dos Estados da Federação, além de cumprir outros requisitos descritos no art. 8º e
seguintes da Lei nº 9.096/95.
Segundo Walber de Moura Agra100, com a vigência da Lei n° 13.165/2015, (minirreforma eleitoral), a regra para criação de novos partidos políticos foi modificada
passando a vigorar que:

só será admitido o registro do estatuto de partido político que tenha caráter nacional, considerando-se como tal aquele que comprove, no período de dois anos, o
apoiamento de eleitores não filiados a partido político, correspondente a, pelo menos, 0,5% (cinco décimos por cento)dos votos dados na última eleição geral para a
Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos Estados, com um mínimo de 0,1% (um décimo por
cento) do eleitorado que haja votado em cada um deles (art. 7º, §1º, da Lei nº 9.096/1995). Saliente-se que o prazo de dois anos referido não se aplica aos pedidos
protocolizados até a data da publicação da Lei nº 13.165/2015, qual seja, 29 de setembro de 2015.

Cumpridos os requisitos demonstrados acima, tendo o partido já realizado seu registro cartorário, seus dirigentes nacionais deverão realizar o registro do partido junto ao
Tribunal Superior Eleitoral, que analisará se os requisitos estão cumpridos. Caso cumpridos os requisitos, o TSE realizará o registro do partido em até 30 dias101.
Uma vez realizado o registro, o partido passa a existir formalmente, podendo concorrer às eleições, usufruir do fundo partidário e do horário eleitoral gratuito nas rádios e
emissoras televisivas102.
Com sua existência formal reconhecida, os partidos passam a captar militantes por meio da filiação partidária, que é uma das formas de congregar não apenas as pessoas que
comunguem dos mesmos pensamentos que o partido, mas que estejam dispostas a disseminar, lutar e agir para o engrandecimento da instituição e na busca por seus ideais.

5. O exercício da democracia por meio dos partidos políticos

As decisões políticas tomadas pela coletividade, em especial aquelas praticadas pelas grandes nações, são de extrema complexidade, necessitando para que se chague a uma
conclusão madura, de ampla discussão e estudo sobre a matéria a ser decidida. Neste ponto, as ágoras tornaram-se inviáveis e impraticáveis, pois em uma visão moderna, as
cidades-estados, são agora territórios extensos e populosos. Muitas vezes a manifestação do povo, por meio da democracia direta em casos onde se tem a urgência da decisão,
poderia fazer perecer as razões decisórias, antes mesmo que se reunisse o povo para uma votação.
Em um período inicial, eram escolhidos apenas pessoas, os chamados Tiranos (senhores em grego), no entanto com o passar do tempo, foram se formando os grupos de
interesse, geralmente em dois polos, por vezes um ao lado dos governantes ou das elites e outro ao lado do povo.
Assim foi na Inglaterra, com o surgimento dos “Tories” que eram representantes dos interesses feudais e agrários e os “Whigs” mais liberais que representavam a vontade
urbana e capitalista, formando como podemos notar, dois polos em um sistema bipartidário.
Com os grupos, mais adiante reconhecidos partidos políticos, nasceu a democracia representativa como conhecemos no período contemporâneo, que como já tratado
anteriormente, é o modo onde o povo escolhe os representantes para decidir em seu nome, sobre os assuntos políticos de sua comunidade ou Estado.
Sobre as dificuldades dos partidos, leciona Pontes de Miranda103:

Os partidos políticos, e não só a democracia, foram objeto de críticas acerbas, durante toda a vigência da democracia. Associações livres instáveis, pecavam pela sua
amorfia e pela flexibilidade de seus programas.

O que demonstrou Pontes de Miranda com a afirmação acima, foi que uma certa forma de “populismo”, dedicado a aquisição de votos e influência em uma busca pelo poder
(natural dos partidos políticos), trazia aos mesmos, discussões internas que por muitas vezes ocasionavam em modificações geradoras de instabilidades e uma continua mudança
em seus programas, não permitindo assim por parte da sociedade, uma análise de modo a dar forma e logo melhor confiabilidade aos partidos políticos.
Com o transcorrer do tempo os partidos evoluíram tomando formas melhor determinadas e deixando seus programas mais rígidos, fatos de extrema importância para o
engrandecimento da democracia representativa.
Os partidos políticos são canais visando o cumprimento da vontade pública, em suas diversas correntes. A imprensa, os livros, organizações não governamentais e até
mesmo as universidades, podem ser utilizadas como meio de exprimir a vontade popular. Quanto as universidades, digo, pela sua incalculável importância na formação do
pensamento intelectual de um país, demonstrando muitas vezes a vontade das elites estudantis, por meio de pesquisas e artigos científicos.
Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho104,

Em fins do século XIX e no começo do século XX difundiu-se forte crítica contra a democracia representativa. Em síntese, esta crítica a acusava de não ser
suficientemente democrática, de simplesmente estabelecer o governo dos eleitos sobre o povo que não teria real influência na orientação do poder.
Com efeito, o representante, por força das concepções de Siéyès, consagradas em todas as Constituições, não estava adstrito a quaisquer instruções que, porventura, lhe
tivessem sido dadas por seus eleitores. Nem, igualmente, estava juridicamente obrigado a lhes prestar contas de seus atos. Aplicava-se, destarte, a todas as democracias
representativas o que sarcasticamente dizia Rousseau da Inglaterra: “O povo inglês pensa ser livre, mas se engana muito; ele não o é senão durante a eleição dos
membros do parlamento: logo que estes estão eleitos, é escravo, não é nada. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso que dela ele faz o toma merecedor de
sua perda.

Denunciado o verdadeiro caráter da democracia representativa da época, nasceu a necessidade de se criar um modelo melhor de democracia representativa, onde os
representantes teriam a obrigação de prestar contas de suas ações em nome dos seus representados.
Buscando um melhor modelo iniciou-se uma disputa entre o pensamento jurídico a ser aplicado, vencendo a teoria defendida por Kelsen, na corrente apelidada de
“racionalização do poder”, corrente que trouxe maior esperança para o estabelecimento de uma democracia representativa melhor elaborada. Tal anseio por uma “melhor” prática
democrática seria uma verdadeira necessidade política, eis que, haviam denúncias recentes de que os partidos seriam em verdade oligarquias ou meio de influência das mesmas,
viciando o sistema democrático representativo.
Baseado na busca acima retratada, constitui-se o modelo da democracia partidária, sendo agora criada de fato a figura do partido político propriamente dito, como item
principal, sendo criado com fundamentos em ideias de democracia representativa, isenção da corrupção e fontes morais de financiamento. A figura dos partidos políticos nasceu
emprenhada em conquistar o poder com base no voto e convencimento do povo, sendo assim abolido o uso da força.
Nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho105 as mudanças trazidas pela criação do sistema partidário, foram bastante efetivas para um melhor sistema
representativo, onde entendemos importante destacar:

Tal partido pasteurizado tem no modelo duas funções básicas. A primeira, estabelecer um programa exequível de governo. Não um conglomerado de ideias gerais
apetitosas e grandiloquentes, mas um plano capaz de ser executado como política de governo. A segunda, selecionar pessoas que se disponham a fazer executar esse
programa, caso eleitas, com a necessária eficiência.
Desempenhando os partidos adequadamente essas duas funções, as eleições perderiam o caráter de mera escolha de homens para governar, ganhando a dimensão de
seleção entre programas de governo. A definição eleitoral importaria, consequentemente, na determinação de um programa a ser cumprido. Assim, o povo se
governaria, ainda indiretamente, por fixar também a orientação do governo e não apenas designar os representantes que, livres de qualquer predeterminação, tomariam,
em seu nome e em seu lugar, as decisões políticas. Nesse quadro, dois pontos avultam. Um, o fato de que os verdadeiros candidatos passam a ser os partidos com seus
programas e não os indivíduos que postulam os cargos eletivos. Outro, o imperativo de fidelidade partidária. Com efeito, desmoronaria o sistema se o eleito não
estivesse preso ao partido que o elegeu. A deliberação popular seria defraudada se o representante pudesse romper o compromisso com o programa que prometera fazer
cumprir. Disso decorre que, em última análise, o titular do mandato é o partido, que o exerce por meio de homens que não passam de seus órgãos de expressão.

Com a existência da fidelidade partidária, os verdadeiros representantes da vontade popular seriam os partidos políticos, que formam e divulgam suas ideologias, opiniões,
projetos de governo e poder. Os cidadãos que pretendem se candidatar aos cargos eletivos, aceitam expressamente os ideais dos partidos ao se filiar aos mesmos, que por sua vez
concedem ao cidadão com anseio de “candidato” a legenda partidária, para no caso de ser eleito, ser um representante da vontade do partido junto ao governo. Logo, os partidos
representariam a vontade do povo e os cidadãos eleitos a vontade do partido, constituindo assim, um sistema com maior isenção quanto a práticas de corrupção e exercício das
próprias vontades.
No sistema que preza pela fidelidade partidária, é importante destacar que mais importam as ideias do partido do que as do candidato, pois uma vez eleito, estaria o mesmo
amarrado a representar e exercer a vontade do partido e não os pleitos do povo diretamente. Seria como um método de democracia representativa derivada, pois a vontade do povo
passaria por duas representações, uma direta do partido e uma indireta, que seria a do candidato. Entendendo pela fidelidade, não se poderia permitir a mudança de partido do
candidato eleito, pois os eleitores o elegeriam acreditando nas propostas do partido e não do representante propriamente dito. Fato inverso ocorre nos sistemas onde não figura a
fidelidade partidária, ocasião em que, os eleitores votam nas ideias do candidato que podem ou não congregar integralmente com os ideais partidários, ficando o eleito neste caso,
livre para realizar a mudança de partido político.
O entendimento baseado no mandato partidário, faz dos partidos políticos verdadeiros instrumentos de formação de opinião, uma vez que os mesmos fazem uso de seus
candidatos, propagandas eleitorais e toda a militância para disseminar sua ideologia e método de administração do poder, fato que resulta em posições polarizadas e combativas de
seus representantes e militantes.
Os partidos políticos são instrumentos do povo para aquisição da administração do poder, sendo equivocado declarar que o poder pertence ao partido eleito, pois o poder é e
sempre será do povo, sendo sua administração concedida aos partidos ou candidatos vencedores da eleição. Neste mesmo sentido, é a tripartição do poder, um meio de controle da
exacerbação ou excesso na administração do poder popular. A aquisição do poder por vários partidos, permite a situação atuar e a oposição fiscalizar a administração pública,
inibindo assim a corrupção ou grandes equívocos nas direções da máquina estatal.
Todos os sistemas democráticos, embora caros, complexos e extremamente sensíveis, são em verdade, sistemas de constantes evoluções. Assim como na Grécia antiga, as
decisões eram tomadas por meio das reuniões realizadas nas ágoras, hoje possuímos parlamentos e presidentes, atuando em nome e em prol do povo que os elegeu, podendo um
dia, tal sistema ser relatado apenas nos livros de história, considerando-se as ocorrências progressistas de constantes modificações evolutivas dos sistemas democráticos de direito.
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Notas de Rodapé
81 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 36.064/MT. Relator Ministro Sergio Kukina – Primeira Turma julgado em 13/06/2017. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/? num_registro=201102402276&dt_publicacao=22/06/2017>. Acesso em: 24 set. 2017.
82 Advogado, com Curso de Extensão em Mediação e Arbitragem e Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
83 Advogado, Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campus Campinas, Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Direito Político e
Econômico e Doutorando em Direito Político e Econômico, todos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
84 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Trad. Daniela BeccacciaVersiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
85 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
86 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, art. 1°, parágrafo único.
87 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
88 FRANCO, Afonso Arinos de Mello. História e Teoria do Partido Político no Direito Constitucional Brasileiro.
89 ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional.
90 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império.
91 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.
92 MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade. Atualizador: Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2002.
93 Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, artigo 1º.
94 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 13. ed. Trad. Carmen C. Varriale et al. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 2009.
95 Idem.
96 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
97 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2000.
98 TÁCITO CERQUEIRA, Thales; CERQUEIRA, Camila Albuquerque. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011.
99 Art. 2º É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos cujos programas respeitem a soberania nacional, o regime democrático, o
pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana.
100 AGRA, Walber de Moura. Manual prático de direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
101 art. 9º, §§ 3º e 4º, da Lei nº 9.096/1995
102 art. 17, § 3º, da Constituição Federal.
103 MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade. Atualizador: Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2002.
104 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
105 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
106 Aluno de Mestrado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) com graduação em Direito pela mesma instituição.
107 “Digo, pois, que outra coisa não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão
um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não porém a vontade”. ROUSSEAU, Jean
Jacques. Du Contrat Social. Gallica: Bibliothéque Numérique de la Bibliothéque Nationale de France. p. 14.

6. O PODER CONSTITUINTE: entre a ruptura e normatividade

João Gabriel Pierson Leopoldo e Silva106


A História nos conta que as primeiras noções de Constituição e Poder Constituinte surgiram no bojo dos movimentos sociais e políticos do século XVIII, em especial com a
Revolução Francesa e Independência dos Estados Unidos.
Ainda que possamos considerar que, desde a antiguidade, cada uma das comunidades humanas tenha se deixado gerir por um conjunto de regramentos próprios e
minimamente coesos, a formatação estatal que se deu a partir do ocaso do século XVIII possui características que o distinguem do que lhe antecedeu.
No decorrer da Antiguidade, a formatação de uma sociedade era indistinta do surgimento de seu sistema de crenças e de suas deidades. A cidade-estado de Atenas teria sido
nomeada após da disputa entre Poseidon e a deusa da guerra, pelo título de patrono daquele povo. Já em Roma, seus fundadores, Rômulo e Remo, seriam filhos do deus da guerra
Marte, juntamente com Reia Sílvia, descendente do troiano Enéias. As sociedades antigas surgiram no bojo de sua teogonia, e como consequência, tinham muito de seu
funcionamento vinculado ao “capricho de seus Deuses”.
Com o advento do cristianismo e o início da Idade Média, a estrutura social europeia, quase toda concentrada no entorno de feudos, passou a ser regida sob forte influência
da Igreja. Desde a coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III no ano de 800 d.C., o poder temporal dos reis e o poder espiritual da Igreja funcionaram em uma relação
simbiótica mais ou menos coesa.
Com o assentamento do modelo de estado monárquico-absolutista, desenvolveu-se um estado que tem na figura do rei seu ponto nevrálgico. Toda a força do estado, deriva
da figura real, que tem sua posição avalizada pelo Vaticano: todo o poder do rei é derivado da providência divina. Talvez ninguém represente mais esse momento histórico do que
o rei francês Luís XIV, que foi a figura máxima da monarquia francesa durante a segunda metade do século XVII e a quem foi atribuída a celebre frase l’état c’est moi.
Entretanto, com o crescimento da classe burguesa, que desde o século XII já vinha ganhando destaque, e o advento do iluminismo a partir do fim do XVII, o Ancient
Regime entrará em crise. Detentora do poder econômico, essa classe emergente passará a cobrar maior participação no poder decisório do Estado, o que levará ao surgimento de
movimentos questionadores do estado absoluto e do status quo então vigente.
Pautados pelo primado da razão, os pensadores iluministas refutavam a noção de que o poder de um estado ou de seu governante deveria advir da esfera metafísica. Para
tanto, era necessário desenvolver uma nova justificação, para uma nova formatação do estado. Será nesse contexto que surgirão as primeiras noções de poder popular e poder
constituinte, como estrutura básica da formação estatal.
Em Du Contrat Social, o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau defenderá a ideia de que a soberania advém da vontade coletiva, e que esta não pode ser representada por
ninguém mais a não ser o próprio coletivo:

Je dis donc que la souveraineté, n’étant que l’exercice de la volonté générale, ne peut jamais s’aliéner, et que le souverain, qui n’est qu’un être collectif, ne peut être
représenté que par lui−même ; le pouvoir peut bien se transmettre, mais non pas la volonté107.

Por isso, para Rousseau, o poder soberano não é somente inalienável108, mas também indivisível:

Par la même raison que la souveraineté est inaliénable, elle est indivisible; car la volonté est générale (a), ou elle ne l’est pas; elle est celle du corps du peuple, ou
seulement d’une partie. Dans le premier cas, cette volonté déclarée est un acte de souveraineté et fait loi; dans le second, ce n’est qu’une volonté particulière, ou um
acte de magistrature; c’est un décret tout au plus.
Mais nos politiques Il ne pouvant diviser la souveraineté dans son principe, La divisent dans son objet: ils la divisent en force et en volonté, en puissance législative et
en puissance, exécutive; en droits d’impôt, de justice et de guerre; em administration intérieure et en pouvoir de traiter avec l’étranger: tantôt ils confondent toutes ces
parties, et tantôt ils les séparent. Ils font du souverain un être fantastique et formé de pièces rapportées; c’est comme s’ils composaient l’homme de plusieurs corps,
dont l’un aurait des yeux, l’autre des bras, l’autre dês pieds, et rien de plus109.

A ideia rousseauniana de mudança de foco do centro do poder, da figura do rei para a vontade popular, é grande representativo da ruptura sistêmica que as ideias iluministas
representaram em sua época. Apesar disso, vê-se também que o conceito de soberania popular de Rousseau não prevê a possibilidade de um sistema representativo deste poder
popular, uma vez que entende ser impossível proceder a sua transferência a um mandatário, sem fazer com que isso o vicie.
Será com Joseph Sieyès que surgirá pela primeira vez de forma explícita o termo “poder constituinte” (pouvoir constituant). Em seu livro intitulado Qu’est-ce que le tiers
éta,.escrito pouco antes do início da Revolução Francesa, Sieyès desenvolve a noção de “terceiro estado”, como forma de legitimar a ruptura do poder então existente, dando base
para o surgimento de um novo ordenamento. Para ele, a Nação se encontraria sempre em um estado de natureza, fora do estado civil e das normas e limites de seu contrato social.
Assim, o terceiro estado, verdadeiro representante da nação francesa, dentro desse estado de natureza, deteria o poder constituinte, a legitimidade para a constituição de um
novo estado:

La nation existe avant tout, elle est l’origine de tout. Sa volonté est toujours légale, elle est la loi elle-même. Avant elle et au-dessus d’elle il n’y a que le droit naturel.
Si nous voulons nous former une idée juste de la suite des lois positives qui ne peuvent émaner que de sa volonté, nous voyons en première ligne les lois
constitutionnelles, qui se divisent en deux parties : les unes règlent l’organisation et les fonctions du corps législatif; les autres determinant l’organisation et les
fonctions des différents corps actifs. Ces lois sont dites fondamentales, non pas en ce sens qu’elles puissent devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce
que les corps qui existent et agissent par elles ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie la constitution n’est pas l’ouvrage Du pouvoir constitué, mais du pouvoir
constituant. Aucune sorte de pouvoir délégué ne peut rien changer aux conditions de sa délégation. C’est ainsi et non autrement que les lois constitutionnelles sont
fondamentales. Les premières, celles qui établissent la législature, sont fondées par la volonté nationale avant toute constitution; elles en forment le premier degré. Les
secondes doivent être établies de même par une volonté représentative spéciale. Ainsi toutes les parties du gouvernement se répondent et dépendent en dernière
analyse de la nation. Nous n’offrons ici qu’une idée fugitive, mais elle est exacte110.

A partir de então, se sedimentará o conceito de “poder constituinte”, como instrumento essencial a fundação de um estado, bem como a ideia de que este está
fundamentalmente atrelado à noção de soberania popular e representatividade desta.
Já a noção de constituição escrita, constituidora do Estado Moderno, ainda que decorra de toda essa corrente de pensamento de natureza iluminista, irá surgir primeiramente
no continente americano, por meio da elaboração da Constituição dos Estados Unidos da América, promulgada em 17 de setembro de 1787, durante a Convenção Constitucional
da Filadélfia.
Não obstante tenha sido a Inglaterra a primeira a possuir uma Constituição escrita, o Instrumente of Governnment de Oliver Cromwell (1654), bem como outros documentos
surgidos da Revolução Inglesa, pode-se dizer que estas tiveram caráter episódico, especialmente se considerarmos que império inglês logo abandonou a ideia de Constituição
escrita, sendo até a presente data, um Estado Constitucional sem Constituição Formal.
Após a publicação da Constituição norte-americana, e com a queda do ancien regime na França, o movimento iluminista ganhará força ao mesmo tempo em que as
monarquias absolutistas sofrerão um duro baque em suas estruturas, levando a um movimento irreversível de sua substituição pelo Estado Modernoburguês.
O denominado “Poder Constituinte” e a Constituição escrita, surgiram e se desenvolveram nos séculos seguintes com a narrativa de que se constituem em instrumento de
materialização da soberania popular, um mecanismo garantidor da participação popular ou, ao menos, da expressão popular por meio de representantes.
Entretanto, há de se questionar tais conceituações.
Obviamente, um fenômeno social como o da revolução francesa, somente se mostrou possível diante da convulsão social resultante de múltiplos discursos, anseios e
insatisfações, no bojo de um sistema político desgastado e em grande crise financeira. Reduzir o fenômeno revolucionário francês a apenas um de seus espectros, seria um
erro111.
Por outro lado, com a queda das monarquias absolutistas e o estabelecimento do Estado Moderno, ficou claro que os ideais de “liberte, egalitè e fraternitè”bradados pelos
iluministas não se destinavam a todos os cidadãos, e que o “terceiro estado” de Joseph Sieyes não era o do sufrágio universal: era o do estado burguês, pela burguesia e para
a burguesia.
Há mais a respeito da Constituição e do Poder Constituinte do que sua definição conceituação estrita tem a dizer.
A soberania popular e a livre vontade dos cidadãos de um Estado, não são suficientes para suscitar a aplicação do poder constituinte. Caso assim o fosse, não teríamos a
existência de tantos movimentos separatistas ao redor do mundo.
O conceito de Poder Constituinte está intimamente ligado aos discursos que o formataram e, posteriormente, garantiram sua manutenção. Portanto, é importante notar que as
motivações históricas para a elaboração dos mesmos têm influência fundamental para sua completa compreensão. Tal assertiva traz algumas reflexões: Por qual razão o Poder
Constituinte foi inventado? Mais que isso: é possível estabelecer uma definição capaz de abordar todo o fenômeno social, político, jurídico e filosófico que circunda tal conceito?
A este respeito, o professor Alexander Somek faz interessante apontamento, demonstrando a dificuldade de tal proposição:

Hence, the constituent power cannot be captured by a mere narrative account of the political formation or reformation of a nation. Rather, the concept refers to some
special type of collective agency. Subject to certain normative constraints, which are notoriously difficult to specify, an existing constitution can be attributed to the
constituent power. This is, evidently, a matter of interpretation112.

Tratando-se da situação vista na França pré-revolução, é inegável que as justificativas revolucionárias se apoiavam no anseio popular de reforma do sistema social e político,
por meio de acesso ao sistema decisório do estado e da equiparação dos componentes do “terceiro estado” em sujeitos de direito perante a nobreza e o clero.
Entretanto, em última análise, não há como se olvidar do fato de que, enquanto processo revolucionário, o movimento iluminista, o “terceiro estado”, se encontrava fora do
sistema legal e político vigente a época. Tratava-se um movimento clandestino e insurgente, para todos os efeitos.
Mas com a criação do Estado Moderno, surgirá a noção de Estado Democrático de Direito e de “império da lei”. Com o objetivo de se afastar dos regimes autoritários que o
antecederam, e de fazer valer a ideia de igualdade que pautou os movimentos revolucionários, se desenvolverá a noção de uma legislação vinculada ao Estado, à qual todos os seus
cidadãos devem se submeter de forma igual e indistinta.

A expressão Estado de Direito foi cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, no século XIX, ao procurar sintetizar a relação estreita que deve haver entre Estado
e Direito ou entre política e lei. Segundo Canotilho, por oposição a Estado de não-Direito, podemos entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito:
“Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ‘Estado de não direito’ será, pelo
contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder
protegida pelo direito113.

Nesse contexto, o Poder Constituinte será trazido para dentro do âmago desse novo sistema, o normatizando. A partir de então, o processo constituinte ganha mais um
espectro de validação: o Poder Constituinte a de expressar a vontade do povo, mas dentro do sistema de leis do Estado em que este povo se encontra.

Nessa segunda dimensão da validade do direito a sua legitimidade não se satisfaz mais somente com sua validade social baseada na facticidade das sanções jurídicas,
nem mesmo com justificações realizadas unilateralmente. A união, no direito, entre coerção fática e a validade (legitimidade) pressupõe, agora, um processo
legislativo onde os cidadãos devem poder participar – como sujeitos do direito que agem orientados não apenas pelo sucesso114.

Se antes o Poder Constituinte era contemplado por uma série de preceitos, como uma unidade de participação popular e como meio reivindicativo, agora este é apreendido
pelo sistema jurídico-estatal; sistema esse desenvolvido justamente para garantir sua regularidade e manutenção. Dito de outra forma, as forças denominadas de Poder
Constituinte, uma vez estabelecidas, inseridas dentro do poder constituído, buscam resignificar sua denominação anterior, como forma de controlá-la.
Comunga com essa noção o filósofo italiano Antônio Negri, para quem o problema é “a relação que a ciência jurídica (e, através dela, o ordenamento constituído) quer
impor ao poder constituinte atuando de modo a neutralizá-lo, a mistificá-lo, ou melhor, a esvaziá-lo de sentido”115.
Segundo Negri, a diferença entre o poder constituído e o poder constituinte se manifesta, respectivamente, pela concepção dispare entre a “historia rerum gestarum” que
interpreta o mundo de uma maneira objetiva a fim de aprisionar o futuro e a “res gestae” que surge como uma alternativa e se manifesta através de uma temporalidade aberta.
Os professores de Giuseppe Cocco e Adriano Pilatti concluem então que:

[...] se a historia rerum gestarum da modernidade é a história das tentativas do poder constituído no sentido de controlar sua fonte constituinte, a res gestae, por sua
vez, desenha uma modernidade alternativa, de uma potência constituinte que não se deixa reduzir à transcendência do poder constituído116.

Assim, podemos dizer que o Poder Constituinte possui um caráter dúplice: se este for interpretado de modo aberto ele será revolucionário; se for neutralizado pelo Direito
Positivo e suas categorias jurídicas estáticas, será conservador. O primeiro destes, presta grande destaque a conceitualização originária nascida a partir dos movimentos
iluministas, enquanto o segundo o resignifica dentro de um Estado liberal já constituído, com o intuito de limitar eventuais revoluções sociais futuras, através da rigidez da
Ordem jurídica.
Portanto, para uma melhor compreensão do Poder Constituinte, como fenômeno social, político e jurídico, se faz necessário mergulhar em sua genealogia, a fim de encontrar
na microfísica das relações de poder em conflito e em seus discursos, o substrato vital de sua função.
Para isso, importante lembrar as considerações de Foucault a respeito das relações de poder e dos discursos. Para o filósofo francês, o poder tem no discurso uma de suas
ferramentas fundamentais de exercício, já que permite o desenvolvimento de um sistema de construção de verdades e de estruturas de pensamento:

Não há possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla exigência. Somos submetidos
pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê−lo através da produção da verdade. Isto vale para qualquer sociedade, mas creio que na nossa as relações
entre poder, direito e verdade se organizam de uma maneira especial117.

Assim, para Foucault, onde há poder, ele se exerce: “Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção”118.
Não por outra razão, ao trazer algumas de suas conclusões a respeito do Poder Constituinte, Antônio Negri az alusão às ideias de Foucault como uma alternativa
contemporânea para entender a relação entre o poder e os meios de sujeição na sociedade moderna. É, inclusive, do pensamento foucaultiano a influência de Negri sobre o
método genealógico.
As concepções acerca do Poder Constituinte são entrelaçadas historicamente pela ótica de diversos autores e vinculadas à determinada conjuntura política. Assim, carreado
nas posições aqui apontadas, importante questionar a tradição consolidada na Teoria Política a respeito do Poder Constituinte, com o intuito de criar alternativas as visões liberais
e normativas do Estado de Direito sobre o tema.
Pode-se dizer que a ciência jurídica se utiliza de categorias abstratas como o poder constituinte, transformando o que é aberto e multifacetado em conceitos conservadores e
fechados. Logo, “o pensamento jurídico (tradicional) não poderia nos oferecer respostas para as questões que se colocam a respeito de um sujeito adequado ao seu processo
revolucionário”119. Ainda hoje fica visível que a tradição Constitucional pautada nos preceitos liberais enraizou na teoria do Estado uma concepção racionalizada do Poder
Constituinte que se distancia de um conhecimento transformador da realidade e da emancipação do ser humano.
O Poder Constituinte, como importante motor do processo histórico da sociedade, vai muito além do modelo domesticado que encontramos dentro dos sistemas normativos
existentes nos Estados de Direito na atualidade. Enxergá-lo de forma crítica permite com que se resgate sua verdadeira potência de agir, adormecida pelas forças de poder que um
dia se utilizaram dele, e assim, outorga que este ressurja como legitimo instrumento de soberania popular e de expressão da liberdade humana.

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SIEYES, J. E. Qu’est-ce que le tiers état. Editions Du Boucher, 2002.

SIMIONI, R. L. Direito e racionalidade comunicativa. Curitiba: Juruá Editora, 2007.

SOMEK, A. The Constituent Power in a National and in a Transnational Context. University of Iowa; College of Law, 2012.

Notas de Rodapé
103 MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade. Atualizador: Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2002.
104 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
105 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
106 Aluno de Mestrado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) com graduação em Direito pela mesma instituição.
107 “Digo, pois, que outra coisa não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão
um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não porém a vontade”. ROUSSEAU, Jean
Jacques. Du Contrat Social. Gallica: Bibliothéque Numérique de la Bibliothéque Nationale de France. p. 14.
108 “Si donc Le peuple promet simplement d’obéir, il se dissout par cet acte, il perd as qualité de peuple ; à l’instant qu’il y a un maître, il n’y a plus de souverain,
et dès lors le corps politique est détruit”. ROUSSEAU, Jean Jacques. Du Contrat Social. Gallica: Bibliothéque Numérique de la Bibliothéque Nationale de
France.
109 “Pela mesma razão que a torna alienável, a soberania é indivisível, porque a vontade é geral (5), ou não o é; é a vontade do corpo do povo, ou apenas de
uma de suas partes. No primeiro caso, essa vontade declarada constitui um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou
um ato de magistratura: é, no máximo, um decreto. Porém nossos políticos, não podendo dividir a soberania em seu princípio, dividem-na em força e em
vontade, em poder legislativo e em poder executivo, em direitos de impostos, de justiça e de guerra, em administração interior e em poder de tratar com o
estrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora as separam; fazem do soberano um ser fantástico formado de peças ajustadas; é como se
compusessem o homem reunindo diversos corpos, um dos quais teria os olhos, outro os braços, outro os pés, e nada mais”. ROUSSEAU, Jean
Jacques. Du Contrat Social. Gallica: Bibliothéque Numérique de la Bibliothéque Nationale de France. p. 15.
110 “A nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade sempre legal, é a própria lei. antes dela e acima dela só existe o direito natural. Se
quisermos ter uma ideia exata da série das leis positivas que só podem emanar de sua vontade, vemos, em primeira linha, as leis constitucionais que se
dividem em duas partes: umas regulam a organização e as funções do corpo legislativo; as outras determinam a organização e as funções dos diferentes
corpos ativos. Essas leis são chamadas de fundamentais, não no sentido de que possam tornar-se independentes da vontade nacional, mas porque os
corpos que existem e agem por elas não podem tocá-las. Em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte.
Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições de sua delegação. É neste sentido que as leis constitucionais são fundamentais. As
primeiras, as que estabelecem a legislatura, são fundadas pela vontade nacional antes de qualquer constituição; formam seus primeiro grau. As segundas
devem ser estabelecidas por uma vontade representativa especial. Desse modo, todas as partes do governo dependem em última análise da nação.
Estamos dando somente uma vaga idéia, mas ela é exata”. SIEYES, Joseph Emmanuel. Qu’est-ce que le tiers éta. Editions Du Boucher, 2002. p. 53.
111 A Revolução Francesa não deve ser considerada apenas como uma revolução burguesa. Embora esta tenha sido a ideologia e a sua forma dominante, ela
foi o produto da confluência de quatro movimentos distintos: uma revolução aristocrática (1787-1789), uma revolução burguesa (1789-1799), uma revolução
camponesa (1789-1793) e uma revolução do proletariado urbano (1792-1794). Também não se deve supor que a revolução tenha começado em 1789, pois
neste ano começa a tomada do poder pela burguesia e não o início do processo revolucionário. Este começou dois anos antes, em 1787, com a revolta da
aristocracia contra a monarquia absolutista. Foi este fato que criou as condições e a oportunidade para a burguesia tomar o poder. Por outro lado, sem a
revolta dos camponeses, o regime feudal não teria sido destruído por completo e sem a contra-revolução da aristocracia que culminou com o apelo à
intervenção estrangeira não teria se desenvolvido a revolução do proletariado urbano. E, finalmente, sem este último, a burguesia não teria resistido à
invasão estrangeira e, portanto, permitido que a revolução chegasse a seu termo lógico e historicamente possível (FLORENZANO, Modesto. As
Revoluções Burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 15-16).
112 “Portanto, o poder constituinte não pode ser capturado por um mero relato narrativo da formação ou reforma política de uma nação. Em vez disso, o conceito
refere-se a algum tipo especial de agência coletiva. Sujeito a certas restrições normativas, que são notoriamente difíceis de especificar, uma constituição
existente pode ser atribuída ao poder constituinte. Esta é, evidentemente, uma questão de interpretação”. SOMEK, Alexander. The Constituent Power in a
National and in a Transnational Context. University of Iowa; College of Law, 2012. p. 4.
113 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. reimpressão. Coimbra: Almedina, 1999. p. 11.
114 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e racionalidade comunicativa. Curitiba: Juruá Editora, 2007. p. 133.
115 NEGRI, Antônio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. p 19.
116 COCCO, Giuseppe; PILATTI, Adriano. Desejo e Liberação: a potência constituinte da multidão. In: O PODER Constituinte: ensaio sobre as alternativas da
modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. p. II-III.
117 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Brasil: Edições Graal, 2008. p. 179-180.
118 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Brasil: Edições Graal, 2008. p. 75.
119 NEGRI, Antônio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. p. 44.

7. O USO DE MÁSCARAS EM MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS: a ponderação de interesses no âmbito constitucional

Felipe Cesar José Matos Rebêlo120

1. Introdução

Nos últimos anos veio à baila uma discussão referente ao uso de máscaras em manifestações públicas, mormente no caso de reivindicações representativas de demandas
sociais. O ano de 2013 em diante pode ser citado no contexto relatado.
Com efeito, a discussão perpetrada se embasa no questionamento oponível à legalidade ou não do uso de máscaras nessas manifestações, tendo-se como base,
principalmente, o ordenamento constitucional pátrio. A dicotomia na discussão, por esse ponto de vista, adentra ao uso de máscaras como uma tática a ser utilizada por
organizações criminosas para depredar o patrimônio público e causar instabilidade social, e na questão da ponderação constitucional que permita a livre manifestação da expressão
e da opinião, sem caracteres inibidores, dentro das possibilidades constitucionais no concernente ao próprio direito de questionamento das decisões públicas e governamentais.
Com base nessas premissas, busca-se desenvolver o presente artigo, tendo-se como objetivo estudar as assertivas citadas, bem como o ordenamento constitucional brasileiro
nos princípios referíveis ao caso concreto. A própria atuação suscitada do Supremo Tribunal Federal para a determinante em estudo também será considerada, buscando-se
entender como os princípios constitucionais atinentes ao tema podem ser considerados, pensando-se acerca do processo hermenêutico da ponderação de interesses, na seara
constitucional, como uma determinante que possa ou não ser capaz de atingir um grau de inteligência para a consecução de fins à discussão posta em tela.
Nesse sentido, será possível se vislumbrar hipóteses de pesquisa que contemplam ou a admissibilidade do uso de máscaras em manifestações públicas, ou a sua proibição,
tendo-se como cerne para a análise as tessituras constitucionais informadas.
O próprio potencial de manifestação do Supremo Tribunal Federal para a questão alvo de estudo também merecerá acolhida, não se ignorando sua jurisprudência pertinente
para o entendimento como um cabedal propício para a estruturação do posicionamento que poderá ser aferível à conjuntura apresentada.
A partir desses pontos se estrutura o caminho a ser percorrido, que se pauta pelo estudo das manifestações populares como realce oponível à democracia participativa
contemporânea, o relacionamento dos princípios constitucionais com essa realidade, e, por ponto culminante da análise do Supremo Tribunal Federal sobre o caso, tendo-se em
mente o potencial de decisão que apresenta diante de ação proposta pelo Partido da República, através de seu Diretório Regional, diante de legislação restritiva do governo do Rio
de Janeiro acerca do tema.
Por fim, cumpre esclarecer que para o alcance dos fins do trabalho em questão, diz-se que o método de abordagem adotado é o método hipotético-dedutivo, pois o trabalho
intelectivo se baseia na apreciação da hipótese formulada, confrontando-se esta com o conhecimento existente, expresso pelas doutrinas nacional e internacional afeitas ao tema
(principalmente a nacional), e, em caráter complementar, pelo relacionamento desse conhecimento com o caso prático sob análise, e exemplos da jurisprudência nacional
(Supremo Tribunal Federal) e internacional afeitas também ao tema, naquilo que for pertinente.
De outra via, o método de procedimento adotado na pesquisa é o que se baseia pelo levantamento bibliográfico, expresso pelo método dissertativo-argumentativo, pois se
pretende apresentar o tema com a devida profundidade, pautando-se pelas doutrinas nacional e internacional afeitas ao tema, instrumentalizando-se o estudo princípio lógico,
factual e jurisprudencial como um apoio constante para o devido desenvolvimento do problema de pesquisa. Busca-se, com todo o proposto, a edificação do argumento sob
apreciação em bases sólidas e cientificamente concatenadas.

2. As manifestações públicas como expoentes da democracia participativa

A democracia enseja um processo contínuo de alteração de suas características basilares. A sociedade, como ente que também se encontra em mudança contínua, devido à
própria mutabilidade valorativa de seus integrantes, que compõem o todo, enseja também essa alternatividade no eixo democrático.
A Constituição de 1988 pode ser considerada como um marco democrático nacional, após a instauração da redemocratização, em rompimento a um longo período de
ditadura militar.
Em que pese o documento constitucional citado consagrar um modelo de democracia representativa, pode ser concebido, outrossim, como um documento jurídico que
internaliza uma feição participativa do modelo democrático de forma notável. A instituição de elementos de participação como o plebiscito e o referendo121, fornecem aspecto
conceitual no sentido proposto. É por causa desses elementos que se chega a falar em democracia semidireta para o caso brasileiro.
As manifestações públicas, tais quais as deflagradas de forma mais intensa a partir de 2013, e alvo da presente análise, podem ser inseridas no contexto de uma democracia
participativa que esprai suas ramificações e exigências, reflexo das demandas sociais.
Com efeito, hoje a sociedade civil, de um modo geral, não se contenta apenas em participar do processo eleitoral e escolher seus representantes nas urnas. Verifica-se uma
necessidade de participação da própria gestão pública, como uma forma de concretização da cidadania que se implica no conceito de democracia, hoje aventado e estruturado de
forma perpendicular à participação e controle da coisa pública pelos cidadãos.
Irene Patrícia Nohara122 enfoca esse ponto:

Cidadania implica erigir o cidadão à condição de protagonista da transformação social e não considerá-lo tão somente da perspectiva de destinatário de uma prestação
pública. Em suma, em vez de enxergar o cidadão da perspectiva de destinatário, isto é, de objeto das decisões alheias, se o que se deseja é a intensificação dos valores
democráticos e da soberania popular, as pessoas devem ser consideradas como sujeitos capazes de influenciar os rumos das políticas públicas ou dos procedimentos
administrativos que irão afetar seus interesses.

Com base nessa assertiva, denota-se que o processo contínuo de mutação democrática, conforme asseverado, pauta-se por um resultado de anos de cerceamento eleitoral e
participativo, culminando com um processo de participação da sociedade civil em crescimento desde meados dos anos de 1980.
Com efeito, no período relatado é oponível uma maior participação, destacando-se o associativismo como um traço marcante, em que as pessoas formam agrupamentos de
participação, compreensão e tomada de decisões no tocante a problemas locais, especificamente, as localidades aonde as pessoas residem.
Nessa seara, a própria Administração Pública é entendida como um ator que pode influenciar e estimular a participação, atando suas forças às forças sociais já existentes de
forma a que a atuação pública seja mais incisiva à coordenação de interesses123, com fulcro em uma Administração mais eficiente e integrada aos interesses sociais.
A transparência e a instrumentalização de um processo de accountability ganham força na esteira determinada, já que o maior contato e a maior proximidade dos cidadãos da
coisa pública, em uma gestão mais compartilhada com os administradores e representantes eleitos, pode fomentar o alcance de políticas públicas mais condizentes aos verdadeiros
anseios sociais.
As manifestações públicas que se iniciaram de forma mais incessante em 2013, portanto, vem nos desdobramentos apresentados historicamente pela sociedade e pela própria
democracia, que adquire maior feição participativa do que representativa nos tempos hodiernos. O caráter de identificação com os anseios sociais, na moldura proposta pela
Constituição Federal de 1988, receberá a devida abrangência e concretude no item subsequente, quando se tratará do aspecto princípio lógico concernente às manifestações
públicas, especulando-se sobre os respectivos aplicáveis tanto às demandas sociais como aos argumentos governamentais levantados para cercear tais expressões do
espírito popular.
Aliás, cumpre enfocar, de forma derradeira no presente item, que a democracia participativa encontra seus primórdios conceituais já antecipados em tempos anteriores aos
dias correntes. Nas estipulações clássicas de democracia participativa, já se especulava acerca da legitimidade que a participação mais incisiva, constante e próxima do cidadão,
em referência a gestão pública, pode consolidar a sociedade como necessariamente envolvida no aspecto retratado, espelho de interesses que se aperfeiçoam ao decorrer do tempo.
O caso norte-americano pode ser elucidado a título exemplificativo. A sociedade norte-americana, desde os tempos de seu processo revolucionário pela independência, já se
compreendia como um grande conglomerado em que a preocupação e a participação cidadã eram constantes no dia a dia, sendo quase normal a aproximação dos indivíduos do
processo administrativo-decisório de suas localidades. As vilas da Nova Inglaterra eram tidas como os exemplos clássicos dessa assertiva124. Ainda sob esse ponto, o pleno
associativismo também se reservou uma característica típica125.
É com base nessa sistêmica, e motivado, ainda, pela democracia representativa que se aperfeiçoava, que Thomas Jefferson elucida a democracia de feição participativa como
um caractere necessário à conjugação do espírito democrático, e capaz de tornar mais sustentável a própria República em que se erige uma dada sociedade126:

Every government degenerates when trusted to the rulers of the people alone. The people themselves therefore are its only safe depositories. And to render even them
safe their minds must be improved to a certain degree. This indeed is not all that is necessary, though it be essentially necessary. An amendment of our constitution
must here come in aid of the public education. The influence over government must be shared among all the people. If every individual which composes their mass
participates of the ultimate authority, the government will be safe; because the corrupting the whole mass will exceed any private resources of wealth: and public ones
cannot be provided but by levies on the people.

Portanto, com base no exposto, se verifica a sistematicidade e evolução da democracia ao status participativo como um processo de linearidades históricas, que já encontrava
sustentações teórico-práticas em tempos passados, e que se aperfeiçoou de forma mais concreta nos últimos tempos dos séculos XX e XXI.

3. Os princípios constitucionais e as manifestações públicas

A temática das manifestações públicas como uma atitude lícita nos dias contemporâneos perpassa uma análise referente aos próprios desígnios norteadores da
Constituição Federal.
De forma objetiva, pode ser esclarecido que alguns princípios basilares do documento constitucional podem ser elencados para a abordagem pretendida, que se relacionam
com regras específicas ou, neste caso, desdobramentos de direitos fundamentais.
De um lado, destaca-se o direito fundamental consagrado no art. 5º, referente ao direito de reunião, um expoente da concessão dos atributos fundamentais ligados a
sociabilidade humana, logo após o término do período da repressão militar e estabelecimento da redemocratização. Alinha-se, por sinal, a esse direito, aquele que consagra a
liberdade de expressão, de forma adjacente, em um grau de protagonismo auxiliar ao primeiro enunciado127. O princípio constitucional da liberdade norteia ambas as concepções,
fornecendo-lhes uma aplicabilidade mais consentânea aos objetivos constitucionais.
Com efeito, referem-se a direitos e garantias fundamentais, preceitos que fornecem aos cidadãos a possibilidade de expor seus argumentos e seus posicionamentos políticos,
sociais, dentre outros, em um cenário público, desde que as devidas autoridades sejam avisadas com antecedência. No entanto, não se consagra obrigação nenhuma de obter
autorização governamental, já que tal fato implicaria a desnaturação do instituto, aliando-se a isso o fato contraditório de se chocar com a evolução democrática dos anos de 1980.
O uso de máscaras se encartaria nesse permissivo, fornecendo respaldo a liberdade de expressão e pensamento como fomentador de apoio à sua licitude. Celso Bastos128 enxerga
essa possibilidade, mais reitera a necessidade de certo regramento jurídico para a sua perpetuação:

A liberdade de pensamento nesta seara já necessita da proteção jurídica. Não se trata mais de possuir convicções íntimas, o que pode ser atingido independentemente do
direito. Agora não. Para que possa exercitar a liberdade de expressão do seu pensamento, o homem, como visto, depende do direito. É preciso, pois, que a ordem
jurídica lhe assegure esta prerrogativa e, mais ainda, que regule os meios para que se viabilize esta transmissão.

Por seu turno, pode ser aposto outro preceito constitucional fundamental referente ao tema, e como um limite governamental às ações deflagradas pelas manifestações
públicas tais quais observadas, de forma mais intensa, a partir de 2013. Refere-se à vedação do anonimato129, presente à liberdade de pensamento e manifestação, principalmente
em ações que exprimem específicas manifestações intelectivas e de opinião dos cidadãos. O princípio da legalidade pode ser atribuível a esse preceito fundamental, referindo-se
como plausível a manifestação se se observa o anonimato como um instrumental necessário em sua consecução. Portanto, o princípio da liberdade encontra o princípio da
legalidade para a sua aplicabilidade prática, considerado o contexto constitucional.
Nas palavras de José Afonso da Silva130:

A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento
manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro
atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta. O art. 5º, V, o consigna nos termos seguintes: é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Esse direito de resposta, como visto antes, é
também uma garantia de eficácia do direito à privacidade. Esse é um tipo de conflito que se verifica com bastante frequência no exercício da liberdade de informação
e comunicação.

Assim sendo, se está diante de dois princípios que podem gozar de certo antagonismo no caso prático, uma vez que, naturalmente, podem se defrontar em seu aspecto de
conteúdo, ainda mais no caso concreto colocado em tela, em que o uso de máscaras pode ser sustentado como um instrumental ao anonimato, e a prática de atos criminosos em
defronte à ordem pública, como depredação e saques. Esta última questão será melhor detalhada no item subsequente.
Outrossim, cabe informar que quando se está diante do choque de princípios constitucionais, o antagonismo e impossibilidade de harmonização entre os mesmos se refere a
um conflito aparente de normas. A Constituição Federal, como documento máximo do ordenamento jurídico, não é concebido em seu conteúdo como dotado de incongruências ou
normas de aplicação díspar. A fluidez e a sua harmonia devem ser compreendidas como matizes características do texto constitucional, e essenciais para a sua aplicabilidade
conforme os fins sociais.
Na esteira do argumentado é que se pode comentar acerca da técnica hermenêutica da ponderação de interesses, e atinente à devida instrumentalização dos princípios
constitucionais, e demais normas de abrangência superior no ordenamento jurídico.
Aplica-se essa técnica pois se está diante de um conflito aparente entre princípios, que são materialmente diferentes das regras (constitucionais). A distinção entre ambos
apresenta o préstimo de fomentar o caminho para a articulação de uma resposta acerca da racionalidade que circunscreve os direitos fundamentais, bem como para a edificação de
uma teoria dos direitos fundamentais131.
No âmbito de discussão apresentado, denota-se que os princípios possibilitam uma aplicação conciliadora, preservando-se a essência dos princípios envolvidos, enquanto as
regras exigem o certame do “tudo ou nada”, ou seja, deve-se aplicar uma regra ou outra ao caso prático posto sob análise, sendo o grau de conformidade e conciliação menor neste
caso. Robert Alexy trata deste tópico132:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de optimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus
variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das
possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale,
então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente
possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma ou é uma regra ou um princípio.

A ponderação de interesses, com base na distinção entre princípio e regra, se revela como uma técnica em que o critério ou princípio da razoabilidade e da proporcionalidade
é considerado para o deslinde das demais normas constitucionais, especificamente os princípios constitucionais. Busca-se a adequação que permita a subsistência de ambos os
princípios constitucionais no caso prático, de forma a auferir até que ponto pode ocorrer a aplicabilidade prática de cada um, sem se chocar com o outro e preservando as matizes
institucionais e básicas dos mesmos. Um princípio pode ter um maior aspecto de prevalecimento em seu conteúdo sobre o outro, mas a harmonia será o peso a ser posto em
interpretação, preservando-se a inteireza das normas no que for possível e necessário.
Como desdobramento, em que pese a ponderação de interesses se constituir uma técnica interpretativa aplicável originariamente aos princípios, irá influenciar decisivamente
a aplicação das regras que se ligam aos princípios analisados, podendo afetar a sua pertinência para o ajustamento em certo caso concreto. Daniel Sarmento133 explicita isso,
ainda mais quando se tem de um lado os direitos fundamentais à manifestação e reunião, com apoio no princípio da liberdade, e do outro a vedação ao anonimato, mais sensível ao
princípio da legalidade:

Cumpre observar, porém, que inúmeras regras constitucionais representam a concretização normativa de princípios, dos quais são materialmente dependentes.
Épossível que o princípio inspirador de determinada regra constitucional entre em tensão, num caso concreto, com outro princípio constitucional. Neste caso, a eventual
não aplicação do primeiro princípio, em decorrência de uma ponderação de interesses, levará também à não incidência da regra que dele for um desdobramento.

O mesmo autor retratado no último parágrafo, ademais, assim define essa técnica hermenêutica, e aplicável ao caso dos princípios estudados134:

Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado
afiguram-se determinantes para a atribuição do “peso” específico a cada princípio em confronto, sendo, por consequência, essenciais à definição do resultado da
ponderação. [...] A ponderação de interesses só se torna necessária quando, de fato, estiver caracterizada a colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais
incidentes sobre um caso concreto. Assim, a primeira tarefa que se impõe ao intérprete, diante de uma possível ponderação, é de se proceder à interpretação dos
cânones envolvidos, para verificar se eles efetivamente se confrontam na resolução do caso, ou se, ao contrário, é possível harmonizá-los.

Outrossim, o estágio de análise para a instrumentalização da ponderação de interesses segue o esquema intelectivo fornecido por Ana Paula de Barcellos135:

Simplificadamente, é possível descrever a estrutura da ponderação como um processo em três etapas. Em uma primeira fase, se identificam os comandos normativos ou
as normas relevantes em conflito. [...] Na segunda fase cabe examinar as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões sobre os elementos normativos, daí se
dizer que a ponderação depende substancialmente do caso concreto e de suas particularidades. [...] Na terceira fase – a fase da decisão, se estará examinando
conjuntamente os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos sobre eles, a fim de apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diferentes elementos em
disputa. [...] O princípio da proporcionalidade – e em especial uma de suas derivações: a vedação do excesso – serão instrumentos importantes nesse ponto.

Como se pode observar, consequentemente, o fim de preservação dos princípios envolvidos na discussão deve se embasar nos fins últimos da própria Constituição Federal,
no que se refere a busca de uma sociedade mais igualitária, em que a justiça social seja um norte136. Os fins da Constituição necessitam ser harmonizados aos casos levados à
interpretação e análise quanto à constitucionalidade, principalmente no que se refere a aplicação dos princípios constitucionais, que possuem um espectro de abrangência
orientador e de eficácia potencial e incisiva no ordenamento jurídico, inclusive sobre as regras de mesma matriz.
Os princípios constitucionais ensejam essa reflexão quanto a sua instrumentalização prática. O caso do uso de máscaras em manifestações se denota um exemplo fático do
exposto, cabendo ao aplicador do direito o seu devido enfileiramento cognitivo, mormente ao Supremo Tribunal Federal.

4. O Supremo Tribunal Federal e a análise da questão

A temática referente ao uso de máscaras em manifestações públicas contorna-se, como explicitado, por referências atinentes aos princípios constitucionais, e no bojo da
atestada democracia participativa como hoje pode ser pontuada.
De outra maneira, também tem alcançado um debate nos tribunais, mormente na mais alta corte pátria, o Supremo Tribunal Federal.
Tudo começou com medidas tomadas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, diante das manifestações públicas que aconteciam naquela unidade da federação, e em que
muitos manifestantes se apropriavam do uso de máscaras em suas ações. A ocorrência de algumas depredações em bens públicos, acabou por motivar a edição da Lei Estadual
n. 6.583/13, com o fulcro de restringir o uso de tais utensílios.
Todavia, a questão não se limitou a esse ponto. O Partido da República, através de seu Diretório Regional, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a manifestação
legislativa do governo carioca, sendo que o órgão a quo optou por não dar provimento à medida jurídico-constitucional interposta.
Em que pese esse acontecimento, a questão rumou para Brasília, sendo que o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, optou por reconhecer a
admissibilidade da medida judicial interposta, abrindo a possibilidade de trâmite e seguimento para o respectivo recurso extraordinário com agravo (n. 905.149/RJ). Baseou seu
entendimento na eficácia do reconhecimento da repercussão geral da questão a ser apreciada, envolvendo tópicos de abrangência constitucional irrefutáveis, como se pode
depreender dos princípios constitucionais citados no item anterior137.
Não é de hoje que se denota a apreciação de uma questão semelhante à exposta no presente trabalho por uma Corte Superior. A experiência estrangeira também fornece
exemplos. No que cabe aqui explicitar, se irá abordar caso submetido à Suprema Corte de Ohio, com julgamento em 1995: McIntyre vs. Ohio Elections Commission.
Trata-se de contenda em que Margaret McIntyre é questionada pela utilização e distribuição de panfletos, questionado um projeto que iria a referendo, acerca da imposição
de uma taxa escolar obrigatória. Oficiais das escolas do distrito respectivo se voltaram contra a ação de Margaret, que poderia apresentar o condão de prejudicar o referendo que
ocorreria naquele estado, em um caso à parte do código eleitoral vigente. Ou seja, a alegação é de que havia o prejuízo para a legislação eleitoral pertinente, ou, mais
especificamente, o Código Eleitoral de Ohio.
A problematização foi apreciada pelo órgão julgador, e se optou por entender que Margaret McIntyre não agiu em desconformidade com o ordenamento jurídico, e seus
entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, uma vez que a panfletagem de conotação opinativa acerca de diversas temáticas sempre se revelou uma constante na história
norte-americana, desde o movimento pró-independência, sem se esquecer que, não obstante a estrita legalidade deva ser observada (como no caso do Código Eleitoral de Ohio), a
primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos da América também merece guarida e fornece respaldo a esse tipo de conduta perpetrada, ao assegurar a liberdade de
expressão e opinião138.
Como se pode atestar, o caso submetido ao Supremo Tribunal Federal se revela um fator presumível, primeiramente devido a importância do tema fulcro de discussão, e em
segundo lugar devido à própria experiência, que demonstra a procura pelos tribunais de alto nível para a apreciação de questões de relevância como a enfatizada em tela.
Considerando-se o predisposto pelo Supremo Tribunal Federal na matéria analisada, ou seja, tendo-se em mente sua jurisprudência consolidada, é de se supor que a egrégia
corte superior brasileira deva buscar a manutenção, em um grau avantajado topicamente, do princípio constitucional da liberdade, expresso pela garantia fundamental do direito de
reunião (aliado à liberdade de expressão), em detrimento da vedação ao anonimato (e do princípio da legalidade, em seus aspectos pertinentes a problematização feita), por se
entender que essa específica ponderação de interesses é a que mais se adequa ao espírito constitucional, preocupado em garantir os direitos fundamentais tão reprimidos e negados
aos cidadãos após um longo período de ditadura militar.
Em outros termos, um princípio acaba preponderando no caso concreto sobre o outro, o que irá influenciar a aplicação das regras ligadas aos mesmos, em maior ou menor
amplitude, dependendo do princípio que prevalecer.
O excerto abaixo, ementa que reflete a jurisprudência temática do Supremo Tribunal Federal, pode ser pontuado para este exame:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO
PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma
das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo
Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur
Verfassung). III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99 (STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade
n.1969, Plenário – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – j. 25.06.2007, DJE 31.08.2007).

Ademais, verifica-se, também, que a doutrina tem se colocado ao lado dessa chancela. Aborda-se, sob esse ponto de vista, que as máscaras podem até expressar uma via
lúdica dos manifestantes, cabendo ao Poder Público tomar as medidas de segurança e preservação do patrimônio público, solicitando a devida identificação documental dos
manifestantes à ocasião do ato público.
Assim, assegura-se a segurança da população e do patrimônio público, bem como o direito de reunião e de manifestação, nos termos previstos constitucionalmente139:

Assim, da mesma forma que se diz que a máscara dificulta a identificação, sendo tal óbice suprido pela identificação civil do manifestante, trata-se de recurso (às vezes
lúdico até) de expressar algo, o que é simbólico e tem efeitos nos debates públicos e nas redes sociais. Em suma, o uso de máscara não impede a identificação do
manifestante, que pode apresentar sua identidade civil e prosseguir no ato. Se houver manifestantes que depredam o patrimônio público e/ou privado ou que causem
atos de violência, tal ação deverá ser contida pelas autoridades públicas, por meios proporcionais, independentemente de os manifestantes estarem com máscaras
ounão.

Com base no exposto, portanto, tem-se em conta que o caso de maior destaque na jurisprudência, e referente ao uso de máscaras em manifestações públicas, encontra-se sob
tutela do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a sua relevância e repercussão geral, com fins à apreciação. E, também se considerando seu posicionamento hodierno,
existindo uma lógica de manutenção, caminha-se no sentido de que se preserve essa jurisprudência permissiva ao uso de máscaras, reforçando-se a ponderação de
interesses140 como preservação dos princípios e da normatividade constitucional.

5. Conclusão

O uso de máscaras em manifestações públicas, em tempos de grandes questionamentos acerca da situação política e social do país, se tornou um acontecimento muito
presente no cenário pátrio. O grande enfrentamento que tem persistido nessa temática refere-se à legalidade ou não no uso dessas máscaras nos eventos perpetrados.
Ações governamentais tem se mostrado avessas a essa prática, baseando-se no argumento de que não é possível a identificação das pessoas envolvidas nas singulares
manifestações, sem se ignorar que a depredação de bens públicos encontra facilidades nesse suposto acobertamento de identificação, como teria ocorrido no Rio de Janeiro, e
motivado a ação governamental naquele estado.
Por outro lado, o direito de reunião, bem como a liberdade de expressão, são decantados no polo antagonista, como forma de preservação do próprio espírito constitucional,
cabendo às autoridades tomarem outras atitudes se almejarem à segurança pública.
Conforme asseverado, a questão, em seus últimos requintes tópicos, chegou ao Supremo Tribunal Federal, motivada pela ação do governo carioca apresentada no presente
trabalho, podendo-se entender que, com fulcro em sua própria jurisprudência, em um ambiente ansiado de democracia participativa como produto de anos de ausência de
manifestação política, e, por fim, com base na própria técnica hermenêutica consagrada, em que a ponderação de interesses assume um caráter impetuoso, é de se entender que a
mais alta corte nacional irá endossar a licitude do uso de máscaras em manifestações públicas, para mais este caso específico apresentado.
Com efeito, a vedação ao anonimato se revela uma norma constitucional importante, autoexecutável e de aplicabilidade imediata, assim como o direito de reunião, devendo o
órgão julgador, bem como o aplicador do direito, reconhecer as matizes sociais vigentes, bem como as características e peculiaridades de cada caso, quando se for instrumentalizar
o documento constitucional na prática.
Por assim dizer, reconhecer a aplicabilidade da normatividade constitucional em favorecimento ao uso de máscaras em manifestações públicas se faz de modo apropriado,
pois se legitima de forma devida os preceitos do texto constitucional, ao mesmo temo que o mesmo encontra legitimidade na ação social tópica e temporal.
REFERÊNCIAS

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TOCQUEVILLE, A. de. A Democracia na América: leis e costumes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. v. 1.

Notas de Rodapé
120 Felipe Cesar J. M. Rebêlo é Mestre e Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. Pesquisador
atuante nas áreas de Direito Econômico, Direito Político/Eleitoral, Filosofia do Direito e Direito Internacional Público. Integrante do Grupo de Estudos de
“Criança e Adolescente no Séc. XXI”, bem como dos grupos de pesquisa “Os Parlamentos Latino-Americanos” e “Políticas Públicas como instrumento de
efetivação da Cidadania”, Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado e Professor Universitário. E-mail: [email protected]
121 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.
122 NOHARA, Irene Patrícia. Democracia e Participação Direta – reflexões sobre os limites e as novas possibilidades de efetivação da soberania popular pela
governança pública. In: MESSA, Ana Flávia; SIQUEIRA NETO, José Francisco; BARBOSA, Susana Mesquita (Coords.). Transparência Eleitoral. São
Paulo: Saraiva, 2015. p. 208.
123 COSTA, Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de Esferas Públicas Locais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.
12, n. 35, p. 132, out. 1997.
124 DEWEY, John. O Pensamento vivo de Jefferson. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1952. p. 32.
125 TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: leis e costumes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. v. 1, p. 219-220.
126 JEFFERSON, Thomas. Notes on the State of Virginia. In: PETERSON, Merril D. (Org.). Thomas Jefferson Writings. New York: The Library of America,
2011. p. 274-275.
127 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IX – é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; [...] XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em
locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo
apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
128 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 195.
129 “Art. 5º [...] IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
130 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 247.
131 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 85.
132 Ibid., p. 90-91.
133 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 106.
134 Ibid., p. 112.
135 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação
Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 57-58.
136 REBÊLO, Felipe Cesar José Matos. Atividade Econômica e Publicidade Comparativa: a defesa do consumidor e da concorrência. 1. ed. São Paulo: Atlas,
2013. p. 101-102.
137 O Ministro Luís Roberto Barroso se manifestou da seguinte forma: “8. O caso envolve a discussão sobre os limites da liberdade de manifestação do
pensamento e de reunião, não apenas pela vedação ao anonimato (CRFB/1988, art. 5º, IV), como também por suas tensões com as necessidades da
segurança pública, notoriamente discutidas em razão da atuação dos grupos conhecidos como black blocs. A forma peculiar de manifestação desses
grupos cujos integrantes são identificados por suas roupas e máscaras pretas, bem como por ações de depredação patrimonial suscitou intensas
discussões nos anos recentes. 9. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, não se trata de alegada ofensa reflexa. Não há necessidade de analisar
nenhum dispositivo infraconstitucional para alcançar o argumento de violação às normas constitucionais invocadas, valendo lembrar que o art. 23 da
Constituição fluminense reproduz o art. 5º, XVI, da Constituição da República, hipótese em que esta Corte admite a interposição de recurso extraordinário,
ao menos desde a Rcl 383, Rel. Min. Moreira Alves. 10. De resto, a construção de parâmetros na matéria é questão de evidente repercussão geral, sob
todos os pontos de vista (econômico, político, social e jurídico), haja vista a relevância e a transcendência dos direitos envolvidos num Estado Democrático
de Direito” (STF – Recurso Extraordinário com Agravo n. 905.149, Plenário – Rel. Min. Luís Roberto Barroso – j. 18.08.2016, DJE 25.08.2016).
138 “Amendment I. Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of
speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the government for a redress of grievances”.
139 NOHARA, Irene Patrícia. Proibição do uso de máscaras em manifestação. Carta Forense, São Paulo, p. 2, nov. 2013. Disponível em:
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/proibicao-do-uso-de-mascaras-em-manifestacao-posicao-contraria/12367>. Acesso em: 12 abr. 2017.
140 Alexandre Sanson e Michelle Asato Junqueira fornecem um quadro conceitual sobre a aparato jurisprudencial atinente ao caso: “A inconstitucionalidade ou
não da proibição a direito individual deverá ser concluída, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato, por meio da proporcionalidade,
diante da conjugação, sucessiva, de suas sub-regras. No entanto, alguns questionamentos não poderiam deixar de ser realizados. O primeiro é acerca do
anonimato, qual o seu alcance e o sentido no ordenamento pátrio, posto que em outros países afigura-se como direito oponível a terceiros, tanto pelo seu
caráter protetivo quanto pela possibilidade de um discurso mais livre. O segundo é entender a importância dos direitos atingidos pela proibição, eis que a
faculdade em questão é uma forma de expressão, por vezes de cunho contestatório, e que, certamente, não poderia ser tolhida, em ambiente democrático,
quando praticada pacificamente. Por fim, o terceiro é entender se a opção política de fato é apropriada aos seus fins, no caso reduzir a violência em
passeatas, comumente originada de grupos determináveis, pois a permanência de confrontos entre policiais e população pós-proibição coloca em dúvida a
sua eficiência” (SANSON, Alexandre; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Liberdade x Segurança: ponderações acerca da vedação do uso de máscaras em
manifestações públicas. Amazônia em Foco: Temas de Direitos Humanos, Castanhal, n. 2, p. 178-179, nov. 2013).
141 Mestre e Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado graduado pela Escola de Direito de São Paulo
da Fundação Getulio Vargas. Atuante na área de Propriedade Intelectual.

8. DIREITO HUMANO À FACILITAÇÃO DO ACESSO A OBRAS PUBLICADAS E TEXTOS IMPRESSOS POR PORTADORES
DE DEFICIÊNCIAS VISUAIS E OUTRAS DIFICULDADES DE LEITURA: interface com os direitos autorais e a internalização
do tratado de Marraqueche com status de emenda constitucional no Brasil

Leandro Moreira Valente Barbas141

1. Introdução

Um dos mais recentes tratados internacionais sobre direitos humanos a entrar em vigor é o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às
Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso142, concluído no âmbito da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual (OMPI). Assinado em junho de 2013 na capital do Marrocos, o tratado desde então aguardava o decurso do prazo de três meses após a ratificação por pelo menos 20
dos Estados-Membros da OMPI signatários para entrada em vigor, o que ocorreu em 30 de setembro de2016.
Referido tratado, por abordar questões de direitos humanos, pôde ser aprovado no Brasil mediante quórum qualificado (três quintos do total dos membros da Casa) em dois
turnos de votação no Congresso Nacional. Isto significa que a aprovação ocorreu nos termos do § 3º, do Art. 5º da Constituição Federal, incorporando-se ao ordenamento jurídico
com status de Emenda Constitucional, tal como expressamente mencionado no Decreto Legislativo nº 261, de 2015, do Congresso Nacional.
O desafio que a iniciativa se propõe a equacionar é, como se verá, o de equilibrar a garantia de acesso à cultura por parte de pessoas cuja capacidade de contato ou
compreensão de textos impressos é reduzida devido a alguma deficiência com a necessária proteção autoral de que devem gozar os titulares das obras.
O presente texto tem o propósito de apresentar e analisar as disposições do referido tratado, esclarecendo seus principais pontos de inovação, delimitando seu escopo de
aplicação e identificando as mais relevantes questões jurídicas envolvidas em sua interpretação.
A metodologia proposta para a breve análise é a estruturalista/sistêmica, pelo que a compreensão deste tratado não pode se dar sem levar em conta sua interface próxima com
outras normas nacionais e internacionais que dialogam direta e dependentemente com a matéria, tais como a Constituição Federal em si, a Lei Federal nº 9.610 (Lei de Direitos
Autorais), a Convenção de Berna sobre Direitos Autorais, a Convenção de Nova York sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e outros diplomas não menos importantes.

2. Do contexto de surgimento, negociação, assinatura e incorporação do tratado de Marraqueche

2.1 O cenário jurídico e sociopolítico que levou à elaboração do Tratado de Marraqueche

Segundo a Organização Mundial da Saúde143, há cerca de 285 milhões de deficientes visuais no mundo, dos quais 39 milhões são totalmente cegos e 246 milhões tem visão
reduzida. 90% de todas estas pessoas se localizam em países de baixa renda. No Brasil, as deficiências visuais atingem 3,6% da população, quase 20 milhões de pessoas144.
A World Blind Union, em dado ressaltado pela OMPI e pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil145, estima que apenas 1 a 7 por cento de todos os livros publicados
anualmente em todo o mundo se tornam disponíveis para estas pessoas. Entendendo que dados como estes permitem afirmar que a população mundial portadora de deficiências
visuais goza de acesso extremamente limitado a obras literárias e artísticas, sobretudo em formato impresso, estando a maioria em países menos desenvolvidos, é que a World
Blind Union propôs a adoção de um tratado que pudesse endereçar esta questão. Ainiciativa foi apresentada às Missões Permanentes de Brasil, Equador e Paraguai junto à
Organização Mundial do Comércio (OMC), que, entendendo tratar-se de questão relevante, por suas vezes apresentaram a proposta de tratado à OMPI na Décima Oitava Sessão
de seu Comitê Permanente de Direitos Autorais e Conexos em 2009146.
A proposta de adoção de um tratado que endereçasse a questão da acessibilidade de cegos e portadores de demais deficiências visuais a obras literárias e artísticas vem na
esteira das discussões em torno da Agenda de Desenvolvimento da OMPI. Adotada pela Organização em 2007 (dois anos antes da proposição do tratado pelas missões acima
mencionadas), referida Agenda consiste de 45 recomendações que tem por base promover o desenvolvimento, principalmente de países menos desenvolvidos, compatibilizando-os
com a plena proteção à propriedade intelectual. Estas 45 recomendações são divididas em seis “clusters”, cada um lidando com uma temática específica. A exemplo, alguns dos
principais tópicos abordados pela Agenda visam o estudo das melhores formas de se promover a transferência de tecnologia; desenvolvimento de habilidades (capacity building)
para a inovação em países menos desenvolvidos através de assistências técnicas; diminuição da assimetria informacional entre fornecedores e demandantes de tecnologia;
governança da inovação e outros temas.
O “Cluster B” da Agenda versa sobre a possibilidade de serem impostas flexibilidades e limitações aos direitos de propriedade intelectual, permitindo aos países a
implementação de legislações e políticas públicas na área que estejam mais bem adequadas às circunstâncias e particularidades locais ou regionais. Aideia é a de reconhecer que a
normatização na área da propriedade intelectual não pode ser uniformizada e internacionalizada em caráter absoluto, sem levar minimamente em consideração o contexto
histórico, social, político e econômico de cada país membro que se sujeitará a estas regras. Por outro lado, a Agenda também tem o cuidado de bem orientar os países para que não
permitam a conversão da possibilidade da imposição de flexibilidades e limitações em instrumento para a erosão dos sistemas de proteção à propriedade intelectual.
É justamente na esteira do “Cluster B” que as missões de Brasil, Equador e Paraguai justificam a conveniência, oportunidade e necessidade da adoção de um tratado que
permita aos países adotar normas que limitem os direitos autorais sobre obras convertidas a formatos acessíveis ao público-alvo pretendido. Reconhece-se, ao mesmo tempo, a
necessidade de adotar mecanismos que desestimulem o abuso desta limitação, impedindo que seja usada para permitir a reprodução destinada a beneficiários fora dos grupos
vulneráveis reconhecidos pela norma.
A OMPI contava com estudo elaborado em 2006 indicando que, dentre seus 191 Estados-Membros, menos de 60 contavam com algum tipo de limitação, em sua legislação
sobre direitos autorais, que dedicasse atenção especial ao acesso de deficientes visuais a obras protegidas147. Além disso, tendo em vista o caráter estritamente nacional das
flexibilidades nas legislações da área, o intercâmbio internacional (importação ou exportação) de obras convertidas para formatos acessíveis quase sempre dependia de acordos
individuais com os titulares dos direitos. Na prática, esta necessidade de negociação individual e casuística acabava por aumentar custos e diminuir a frequência de uso destas
limitações, em detrimento dos portadores de deficiências148.
O tratado foi assinado em conferência diplomática no dia 27 de junho de 2013 na cidade de Marraqueche, capital do Marrocos. 51 países assinaram o tratado na conferência
inicial (dentre os quais o Brasil), e 33 outros assinaram ou aderiram em data posterior. Seu artigo 18 prevê sua entrada em vigor três meses após o depósito do instrumento de
ratificação ou adesão ao tratado por 20 países, pelo que o tratado passou a valer em 30 de setembro de 2016, após a notícia da adesão do Canadá. Em 28 de setembro de 2017, 32
países já haviam depositado perante a OMPI os instrumentos de ratificação ou adesão ao tratado.

2.2 Internalização do tratado no ordenamento jurídico brasileiro

A internalização do tratado ao ordenamento jurídico brasileiro levou pouco menos de dois anos. Em 16 de Janeiro de 2014, os Ministros de Estado das Relações Exteriores,
da Cultura e da Secretaria de Direitos Humanos enviaram à Presidência da República a EMI nº 00004/2014 MRE SDH MinC, onde submetiam à apreciação desta autoridade o
texto do tratado. Estando de acordo com as motivações explicitadas, houve por bem submeter o texto à apreciação da Câmara dos Deputados através da Mensagem nº 344, de 3 de
novembro de 2014.
Na Câmara, a proposta foi apresentada como Projeto de Decreto Legislativo por iniciativa da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Durante o ano de 2015
tramitou, em regime de urgência, também pelas comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania; de Cultura; e de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Em
primeira votação, o projeto foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados com 341 favoráveis e 1 contrário; em segunda votação, foi aprovado pela unanimidade dos 452
votantes na sessão. Seguiu então para o Senado Federal.
No Senado, tramitou pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e foi submetido para votação em plenário, onde, com voto favorável das bancadas de todos os
partidos, foi aprovado com 56 votos favoráveis em primeiro turno, e 50 no segundo. Convertido no Decreto Legislativo nº 261, de 25 de novembro 2015, foi publicado no Diário
Oficial da União do dia seguinte. A notificação à OMPI quanto à ratificação ocorreu no dia 11 de dezembro de 2015.

3. O tratado de Marraqueche na esteira dos compromissos assumidos pelo Brasil em sua constituição e internacionalmente

3.1 Princípios fundantes e direitos contemplados pelo Tratado de Marraqueche. Diálogo com outros diplomas internacionais

Os princípios fundantes do Tratado de Marraqueche, tais como expressamente mencionados em seu preâmbulo, são os da: 1) não discriminação; 2) igualdade de
oportunidades; 3) acessibilidade; 4) da participação e inclusão plena e efetiva na sociedade.
Tais princípios derivam do disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, com necessário fulcro posterior também na Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (que não é mencionado expressamente pelo Tratado de Marraqueche).
Igualmente, funda-se o Tratado de Marraqueche no que dispõe a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York),
de 2007. Esta Convenção é, inclusive, a única outra a também ter sido incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional, nos termos do § 3º do
Art. 5º da Constituição Federal, estando promulgada no Brasil através do Decreto nº 6.949, de 2009. Os principais artigos da Convenção de Nova York a dialogarem com o
Tratado de Marraqueche, constituindo-se igualmente em princípios fundantes da norma, são os artigos 5 (Igualdade e Não-Discriminação); 9 (Acessibilidade); 19 (Vida
independente e inclusão na comunidade); 21 (Liberdade de expressão e de opinião e acesso à informação) e 30 (Participação na vida cultural e em recreação, lazer e esporte).
Comentário especial pode ser feito ao diálogo entre os artigos 19, 21 e 30 da Convenção de Nova York com o Tratado de Marraqueche, principalmente porque este é
mecanismo implementado com vistas justamente a dar efetividade ao que dispõem tais artigos149.
A garantia de maior acesso dos portadores de deficiências visuais a obras impressas é crucial para que estes sejam capazes, em maior escala, de absorver os acontecimentos
sociais, bem como todo o conhecimento técnico, científico e cultural. Tal abertura lhes permite, sem dúvida, a aquisição de maiores habilidades e competências, tanto subjetivas
quanto objetivas, tendo como resultado maior desenvolvimento da personalidade. Conseguir ler sem depender da boa vontade ou da disponibilidade de um terceiro é conseguir
emancipar-se e passar a ser capaz de ditar os rumos de sua própria formação pessoal e profissional. É justamente esta a preocupação do Tratado de Marraqueche, bem como um de
seus princípios fundantes (participação e inclusão plena e efetiva na sociedade), no que dialoga intimamente com os direitos humanos a uma vida independente e à inclusão na
comunidade de que gozam os portadores de deficiências, conforme o artigo 19 da Convenção de Nova York150.
Já o artigo 21 da Convenção, que versa sobre liberdade de expressão, de opinião e acesso à informação, também guarda interface clara para com o Tratado de Marraqueche.
Ponto curioso é que a Convenção, ao passo em que constitui a obrigação de governos e o estímulo à mídia para que disponibilizem suas comunicações também em formatos
acessíveis a portadores de deficiência, nada diz sobre a conversão de obras literárias, técnicas e artísticas para estes. De fato, há menção a prestadores de serviços, mas nada é dito
quanto aos fornecedores de bens e produtos, tal como é o caso do mercado editorial. Necessário ressaltar a imensa importância do acesso aos materiais impressos para que se seja
capaz de exercer uma plena liberdade de expressão e de opinião, inclusive a respeito do conteúdo do próprio material corriqueiramente publicado, através de resenhas e críticas.
Talvez tal lacuna seja suprida pelo disposto no artigo 30 (participação na vida cultural e em recreação, lazer e esporte), onde se enuncia (grifos nossos)
1) [...] o direito das pessoas com deficiência de participar na vida cultural, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e tomarão todas as medidas
apropriadas para que as pessoas com deficiência possam:
a) Ter acesso a bens culturais em formatos acessíveis;
[...]
c) Ter acesso a locais que ofereçam serviços ou eventos culturais, tais como teatros, museus, cinemas, bibliotecas e serviços turísticos, bem como, tanto quanto
possível, ter acesso a monumentos e locais de importância cultural nacional.
2) Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para que as pessoas com deficiência tenham a oportunidade de desenvolver e utilizar seu potencial
criativo, artístico e intelectual, não somente em benefício próprio, mas também para o enriquecimento da sociedade;

Tais disposições deixam claro que há, de fato, um direito dos portadores de deficiências em obter de seus Estados iniciativas que lhes incluam na vida social, aí incluído o
esforço para que estes possam se inteirar dos acontecimentos e dos eventos culturais. Ainda, devem os Estados buscar saídas para proporcionar a estas populações meios de
desenvolvimento pessoal, aflorando-se criativamente, artisticamente e intelectualmente. De fato, deficiência física alguma há de anular o talento pessoal, que tentará de todas as
formas – e frequentemente conseguirá – encontrar meios para se manifestar a despeito destas dificuldades151. Cabe aos Estados signatários da Convenção, assim, criar o ambiente
para que isso seja proporcionado ou, no mínimo, facilitado.
O ponto de interface mais evidente entre a Convenção e o Tratado de Marraqueche, no entanto, talvez seja o que vem logo na sequência das disposições acima transcritas:

3. Os Estados Partes deverão tomar todas as providências, em conformidade com o direito internacional, para assegurar que a legislação de proteção dos direitos de
propriedade intelectual não constitua barreira excessiva ou discriminatória ao acesso de pessoas com deficiência a bens culturais

É justamente este o fundamento do Tratado de Marraqueche: diminuir barreiras criadas pela legislação de direitos autorais que possam dificultar o encorajamento à
conversão de textos impressos a formatos acessíveis. Neste ponto, importante frisar outra observação contida no preâmbulo do Tratado, qual seja a de reconhecer:

a importância do papel dos titulares de direitos em tornar suas obras acessíveis a pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto
impresso, como a importância de limitações e exceções adequadas para tornar as obras acessíveis a essas pessoas, em particular quando o mercado é incapaz de prover
tal acesso [...]

Estre trecho do Tratado faz parecer que é o mercado o único responsável pela escassez na disponibilidade de obras literárias e artísticas em formato acessível, principalmente
as que não sejam best sellers152. No entanto, é de se ponderar que o mercado só não contempla conteúdos de menor procura justamente em virtude da existência de uma
legislação de direitos autorais que imponha custos proibitivos para tanto. Com a remoção desta barreira pelo Tratado, em casos de destinação do conteúdo a populações
vulneráveis especialmente contempladas, é de se concluir que o mercado terá maior disposição para passar a suprir esta demanda, sem dependência exclusiva da boa vontade
de governos.
No diálogo com a Constituição Federal, os pontos de interface são evidentes, estando a adoção do Tratado de Marraqueche bem fundamentada na competência legislativa
concorrente entre União, Estados e Municípios consubstanciada no inciso 24, XIV do texto, que dispõe sobre a proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência.
Especial menção também deve ser feita ao inciso IV do art. 203, que prevê, dentre as atribuições da Assistência Social, “a habilitação [...] das pessoas portadoras de deficiência e
a promoção de sua integração à vida comunitária”.
O Tratado de Marraqueche, assim, encontra-se em perfeita consonância com a normatização constitucional (incluindo-se aí a Convenção de Nova York, acolhida no
ordenamento jurídico brasileiro como Emenda Constitucional), com os demais tratados estruturadores da matéria e com a Constituição Federal (sendo dela parte integrante).
O Tratado se traduz, de fato, em disciplinamento jurídico de um aspecto específico dos direitos gerais contemplados em outros textos, como já se pôde bem ver acima.

4. O tratado de Marraqueche. seus objetivos e os mecanismos adotados para promover sua consecução

4.1 Objetivo maior: combater a “fome de livros”

Conforme já mencionado anteriormente, há um grande número de portadores de deficiências visuais em todo o mundo (cerca de 285 milhões), estando a vastíssima maioria
deles (90%) em países mais pobres. Ao mesmo passo, apenas 1 a 7% de todas as publicações mundiais na área de textos literários, técnicos e artísticos impressos se faz disponível
a estas populações. É evidente a escassez de disponibilidade e acesso destas pessoas à grande maioria do material publicado e disponibilizado aos que enxergam com perfeição.
A esta enorme discrepância de acessibilidade costuma-se chamar “fome de livros” (em inglês “book famine”).
Sobre a realidade cotidiana que engloba tal questão, é inestimável o testemunho pessoal do indiano Kartik Sawhney (ele próprio portador de deficiência visual) à UNICEF,
por ocasião do levantamento “The State of the World’s Children 2013 – Children with Disabilities”:

Os portadores de deficiências visuais lidam com o que pelo menos um autor convencionou chamar de “fome de livros”. Isso não é novidade para nós: os com
problemas de visão e os que não conseguem decifrar material impresso facilmente tem tido problemas com a acessibilidade por muito tempo. “Acessibilidade” é um
termo geral que engloba o acesso ao espaço físico, ao transporte, às tecnologias da informação e da comunicação, à educação e outras habilidades. Na minha visão, é
crucial se ter material acessível prontamente à disposição. A urgência é ainda maior se considerarmos a situação nos países em desenvolvimento.
Quando conduzi uma pesquisa informal com cerca de 60 estudantes com problemas de visão de primeiro e segundo graus em escolas conhecidas na Índia, descobri que
menos de 20 por cento deles tinham acesso a material em seu formato de preferência, e que menos de 35 por cento deles tinham acesso a material em qualquer formato.
Sendo um portador de deficiência visual, tive várias experiências onde a falta de acessibilidade me impediu de tomar proveito das mesmas oportunidades que outros.
O esforço necessário para tornar acessível o material de leitura é monumental. Graças a avanços no reconhecimento ótico de caracteres (OCR) – tecnologia que
converte texto impresso, escrito à mão ou a máquina em texto codificado por computador, permitindo que vozes computadorizadas leiam o texto em voz alta – houve
algum progresso. No entanto, literatura técnica continua inacessível. Eu fico cerca de duas horas por dia digitando o material impresso das minhas aulas de ciências e
matemática, por exemplo, porque o software de OCR não consegue ler diagramas e símbolos especiais com precisão suficiente. A condição de estudantes em área rural
é pior ainda: eles dependem de humanos que lhes leiam volumosas informações em voz alta. Por exemplo, meus amigos em um pequeno vilarejo não têm opção que
não seja depender completamente de voluntários que lhes visitam semanalmente [...]153.

A “fome de livros”, assim, é representada na grande dificuldade vivida por portadores de deficiências visuais para conseguir acessar e compreender materiais impressos sem
depender completamente de algum terceiro que lhe auxilie na leitura. Tal dificuldade vem naturalmente acompanhada de maiores barreiras para o desenvolvimento pessoal e
intelectual, uma vez que livros, jornais e revistas frequentemente não podem ser acessados de maneira independente por estas pessoas. Também é evidente que tal dificuldade é
ainda maior para as populações afetadas de áreas rurais, onde nem sequer alguma tecnologia de leitura ótica pode estardisponível.
É precisamente este cenário o vislumbrado pelo Tratado de Marraqueche, pelo que os países signatários deixam claro estarem:

[...] conscientes dos desafios que são prejudiciais ao desenvolvimento pleno das pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto
impresso, que limitam a sua liberdade de expressão, incluindo a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de toda espécie em condições de
igualdade com as demais pessoas mediante todas as formas de comunicação de sua escolha, assim como o gozo do seu direito à educação e a oportunidade de realizar
pesquisas, [...]
cientes das barreiras que enfrentam as pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso para alcançarem oportunidades
iguais na sociedade, e da necessidade de ampliar o número de obras em formatos acessíveis e de aperfeiçoar a circulação de tais obras,
considerando que a maioria das pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso vive em países em desenvolvimento e em
países de menor desenvolvimento relativo [...].

Esta realidade vivida pelos portadores de deficiências visuais necessita dialogar com diversos direitos que lhes são assegurados pelos diferentes tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos. Por outro lado, como o decorrer do texto bem deixará claro, é necessário buscar-se um ponto de equilíbrio entre a plena garantia e
efetivação destes direitos para com os direitos dos titulares das obras autorais.
O principal objetivo do Tratado de Marraqueche, assim, é o de combater a “fome de livros”, criando limitações legais que permitam impulsionar a oferta, o interesse e o
acesso dos portadores de deficiências visuais a textos impressos, e ao mesmo tempo tomando delicado cuidado para que tal não se traduza em ameaça à integridade dos sistemas
nacionais e internacionais de proteção aos direitos autorais.

4.2 Quem são os beneficiários do Tratado de Marraqueche?


O Tratado de Marraqueche chama de “beneficiários”, em seu Artigo 3º, as populações vulneráveis a quem as consequências desejáveis do texto se destinam, e identifica três
situações possíveis onde alguém pode ser caracterizado como beneficiário.
A primeira e mais evidente hipótese (item “a” do Artigo 3º) é a da pessoa cega. Esta deve ser entendida como aquela que não tem qualquer habilidade de visão. Isto porque o
segundo item do artigo identifica como público alvo a pessoa “que tenha deficiência visual ou qualquer outra deficiência perceptiva ou de leitura que não possa ser corrigida
para se obter uma acuidade visual substancialmente equivalente à de uma pessoa que não tenha esse tipo de deficiência ou dificuldade”. Em outras palavras, trata-se de pessoas
que não sejam totalmente cegas, mas que também não gozem de plena visão, situando-se em pontointermediário.
A parte final do item “b” talvez pudesse estar incorporada ao item “c” do Artigo. Isso porque a parte final do item “b” dispõe que são beneficiários do Tratado aqueles
“para quem é impossível ler material impresso de uma forma substancialmente equivalente à de uma pessoa sem deficiência ou dificuldade”. Já o item “c” identifica como
beneficiário a pessoa “que esteja impossibilitada, de qualquer outra maneira, devido a uma deficiência física, de sustentar ou manipular um livro ou focar ou mover os olhos da
forma que normalmente seria apropriado para a leitura”. Este grupo recebe a nomenclatura genérica, em inglês, de VIP (“Visually Impaired Persons”). É por conta desta sigla,
inclusive, que a denominação em inglês do tratado é “Marrakesh VIP Treaty”. Tal sigla não consta da versão em português do Tratado.
Apesar da nomenclatura “VIP”, em inglês, sugerir a composição do grupo de beneficiários apenas por aqueles que tenham problemas de visão, é relevante e interessante
constatar-se, com fundamento na parte final do item “b” e no item “c” do Artigo 3º, que o Tratado não se destina apenas a cegos e pessoas com problemas especificamente de
visão. Destina-se, em verdade, a todos aqueles que não consigam acessar e decifrar o conteúdo de livros e textos de maneira plenamente independente por conta de qualquer
deficiência, podendo ou precisando se valer de obras convertidas para diferentes formatos acessíveis para consegui-lo. Um indivíduo com plena visão, mas sem braços, por
exemplo, pode vir a ser beneficiário de obras convertidas para formato acessível nos termos do Tratado de Marraqueche, uma vez que a pessoa “impossibilitada de sustentar ou
manipular um livro”, independentemente da especificação de sua deficiência, também é público-alvo do Tratado. O mesmo vale para pessoas com síndromes e deficiências que
afetem o pleno desenvolvimento mental dificultando a atividade da leitura.
Esta imparcialidade do Tratado quanto a seus beneficiários guarda importância ao passo em que reconhece não serem idênticas as circunstâncias de acessibilidade de todos
os portadores de deficiência. Há diferentes tipos de deficiências, e diferentes perfis em seus portadores. A cada um deles pode corresponder, eventualmente, um formato de obra
acessível, pelo que o Tratado parece fazer bem em não limitar seu escopo de aplicação apenas aos portadores de deficiências visuais.
Nesta esteira, importante mencionar também a definição que o Tratado dá ao termo “exemplar em formato acessível”, constante do item “b” do Artigo 2º:

b) “exemplar em formato acessível” significa a reprodução de uma obra de uma maneira ou forma alternativa que dê aos beneficiários acesso à obra, inclusive para
permitir que a pessoa tenha acesso de maneira tão prática e cômoda como uma pessoa sem deficiência visual ou sem outras dificuldades para ter acesso ao
textoimpresso.

Assim, não há limitação do Tratado a formatos acessíveis amplamente conhecidos, tais como a linguagem Braile. Qualquer obra que for reproduzida de maneira alternativa
ao simples texto impresso, e que neste formato possa ser absorvida, lida, compreendida ou que apenas tenha sua leitura facilitada por um beneficiário nos termos do Tratado,
insere-se em seu escopo154.
O Artigo 3º do Tratado traz ainda um breve trecho final, simultaneamente aplicável a todos os itens. Dispõe que os beneficiários do Tratado são as pessoas contempladas nos
itens, mas “independentemente de quaisquer outras deficiências”. Assim, não há a necessidade de verificação de outras deficiências para a identificação de alguém como
beneficiário do Tratado. Enquadrando-se em algum dos itens do Artigo 3º, identifica-se o público a que o Tratado se destina.

4.3 O Tratado de Marraqueche na prática: introdução de limitações e exceções aos direitos de autor nas legislações nacionais. Entidades Autorizadas

O cerne do Tratado de Marraqueche, grosso modo, consiste em determinar que seus Países-Membros se comprometem a inserir em suas legislações limitações e exceções ao
direito de autor quando relativas a atos que consistam em converter obras para formatos acessíveis, respeitadas uma série de condições. Todo este cerne consta do Artigo 4º
do Tratado.
Assim, o cenário vislumbrado pela norma internacional é aquele em que uma entidade que se disponha a converter determinada obra para um formato acessível poderá
fazê-lo livremente, sem autorização ou remuneração ao titular, e sem incidir em violação aos direitos autorais patrimoniais de reprodução, de distribuição, ou de colocação da
obra à disposição do público155. A não violação de todos estes direitos de autor, quando a conversão se destinar aos beneficiários, é de previsão obrigatória nas legislações
nacionais, nos termos do Tratado. Ainda, fica facultado aos países signatários prever ou não em suas leis restrições aos direitos de representação ou execução pública das obras
quando destinadas aos beneficiários156. Fica autorizada incondicionalmente pelo Tratado, ainda, qualquer eventual alteração cuja promoção seja estritamente necessária a fim de
viabilizar a acessibilidade da obra. Não ficariam violados, nesta hipótese, quaisquer direitos morais do autor, que devem ser, todavia, respeitados.
Aspecto indispensável à plena compreensão do Tratado é a definição de “Entidades Autorizadas”, constante do item “c” do Artigo 2º. Tais limitações ou exceções aos
direitos de autor só poderão ocorrer de maneira lícita se o atos que transpassem direitos de terceiros sejam executados por determinadas pessoas. Assim,

“entidade autorizada” significa uma entidade que é autorizada ou reconhecida pelo governo para prover aos beneficiários, sem intuito de lucro, educação, formação
pedagógica, leitura adaptada ou acesso à informação. Inclui, também, instituição governamental ou organização sem fins lucrativos que preste os mesmos serviços aos
beneficiários como uma de suas atividades principais ou obrigações institucionais.

É imprescindível notar que tal disposição do Tratado não impede, em nosso ver, que sociedade empresária possa ser reconhecida como “Entidade Autorizada”. Isso porque
basta que a empresa se comprometa, mediante fiscalização, a fornecer as obras em formato acessível aos beneficiários a preço de custo. Ora, se o próprio Tratado “se queixa” em
seu preâmbulo de não ser o mercado apto a fazer frente à demanda por obras em formato acessível em muitas situações, seria verdadeiro contrassenso admitir-se que o mesmo
Tratado exclui o mercado da possibilidade de corrigir esta situação valendo-se do texto internacional. Se o esforço pela inclusão social dos portadores de deficiências deve partir
de todos, sem exceção, jamais poderia o Tratado de Marraqueche limitar seus benefícios a entidades filantrópicas ou governamentais, ignorando o imenso potencial que o mercado
tem de transformar positivamente a sociedade.
Certamente que muitas empresas poderão optar por tornar-se “Entidades Autorizadas” através de pessoas jurídicas eventualmente destacadas para esta função, tais como suas
fundações, mas nosso entendimento é o de que o Tratado não as obriga a assim proceder. Ainda, o próprio Tratado parece dar pista de ser este também seu entendimento quando,
no prosseguir do artigo, menciona em caráter expresso a “organização sem fins lucrativos”, diferenciando-a da “entidade que é autorizada ou reconhecida pelo governo” para
prover aos beneficiários os produtos ou serviços acima descritos.
Importante também ressaltar, neste ponto, o disposto no item 5 do Artigo 4º do Tratado, que dispõe que a legislação nacional poderá determinar se as exceções e limitações
aos direitos de autor poderão prever algum tipo de remuneração [ao titular dos direitos]. Este ponto não pode ser confundido com limitação à remuneração das Entidades
Autorizadas, não ficando estas sujeitas a fornecer as obras em formato acessível de maneira exclusivamente gratuita. O que o Tratado desautoriza, tão somente, é o intuito de lucro
no fornecimento.
Dispõe ainda o Tratado (Artigo 2º, item “c”, incisos I a IV) que as Entidades Autorizadas são livres para estabelecer suas próprias práticas, devendo aplicá-las no sentido de
deixar claro que estarão servindo apenas aos beneficiários. O Tratado é claro em determinar que as Entidades Autorizadas só poderão se valer das limitações legais aos direitos de
autor se o fornecimento tiver como público-alvo os beneficiários ou outras Entidades Autorizadas. Deverão, ainda, adotar medidas para preservar a privacidade dos beneficiários
que usufruam de seus serviços.
Enfim, só as entidades autorizadas ou reconhecidas pelo governo poderão se valer, nos termos do Tratado e das respectivas legislações nacionais que o apliquem, das
limitações e exceções aos direitos de autor. Esta medida se destina, independentemente de sua eventual efetividade, a coibir abusos à integridade dos direitos de autor, impondo
aos Estados o dever de fiscalizar os agentes autorizados a se valer das limitações.
Cada Estado pode se valer livremente das medidas que entender necessárias para introduzir em seu ordenamento jurídico as disposições do Tratado de Marraqueche.
O Tratado coloca, além das regras de intercâmbio transfronteiriço (que serão abordadas no capítulo a seguir), a obrigação mínima de estabelecer, legalmente, limitações e
exceções aos direitos autorais de forma a facilitar a disponibilização, pelas entidades autorizadas, das obras em formato acessível. Isso não o impede, entretanto, de sugerir
disposições que facilitem a implementação de suas normas.
Assim, o Tratado enuncia que os Estados poderão dar cumprimento à regra geral de inserção legal de tais limitações e exceções através de uma série de disposições
sugeridas, contidas no item 2 do Artigo 4º do Tratado. Também é facultado aos Estados ir além do que dispõe o Tratado, estabelecendo limitações e exceções mais abrangentes
que o próprio texto internacional.
Outro ponto fundamental do Tratado é o contido no item 4 do Artigo 4º, que determina que poderão os Estados restringir sua aplicação às obras que não estiverem
comercialmente disponíveis sob condições razoáveis para os beneficiários no mercado interno. Rememorando a fala de Neil Jarvis sobre a razoável disponibilidade ao menos
de best-sellers em formato acessível, é de se ponderar que alguns países façam uso desta faculdade para restringir as limitações legais aos direitos de autor apenas para obras de
distribuição limitada ou restrita. Este é o caso da literatura técnica e da grande maioria dos livros que não alcançam o topo do mercado editorial, tal como mencionado também no
testemunho de Kartik Sawhney, estando ambos transcritos acima. Vale também ressaltar que o país que decidir fazer uso desta faculdade legal deverá depositar junto à OMPI
notícia deste fato.
Tal faculdade nos parece razoável, ficando cada país livre para decidir de acordo com seu contexto sociopolítico sobre a conveniência de sua adoção. Se o objetivo do
Tratado é combater a “fome de livros” fundamentando-se na completa indisponibilidade de obras, não faria sentido concluir que seu foco deveria recair justamente nos 1 a 7% de
obras que já se encontram satisfatoriamente disponíveis aos beneficiários, mas sim nos 99 a 93% restantes. De qualquer forma, o texto do Tratado toma o cuidado de limitar a
possibilidade de restrição da instituição da limitação aos casos em que a obra não esteja também disponível comercialmente “sob condições razoáveis”, o que significa que os
Estados não poderão negar aplicação ao Tratado para obras que estejam excessivamente caras; cuja aquisição seja muito difícil ou dependa de burocracias etc.

4.4 Intercâmbio transfronteiriço e importação de materiais em formato acessível. O Accessible Books Consortium da OMPI

A Lei Federal nº 9.610/1996 (“Lei de Direitos Autorais”), em verdade, já traz em seu corpo desde sua promulgação disposição que determina não constituir ofensa aos
direitos autorais a reprodução “de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita
mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários” (art. 46, I, “d’). Tal disposição legal já se encontra em plena consonância com o
que dispõe o Tratado de Marraqueche, necessitando apenas ser expandida para os demais tipos de beneficiários, visto que só contempla os deficientes visuais.
O próprio Tratado já reconhece que muitos países já contam com disposições de exceção aos direitos autorais quando a reprodução for destinada a deficientes visuais e
pessoas com outras dificuldades, mas salienta que é necessário garantir um aperfeiçoamento das condições de circulação, também internacional, destas obras em formato
acessível. A própria Lei de Direitos Autorais brasileira não permite afirmar que as obras reproduzidas nos termos do artigo acima mencionado podem ser livremente exportadas,
por exemplo.
Neste sentido é que o Tratado de Marraqueche, em seus Artigos 5º, 6º e 9º se dedicam a questões de trânsito internacional de exemplares tornados acessíveis com uso das
disposições pactuadas. Assim, outra importante obrigação que o Tratado impõe a seus signatários é a de tornar possível a distribuição ou disponibilização de obra convertida para
formato acessível para beneficiário que se situe em outro país também signatário do Tratado. Se determinado beneficiário brasileiro, por exemplo, desejar acessar obra em
espanhol produzida nos Chile e lá disponibilizada, o fato de tal beneficiário residir no Brasil157 não poderá impedir que a Entidade Autorizada chilena lhe realize o envio do
exemplar. O Tratado autoriza o trânsito internacional do exemplar tanto por iniciativa da Entidade Autorizada quanto a pedido de algum beneficiário ou outra Entidade
Autorizada. O Tratado expressamente exclui de seu campo interpretativo, no entanto, quaisquer questões relacionadas à exaustão de direitos (Artigo 5º, item 5), pelo que a
importação ou exportação de exemplares com uso de seus dispositivos não permitem concluir pela ocorrência de exaustão de quaisquer direitos de autor.
Assim como no Artigo em que trata da obrigatoriedade de os países imporem as limitações aos direitos autorais com base no Tratado, o Artigo 5º (que trata especificamente
sobre o intercâmbio transfronteiriço dos exemplares em formato acessível), faz diversas sugestões aos Estados para o disciplinamento eventual da matéria. Sugere o Tratado,
assim, que as legislações nacionais dos países prevejam a possibilidade de livre trânsito dos exemplares entre beneficiários e entidades autorizadas desde que antes da distribuição
ou colocação à disposição, a entidade autorizada originária não saiba ou tenha motivos razoáveis para saber que o exemplar em formato acessível seria utilizado por outras
pessoas que não os beneficiários. Isso é, entende o Tratado ser interessante que as legislações disponham sobre regras para o reconhecimento mútuo de entidades autorizadas
e beneficiários.
Neste ponto, o Artigo 9º aborda de maneira expressa a “Cooperação para Facilitar o Intercâmbio Transfronteiriço”. Determina, assim, que os países deverão se esforçar para
proporcionar meios que permitam às Entidades Autorizadas dos diferentes países reconhecer-se como tal, imediatamente dispondo-se a OMPI a criar mecanismo centralizado
neste sentido.
Com esta finalidade é que foi criado o Acessible Books Consortium (ABC)158, entidade criada para oferecer suporte prático à aplicação do Tratado de Marraqueche pelos
países. Através de suas funcionalidades Entidades Autorizadas, beneficiários e seus representantes podem recorrer a uma única fonte de recursos que congrega diferentes
funcionalidades. Através do ABC, por exemplo, bibliotecas podem adicionar a seus acervos grande quantidade de obras159 em formato acessível e digital sem custos,
transferindo-as por meio de sistema digital seguro, prático e automatizado; consultar informações sobre entidades autorizadas e operantes nos termos do Tratado de Marraqueche
nos diferentes países; obter um foro comum internacional para a negociação de contratos com entidades autorizadas em outros países, inclusive para a negociação com entidades
localizadas em países não contratantes do Tratado de Marraqueche; consultar a disponibilidade de obras em formato acessível junto a outras Entidades Autorizadas; dentre
outras funções.
No Brasil, até setembro de 2017, apenas a Fundação Dorina Nowill para Cegos consta como entidade participante do ABC.

5. Considerações finais

O Tratado de Marraqueche, hoje já plenamente vigente em mais de 30 países, é mecanismo adequado para se tentar aliviar a questão da grande escassez de livros e textos
impressos convertidos para formatos acessíveis a portadores de deficiências visuais e outras dificuldades de leitura (a “fome de livros”). Administrado pela OMPI, é notória sua
preocupação em equilibrar, de um lado, os direitos humanos de seus beneficiários ao acesso à cultura, à liberdade de expressão, à dignidade, à privacidade, à independência
pessoal e à plena inclusão à vida em sociedade e outros direitos; e, de outro, os legítimos interesses patrimoniais dos criadores e titulares dos direitos autorais. É de se crer que
titular algum de direitos autorais seja contra a livre disponibilização de suas obras para portadores de deficiências que não tenham como delas usufruir sem a conversão para um
formato acessível. A única garantia de prestação necessária é a do respeito os adequados mecanismos de controle previstos para a coibição de eventuais abusos por parte de
terceiros mal-intencionados.
Trata-se de um texto internacional com extremo potencial transformador da sociedade, visto que retira ou diminui os estímulos econômicos negativos que mercado e
governos até então tinham para promover a conversão e distribuição de obras para formatos acessíveis. Com o Tratado de Marraqueche, remove-se a trava econômica e o risco
jurídico evidente a que estavam submetidos aqueles que, sem abundância de recursos financeiros, se empenhavam pela acessibilidade ao texto impresso em favor dos portadores
de deficiências visuais e outras dificuldades de leitura. Os agentes econômicos ficam livres para, observando a normatização aplicável, livremente reproduzir e distribuir obras
protegidas por direitos autorais, desde que tenham como público-alvo justamente aqueles que comprovadamente necessitam e anseiam por uma diminuição na desigualdade
de acesso.
É necessário, no entanto, uma estreita fiscalização quanto à efetividade e o impacto social positivo da aplicação de suas disposições. O Tratado versa sobre um tema de
extrema importância e urgência, de tal maneira que não podem governos, juristas, entidades interessadas e beneficiários satisfazer-se com sua mera celebração, apesar de esta, por
si só, já constituir significativo avanço no campo dos direitos dos portadores de deficiências. A medição da efetividade de suas disposições deve ser cuidadosa e periodicamente
executada, sempre se pensando na melhora concreta (e não apenas teórica) da condição social e econômica dosbeneficiários.
REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

138 “Amendment I. Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of
speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the government for a redress of grievances”.
139 NOHARA, Irene Patrícia. Proibição do uso de máscaras em manifestação. Carta Forense, São Paulo, p. 2, nov. 2013. Disponível em:
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/proibicao-do-uso-de-mascaras-em-manifestacao-posicao-contraria/12367>. Acesso em: 12 abr. 2017.
140 Alexandre Sanson e Michelle Asato Junqueira fornecem um quadro conceitual sobre a aparato jurisprudencial atinente ao caso: “A inconstitucionalidade ou
não da proibição a direito individual deverá ser concluída, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato, por meio da proporcionalidade,
diante da conjugação, sucessiva, de suas sub-regras. No entanto, alguns questionamentos não poderiam deixar de ser realizados. O primeiro é acerca do
anonimato, qual o seu alcance e o sentido no ordenamento pátrio, posto que em outros países afigura-se como direito oponível a terceiros, tanto pelo seu
caráter protetivo quanto pela possibilidade de um discurso mais livre. O segundo é entender a importância dos direitos atingidos pela proibição, eis que a
faculdade em questão é uma forma de expressão, por vezes de cunho contestatório, e que, certamente, não poderia ser tolhida, em ambiente democrático,
quando praticada pacificamente. Por fim, o terceiro é entender se a opção política de fato é apropriada aos seus fins, no caso reduzir a violência em
passeatas, comumente originada de grupos determináveis, pois a permanência de confrontos entre policiais e população pós-proibição coloca em dúvida a
sua eficiência” (SANSON, Alexandre; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Liberdade x Segurança: ponderações acerca da vedação do uso de máscaras em
manifestações públicas. Amazônia em Foco: Temas de Direitos Humanos, Castanhal, n. 2, p. 178-179, nov. 2013).
141 Mestre e Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado graduado pela Escola de Direito de São Paulo
da Fundação Getulio Vargas. Atuante na área de Propriedade Intelectual.
142 No original em inglês: “Marrakesh Treaty to Facilitate Access to Published Works for Persons Who Are Blind, Visually Impaired or Otherwise Print
Disabled”. O nome em português é o oficial do tratado no Brasil.
143 Cf. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Visual Impairment and Blindness – Fact Sheet N°282. Genebra: World Health Organization, 2014. Disponível em:
<http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs282/en/>. Acesso em: 27 set. 2017.
144 Cf. BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Brasília: IBGE, 2015. v. 3, p. 28-29.
Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94522.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.
145 Cf. WORLD BLIND UNION. June 17 Press Release for WIPO Book Treaty. Toronto: World Blind Organization, 2009. Disponível em:
<http://www.worldblindunion.org/English/news/Pages/JUne-17-Press-Release-for-WIPO-Book-Treaty.aspx>. Acesso em: 27 set. 2017. Também em WORLD
INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION (WIPO). Main Provisions and Benefits of the Marrakesh Treaty (2013). Genebra: WIPO,
2016. Disponível em: <http://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/wipo_pub_marrakesh_flyer.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017. Por fim, o Ministério das Relações
Exteriores do Brasil ressalta este mesmo dado em Em BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Nota 221: Tratado de Marraquexe para
Facilitar o Acesso a Obras Publicadas para Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou outras Deficiências para o Acesso ao Texto Impresso. Brasília:
Ministério das Relações Exteriores, 2013. Disponível em:
<http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/3509-tratado-de-marraquexe-para-facilitar-o-acesso-a-obras-publicadas-para-pessoas-cegas-com-deficiencia-vi
Acesso em: 27 set. 2017.
146 Tal como salientado no documento SCCR/18/5, de 25 de Maio de 2009. Cf. WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Proposal By Brazil,
Ecuador And Paraguay, Relating To Limitations And Exceptions: Treaty Proposed By The World Blind Union (WBU) – SCCR/18/5. Genebra: WIPO,
2009. Disponível em: <http://www.wipo.int/edocs/mdocs/copyright/en/sccr_18/sccr_18_5.pdf>. Acesso em: 27 set 2017.
147 Cf. WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Study On Copyright Limitations And Exceptions For The Visually Impaired – SCCR/15/7,
20 fev. 2007. Genebra: WIPO, 2007. Disponível em: <http://www.wipo.int/edocs/mdocs/copyright/en/sccr_15/sccr_15_7.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.
148 Cf. WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Background to the Diplomatic Conference. Genebra: WIPO, 2013. Disponível em:
<http://www.wipo.int/dc2013/en/about.html>. Acesso em: 27 set. 2017.
149 Sobre cada um dos direitos contemplados pela Convenção de Nova York, cf. BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. DIAS, Joelson et al. (Orgs.). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência. 3. ed. Brasília: Presidência da República, 2014. Disponível em:
<http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/convencao-sdpcd-novos-
-comentarios.pdf>. Acesso em: 29 set. 2017.
150 Cf. BRASIL. Presidência da República [...]. Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Op. cit., p. 131-135.
151 Alguns exemplos notórios nos permitem fazer esta afirmação com tranquilidade. Casos como os de Hellen Keller (que se tornou escritora e bacharel em
filosofia a despeito de sua cegueira e surdez desde a primeira infância, em um tempo de tecnologia precária se comparado aos dias de hoje); Stephen
Hawking; dos inúmeros atletas paraolímpicos cujo talento é indiscutível e que frequentemente nada deixam a desejar perante atletas sem quaisquer
deficiências; e músicos cegos de talento e renome inigualáveis tais como Ray Charles e Stevie Wonder. Este último, inclusive, é Embaixador da Paz pela
ONU e discursa frequentemente neste órgão e na OMPI a respeito de direitos de portadores de deficiências, tendo tido papel ativo no estímulo à adesão,
pelos países, ao Tratado de Marraqueche.
152 Segundo Neil Jarvis, portador de deficiência visual e membro da Royal New Zealand Foundation of the Blind (RNZFB), em discurso em encontro da OMPI
para a discussão da implementação do Tratado de Marraqueche, “[...] Os maiores best-sellers são normalmente bem contemplados, mas é todo o resto do
conteúdo que usamos para estudar, trabalhar e relaxar que não temos acesso. O problema é pior ainda para aqueles nos países em
desenvolvimento [...]”. [The top best-sellers are usually covered nicely, but it is all the other content which we all use to study, work and relax which is
missing. The problem is even worse for people in developing countries]. In: WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Document Code
WIPO/REG/CR/SIN/15/T/11 – National Implementation of the MVT: Perspective of the Blind, Visually Impaired, or Otherwise Print Disabled – Mr. Neil
Jarvis. Genebra: WIPO, 2015. Disponível em: <http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=305080>. Acesso em: 29 set. 2017.
153 SAWHNEY, Kartik. Perspective: End the ‘book famine’ with better technology, attitudes and copyright law. In: UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND. The
State of the World’s Children 2013: Children with Disabilities. Estados Unidos: UNICEF, 2013. Disponível em:
<https://www.unicef.org/sowc2013/perspective_sawhney.html>. Acesso em: 28 set. 2017. Tradução livre do original: “Visually impaired people face what at
least one writer has called a ‘book famine’. This is not news to us: The visually challenged and print-impaired have been struggling for accessibility for a long
time. ‘Accessibility’ is an all-encompassing term that includes access to the physical environment, transportation, information and communication technology,
education and other facilities. In my view, it is crucial that accessible material be readily available. The urgency is even greater when we consider the
situation in developing nations. When I conducted an informal survey of nearly 60 visually challenged students in primary and secondary grades in
mainstream schools in India, I found that less than 20 per cent of them had access to material in their preferred format, and less than 35 per cent to material
in any format. Being visually challenged, I’ve had several experiences where lack of accessibility has impeded me from availing myself of the same
opportunities as others. The effort needed to make reading material accessible is monumental. Thanks to advances in optical character recognition (OCR) –
a technology that converts printed, handwritten or typewritten text into machine-encoded text, making it possible for computerized voices to read the text
aloud – there has been some improvement. However, technical content remains inaccessible. I spend around two hours a day typing out the printed material
from my science and math classes, for example, because OCR software cannot read diagrams and special symbols with sufficient accuracy. The plight of
rural students is even worse: They depend on humans to read volumes of information aloud to them. For instance, my friends in a small village have no
option but to rely completely on volunteers who come by weekly”.
154 Dispõe o Tratado de maneira expressa, também, que os audiolivros são por ele igualmente abarcados.
155 Para uma mais aprofundada compreensão do conteúdo dos direitos patrimoniais de autor, e das dinâmicas jurídicas que os envolvem, cf. ABRÃO,
Eliane. Direitos de Autor e Direitos Conexos. 2. ed. São Paulo: Migalhas, 2014. p. 150-164.
156 Como seria o caso, por exemplo, de uma apresentação teatral convertida para formato acessível para qualquer das diferentes classes de beneficiários.
157 Ambos os países são partes do Tratado e já o ratificaram.
158 Disponível em: <http://www.accessiblebooksconsortium.org>. Acesso em: 29 set. 2017.
159 O ABC atualmente disponibiliza 355 mil obras em 76 línguas e em diversos formatos acessíveis; mais de 5000 partituras musicais em Braile.
160 É advogado, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestrando em direito político e econômico pela mesma Universidade.
161 Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 539.
162 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 544.
163 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 544.
164 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 540.
165 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 42-43.
166 SARLET, Ingo; MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 227.
167 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 49-50.
168 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 71-72.

9. ELEMENTOS DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Matheus Castro Almeida Prado de Siqueira160

1. Introdução

O princípio do juiz natural, essencial ao Estado Democrático de Direito, assegura aos cidadãos um julgamento independente e imparcial, através de um juiz competente
pré-constituído, vedando a constituição de tribunais para julgamento após os fatos.
Uma análise histórica permite constatar as diversas mazelas trazidas pelo descumprimento desse princípio fundamental ao direito e à jurisdição, ao se considerar os
julgamentos ocorridos sob influências diversas, fato que inexoravelmente retira a credibilidade da decisão judicial, trazendo instabilidade àsinstituições.
Nesse artigo, será analisado, primeiramente, o contexto histórico de surgimento do princípio do juiz natural, sua sedimentação nas constituições brasileiras e nos
tratados internacionais.
Após, de maneira aprofundada, demonstrar-se-á os principais elementos do princípio na Constituição Federal de 1988 e sua relevância para proteção do Estado Democrático
de Direito.

2. Contexto de surgimento do princípio e sua sedimentação no Brasil

No período da idade média, tem-se que a função jurisdicional esteve sempre atrelada à autoridade do Imperador ou do Papa que delegavam seus poderes para quem
lhes conviesse.
Esse processo também se repetiu no sistema feudal, no qual o senhor feudal delegava a função jurisdicional aos seus aliados, fato que, evidentemente, não permitia um
julgamento isento por parte dos juízes delegados161. Portanto, no direito medieval, as jurisdições desenvolvidas possuíam, majoritariamente, origemdelegada.
Esse quadro começa a se modificar com a formação dos Estados nacionais, período no qual a jurisdição adquire maior autonomia, se desvinculando de um único poder
central, entre os séculos XVII e XVIII. Tal fenômeno acontece primordialmente na França e na Inglaterra, que passaram por consideráveis tensões entre os juízes os quais visavam
a sua independência e os reis que relutavam em perder parcela de seus poderes.
Aqui, deve-se pontuar a importância e o pioneirismo da Petition of Rights de 1628, promulgada na Inglaterra, que pela primeira vez afirma, em seus pontos 3,7,8 e 9 a
necessidade de se proibir a instituição de juízes post factum por qualquer soberano, visando, assim, a garantia de um julgamento imparcial, sem influências políticas162.
Na mesma linha, outro instrumento que merece destaque, pois consolida diversos direitos dos cidadãos ingleses, diminuindo a influência e a arbitrariedade dos monarcas, é
o Bill of Rights de 1689.
A primeira aparição do termo “juiz natural” surgiu em 1766, baseada no pensamento iluminista francês e utilizada para afirmar a oposição de seus ideais aos juízes
extraordinários, sendo, posteriormente, ratificada pela Constituição Francesa de 1791.
Referido diploma, em seu artigo 4º, capítulo V, título III, estabeleceu que “os cidadãos não podem ser destituídos dos juízes que a lei lhes confere, por qualquer incumbência
ou outras atribuições e avocações, salvo aquelas que as leis determinaram”163.
Diante disso, tem-se que o antigo “juiz delegado”, comissário do rei, passou a, paulatinamente, dar lugar para um “juiz natural” que, conforme os ideais iluministas, seriam
independentes, separando o Poder Judiciário da influência do Poder Executivo e do Poder Legislativo164.
Após o surgimento do termo juiz natural, os demais Estados europeus, seguindo a tendência iluminista, inseriram em suas constituições o princípio da independência dos
juízes, bem como a ideia fundamental de separação dos poderes, consolidando o princípio do juiz natural.
No caso brasileiro, tem-se que o princípio do juiz natural já foi resguardado desde a primeira Constituição, de 1824, em seu artigo 179, XI, veja-se:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: [...]
XI. Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta165.

Aqui, deve-se salientar que a referida Constituição foi elaborada em um contexto eminentemente liberal-burguês, tendo recebido significativa influência da matriz
constitucional francesa e dos ideais iluministas166. Contudo, apesar dessa carta afirmar inúmeros direitos fundamentais e sociais, previu também, o chamado Poder Moderador,
através do qual Dom Pedro I, contraditoriamente aos ideais constituintes, manteve o autoritarismo predominante no Império.
A título exemplificativo, vale destacar os artigos 99, 101, VII e 154 da Constituição de 1824:

Art. 99. A pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.
Art. 101. O imperador exerce o Poder Moderador: [...]
VII. Suspendendo Magistrados nos casos do Art. 154.
Art. 154. O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra eles feitas, precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de
Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remetidos á Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei.

Como se percebe, a Constituição de 1824, apesar de receber influências iluministas, não se afastou integralmente dos ideais absolutistas, fato que ocorreu apenas com a
proclamação da república e com a promulgação da segunda Constituição do Brasil de 1891.
A Constituição de 1891, promulgada sob forte influência positivista e norte-americana, extinguiu o famigerado Poder Moderador, firmando-se na clássica separação de
poderes de Montesquieu167.
No que se refere a salvaguarda do princípio do juiz natural, tem-se que referida carta, no mesmo sentido da Constituição de 1891, prezou pela manutenção do
mencionado princípio:

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdades á segurança individual e á
propriedade nos termos seguintes: [...]

§ 15. Ninguem será sentenciado, sinão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ella regulada168.

Referida carta, apesar de ter tido sua vigência por período de tempo considerável, vigeu durante o período histórico marcado por uma conjuntura política oligárquica
apelidada de “política do café com leite” evidenciando um descompasso entre o avanço normativo alcançado e a sociedade da época, que culminou no movimento revolucionário
de 1930 e com a promulgação da Constituição de 1934169.
A Constituição de 1934, foi marcada por significativas influências sociais exercidas pela Constituição mexicana de 1917, alemã de 1919 e soviética de 1918, contudo, a carta
também ficou conhecida pelo seu curtíssimo período de vigência, de apenas três anos.
No que se refere ao princípio do juiz natural, esse foi assegurado em seu artigo 113, incisos 25 e 26:

Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes, no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á segurança
individual e á propriedade, nos termos seguintes:
25) Não haverá fôro privilegiado nem tribunaes de expepção; admitem-se, porém, juízos especiaes em razão da natureza das causas.
26) Ninguem será processado, nem sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior ao facto, e na forma por ella prescripta170.

O mencionado diploma, como visto, não pôde vigorar de forma plena, ao se considerar que foi logo substituído, de maneira autoritária, pela a carta de 1937 (conhecida como
“polaca”), outorgada por Getúlio Vargas, durante a ditadura do estado novo.
Referida Constituição, frisando sua característica eminentemente autoritária, também ficou marcada como a única da história do país a não conter qualquer previsão do
princípio do juiz natural.
Com a deposição de Getúlio Vargas, e a posterior posse de Gaspar Dutra, adveio a Constituição de 1946 que refutou os elementos autoritários da carta de 1937,
resguardando novamente os direitos fundamentais e sociais. Nessa carta, o princípio do juiz natural foi devidamente afirmado em seu artigo 141, parágrafos 26 e 27, veja-se:

Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança
individual e à propriedade, nos têrmos seguintes: [...]
§ 26. Não haverá fôro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção.
§ 27. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior171.

Em 1964, contudo, o Brasil vivenciou, novamente, um período de ditadura, com o golpe militar. Os militares, por conseguinte, decidiram por formular uma nova
Constituição que melhor atendesse aos seus interesses, a qual entrou em vigor em 1967 tendo sido emendada em 1969.
A mencionada Constituição, contraditoriamente, pois vigeu em período de enorme restrição de direitos civis e políticos, previa o princípio do juiz natural em seu artigo 150
§ 15:

Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]
§ 15. A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção172.

Finalmente, com o restabelecimento da democracia no Brasil, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, por resguardar amplamente
direitos fundamentais e sociais dos cidadãos. Como não poderia deixar de ser, a carta garantiu o princípio do juiz natural em seu artigo 5º, incisos XXXVII e LIII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção.
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

Demonstrado o histórico do surgimento do juiz natural e de sua sedimentação nas constituições brasileiras, impõe-se também salientar sua absoluta consolidação no cenário
legislativo internacional.
Antes de se adentrar na afirmação do princípio do juiz natural nas cartas internacionais, necessário se faz salientar um importante episódio da história mundial considerando
um dos grandes marcos do descumprimento do princípio.
Nesse sentido, após a segunda guerra mundial (1939 até 1945), com a vitória dos Aliados, e com a descoberta das absurdas violações aos direitos humanos cometidas pelos
nazistas, foi celebrado um acordo, entre os países vencedores, para constituição de um Tribunal Militar Internacional, o “Tribunal de Nuremberg” que deveria realizar os
julgamentos dos crimes de guerra.
Nas palavras de Luís Wanderley Torres:

A decisão de julgar criminosos de guerra se manteve secreta até o término do conflito, em maio de 1945. E nesse mês, vitoriosos os Aliados, propuseram os Estados
Unidas à Inglaterra, Rússia e França um plano com o fim de ser organizado um Tribunal Internacional, com poder e jurisdição para julgar e condenar os grandes
criminosos de guerra. Esse Tribunal Militar Internacional resultou do Acordo Celebrado em Londres, a 8 de agosto de 1945173.

Referido tribunal, além de ter sido criado após os fatos, revelando-se um verdadeiro tribunal de exceção, o que já denota grave violação ao princípio do juiz natural, foi
constituído apenas por juízes provenientes dos países vencedores do conflito174, fato que, evidentemente, comprometeu, em absoluto, a imparcialidade do julgamento, ficando
conhecido também como julgamento pautado pela “justiça dos vencedores”.
Justamente devido a péssima impressão deixada pelo Tribunal de Nuremberg, bem como pela necessidade de constituição de tribunais de exceção para julgamento crimes
contra os direitos humanos, que poderiam sofrer influências políticas indesejadas, foi constituído, tempos depois, o Tribunal Penal Internacional com competência para julgar
graves crimes contra a humanidade.
Sobre a importância da instituição do referido Tribunal, assevera Flávia Piovesan:

O Tribunal Penal Internacional permite limitar a seletividade política até então existente. [...] o Tribunal Penal Internacional assenta-se no primado da legalidade,
mediante uma justiça preestabelecida, permanente e independente, aplicável igualmente a todos os Estados que a reconhecem, capaz de assegurar direitos e combater a
impunidade, especialmente a dos mais graves crimes internacionais. Consagra-se o princípio da universalidade, na medida em que o Estatuto de Roma aplica-se
universalmente a todos os Estados-partes, que são iguais frente ao Tribunal Penal, afastando-se a relação entre “vencedores” e “vencidos”175.

Dessa forma, com a constituição do referido tribunal, tem-se evidente evolução, ao se considerar a extinção dos tribunais de exceção para julgamento de crimes
internacionais contra a humanidade, privilegiando-se a competência de um tribunal pré-constituído, portanto, independente e imparcial, em plena conformidade com o princípio do
juiz natural.
Como se percebe, o contexto da política mundial no cenário posterior à segunda guerra mundial foi de clara aproximação entre as principais nações do mundo, que, depois
de vivenciarem tanta violência, resolveram por unir esforços para criar um mecanismo de manutenção da paz.
Dessa conformidade de interesses surgiu, em 24 de outubro de 1945, a ONU (Organização das Nações Unidas), que se colocou como ponto de partida para a elaboração de
diversos diplomas internacionais de proteção aos direitos humanos e da paz.
Nesse sentido, o primeiro documento que merece destaque é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948176, documento aprovado sem qualquer questionamento
ou reserva feita pelos Estados aos seus princípios, o que o torna de absoluta legitimidade.
Ao que interessa ao presente trabalho, deve-se destacar que em seu artigo 10, a declaração de direitos, dispõe:

Art. 10: Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um Tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e
deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ela.

Na mesma linha, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos assevera:

Artigo 14 – 1. Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e Cortes de Justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias
por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil [...].

Finalmente, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) também assegura o princípio do juiz natural, ao afirmar em seu artigo 8º
o seguinte:

Artigo 8º – Garantias Judiciais, 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus
direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Demonstrada a sedimentação do princípio no contexto histórico brasileiro e internacional, passa-se a verificar, de maneira mais aprofundada sua extensão na Constituição
brasileira de 1988.

3. Os elementos do princípio do juiz natural postos pela Constituição Federal de 1988

Conforme visto, o princípio do juiz natural se manifesta por meio dos incisos XXXVII e LIII do art. 5º da Constituição Federal que determinam, respectivamente, a
proibição de tribunais de exceção, isto é, a vedação da instituição de tribunais para julgar fatos já ocorridos, bem como a obrigatoriedade dos julgamentos serem realizados apenas
pela autoridade competente, predefinida pelo legislador.
Nesse sentido o princípio do juiz natural se faz absolutamente necessário ao Estado Democrático de Direito ao garantir aos cidadãos, um julgamento realizado por um juiz
imparcial e independente.
A respeito do conceito de juiz natural, Nelson Nery Junior subdivide o princípio em três dimensões, quais sejam, a vedação aos tribunais de exceção, a de que todos possuem
o direito de se submeter a julgamento por um juiz competente e preconstituído na forma da lei, bem como a necessidade de o julgador ser imparcial177.
Já para Candido Rangel Dinamarco o princípio do juiz natural se subdivide por meio do seguinte trinômio:

a) julgamentos realizados por juiz e não por outras pessoas ou funcionários; b) preexistência do órgão judiciário, sendo vedados também para o processo civil eventuais
tribunais de exceção instituídos depois de configurado o litígio; c) juiz competente segundo a Constituição e a lei178.

Finalmente, Brito, Fabretti e Lima, definem o princípio:

O princípio do juiz natural visa garantir a existência de um juiz imparcial através da fixação de competência. Sabe-se assim por qual juízo será apreciada a questão,
porém não por qualquer juiz. Por tal princípio se regula e legitima um juízo, atribuindo-lhe poderes de jurisdição. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a
relação processual se instaure validamente179.

Como se percebe, apesar de sutis diferenças nas classificações e definições elencadas nota-se clara identidade da doutrina180 ao determinar que a Constituição Federal
assegura que os julgamentos sejam realizados por juízes, imparciais e membros do Poder Judiciário, mediante norma de competência preestabelecida, sendo explicitamente vedada
a criação de Tribunais de exceção.
Nessa toada Jacinto Nelson de Miranda Coutinho reitera a importância do princípio ao Estado Democrático de Direito:

Juiz competente, diante do quadro constitucional de 88, é, sem sombra de dúvida, o Juiz Natural ou Juiz Legal, de modo a se poder dizer ser dele a competência
exclusiva para os atos aos quais está preordenado. Excluem-se todos os demais, evitando-se, desse modo, manipulações indesejáveis (produtoras de
uma desordem intragável em um Estado Democrático de Direito), com vilipêndio das regras de garantia [...]181.

O princípio do juiz natural, desse modo, garante aos cidadãos um julgamento imparcial e independente por parte dos juízes. A imparcialidade e a independência se colocam
como elementos basilares da jurisdição e do Estado de Direito.
Nessa esteira, pode-se definir imparcialidade como a propriedade do juiz permanecer equidistante das partes, não favorecendo qualquer dos polos do processo por razões
emocionais alheias as provas dos autos.
Nesse sentido, Candido Rangel Dinamarco salienta:

A imparcialidade, conquanto importantíssima, não é um valor em si própria, mas fator para o culto de uma fundamental virtude democrática refletida no processo, que
é a igualdade. Quer-se o juiz imparcial, para que dê tratamento igual aos litigantes ao longo do processo e na decisão da causa182.

Em consonância com esse entendimento André Machado Maya, interpretando as palavras de Isabel Trujillo, assevera:

Imparcialidade, nesse contexto, e■ um valor estruturante do ordenamento jurídico que ganhou relevo com o desenvolvimento do direito desde o paradigma racionalista
do Estado moderno, sendo atualmente concebida como um princípio normativo indiscutido, uma atitude ou um valor central que da■ ensejo a■ regra fundamental de
uma ética fundada sobre o respeito às pessoas em função de sua igual dignidade. Sob está ótica, a imparcialidade e■ concebida como uma regra básica de tratamento
que tem por pressuposto a noção de igualdade, integrando, ao lado das ideias de Justiça, certeza e equidade, o grupo de valores jurídicos183.

O Código de Ética da Magistratura em seus artigos 8º e 9º se monstra bastante elucidativo a respeito do tema:

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma
distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.
Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.

Nesse ponto, deve-se frisar que o conceito de imparcialidade não se confunde com o de neutralidade do juiz, isso porque, o juiz, enquanto pessoa inserida na sociedade,
logicamente possui seus paradigmas éticos e morais que influenciam na construção do seu raciocínio, fenômeno que, por si só, não afeta a imparcialidade no magistrado.
A esse respeito, Nelson Nery Junior esclarece:

A imparcialidade está ligada à independência do juiz e é manifestação do princípio do juiz natural. Todos têm o direito de ser julgados pelo seu juiz natural, imparcial,
pré-constituído na forma da lei. Entretanto, não se pode exigir do juiz, enquanto ser humano, neutralidade quanto às coisas da vida (neutralidade objetiva), pois é
absolutamente natural que decida de acordo com seus princípios éticos, religiosos, filosóficos, políticos e culturais, advindos de sua formação como pessoa.
Aneutralidade que se lhe impõe é relativa às partes do processo (neutralidade subjetiva) e não às teses, in abstracto, que se discutem no processo184.

Ademais, em casos em que configurada a parcialidade do magistrado, a legislação processual civil e processual penal determinam o impedimento, para os casos de
parcialidade objetiva (artigos 144 e 147 do CPC e 252 e 253 do CPP), bem como determinam a suspeição para as hipóteses de parcialidade subjetiva (artigos 145 do CPC e 95, 96
a 107 e 254 do CPP). Em qualquer dos casos, o magistrado deverá ser substituído por seu substituto legal.
Outro, elemento fundamental ao princípio do juiz natural, como visto, é a independência. É de suma importância ao Estado Democrático de Direito e à jurisdição que o juiz,
ao apreciar o caso concreto, possa atuar com plena independência, devendo estar imune a eventuais pressões políticas e arbitrariedades.
Justamente por isso, a Constituição Federal assegurou a plena a separação entre os três poderes do Estado (artigo 2º185 da CF), conferindo plena autonomia institucional e
financeira ao Poder Judiciário, conforme ponderam Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

A constituição de 1988 cofiou ao Judiciário papel até então não outorgado por nenhuma outra Constituição. Conferiu-se autonomia institucional, desconhecida na
história de nosso modelo constitucional e que se revela, igualmente, singular ou digna de destaque também no plano do direito comparado. Buscou-se garantir a
autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Assegurou-se a autonomia funcional dos magistrados. [...] O modelo presente, no entanto, consagra o livre
acesso ao Judiciário. Os princípios da proteção judicial efetiva (art. 5º XXXV), do juiz natural (art. 5º XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5º, LV) têm
influência decisiva no processo organizatório da Justiça, especialmente no que concerne às garantias da magistratura e à estruturação dos órgãos. (MENDES, Gilmar
Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 991)186.

Nesse sentido o artigo 99187 da Constituição Federal é expresso ao assegurar a autonomia administrativa e financeira ao Poder Judiciário. Com isso, tem-se que a
independência do Poder Judiciário que, logicamente, se coloca como um dos requisitos basilares para a plena independência do magistrado, foi devidamente resguardada
pela Constituição.
Quanto a independência do juiz, nota-se que a referida carta, em seu artigo 95, trouxe uma série de garantias e vedações inerentes ao cargo, quais sejam:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:


I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o
juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II – inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
II – receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;
III – dedicar-se à atividade político-partidária;
IV – receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei;
V – exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

No que se refere a vitaliciedade, essa protege o magistrado de eventual remoção do cargo sem as devidas garantias do devido processo legal e da ampla defesa, devendo
apenas acontecer com o trânsito em julgado da sentença.
A inamovibilidade garante ao magistrado que não seja removido do cargo por meio de decisões arbitrarias de órgãos superiores. Assim, um juiz não será impedido de
analisar qualquer caso concreto por motivos políticos e interesses escusos.
Por fim, a irredutibilidade de subsídio resguarda o juiz de eventual retaliação legislativa, completando o arcabouço de garantias da independência dosmagistrados.
A Constituição Federal, como visto, também impõe uma série de vedações ao exercício da magistratura com a finalidade de assegurar a independência e a própria
imparcialidade do juiz. Nesse sentido, aos magistrados é vedado exercer qualquer outro cargo ou função exceto uma de magistério, receber quaisquer valores a título de custas
judiciais, bem como valores de pessoas físicas ou jurídicas. O juiz também não deve envolver-se em atividades político-partidárias, nem exercer a advocacia, no mesmo tribunal
em que atuou, por um período de três anos, evitando-se assim, qualquer possível troca de favores ou de influências.
Como se percebe, esse conjunto de garantias e vedações se colocam como essenciais ao exercício de uma atividade jurisdicional imparcial independente, como observa
Candido Rangel Dinamarco:

O Trinômio vitaliciedade-inamovibilidade-irredutibilidade de vencimentos assim como a definição tão objetiva quanto possível dos critérios para a carreira dos juízes
(art. 93, incs. I-III) são penhores da independência destes perante os órgãos dos demais Poderes do Estado. Também o Poder Judiciário como um todo é dotado de uma
série de prerrogativas institucionais: autogoverno, autonomia administrativa e orçamentária etc. (art. 96 – infra, nn. 207 ss.). A independência é um indispensável fator
de imparcialidade188.

Todos os elementos acima expostos revelam a sólida consolidação do princípio na Constituição Federal, devendo sua observância ser estritamente respeitada pelos órgãos
jurisdicionais pátrios.

4. Conclusão

Como se constata, a efetivação do princípio do juiz natural é fundamental para qualquer democracia, consolidando a independência do Poder Judiciário e possibilitando, aos
cidadãos, um julgamento imparcial e independente.
A história já demonstrou os males que a não observância do princípio pode causar, tendo como seu grande exemplo o Tribunal de Nuremberg, julgamento absolutamente
influenciado por interesses políticos, o que enfraqueceu drasticamente sua credibilidade.
No atual cenário brasileiro de crise política e econômica, no qual todas as instituições do Estado estão sendo diariamente testadas, bem como com o Poder Judiciário em
enorme destaque devido aos sistemáticos casos de corrupção revelados, é de suma importância que as garantias constitucionais sejam defendidas e cumpridas rigorosamente.
Dessa forma, e como se observou ao longo do presente artigo, o princípio do juiz natural possui sólidos elementos de proteção na Constituição Federal de 1988, espera-se
que independentemente de clamores sociais ou políticos, tais elementos continuem sendo prontamente observados.
REFERÊNCIAS

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MAYA, A. M. Imparcialidade e processo penal: da prevenção da competência ao juiz de garantias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

NERY JUNIOR, N. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

SARLET, I.; MARIONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 227.

SCALQUETTE, R. A. Elementos da Soberania e do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: LTCE Editora, 2007.

TORRES, L. W. Crimes de guerra. O genocídio. São Paulo: Fulgor, 1967.

Notas de Rodapé
159 O ABC atualmente disponibiliza 355 mil obras em 76 línguas e em diversos formatos acessíveis; mais de 5000 partituras musicais em Braile.
160 É advogado, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestrando em direito político e econômico pela mesma Universidade.
161 Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 539.
162 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 544.
163 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 544.
164 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 540.
165 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 42-43.
166 SARLET, Ingo; MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 227.
167 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 49-50.
168 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 71-72.
169 SARLET, Ingo; MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 227.
170 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 129-131.
171 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 243-245.
172 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001. p. 346-348.
173 TORRES, Luís Wanderley. Crimes de guerra. O genocídio. São Paulo: Fulgor, 1967. p. 31.
174 SCALQUETTE, Rodrigo Arnoni. Elementos da Soberania e do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: LTCE Editora, 2007. p. 52.
175 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 304-305.
176 Para Flávia Piovesan, ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não assuma forma de tratado internacional “apresenta força jurídica
obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constantes dos arts. 1º e 55 da Carta das
Nações Unidas. Ressalte-se que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos
(Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 219).
177 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 162.
178 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 333.
179 BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrionuevo; LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012. p. 28.
180 Em entendimento conforme, Maria Lúcia Karam assevera: Assim, abrangendo a proibição de tribunais de exceção e a garantia do juiz competente, o
significado do princípio do juiz natural lega um primeiro e imperativo reconhecimento de que somente o órgão jurisdicional pré-constituído, ou seja, o órgão
cuja competência resulta no momento do fato, de determinadas normas abstratas já existentes é que poderá legitimamente exercer a jurisdição em um
processo dado (KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 38).
181 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O princípio do juiz natural na CF/88. Ordem e desordem. Revista de informação legislativa, Brasília, a. 45, n. 179,
jul./set. 2008.
182 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 331.
183 MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal: da prevenção da competência ao juiz de garantias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 46.
184 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 174.
185 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
186 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 991.
187 Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.
1º Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes
orçamentárias.
§ 2º O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I – no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
II – no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
§ 3º Se os órgãos referidos no § 2º não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o
Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de
acordo com os limites estipulados na forma do § 1º deste artigo.
§ 4º Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na forma do § 1º, o Poder Executivo
procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual.
§ 5º Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites
estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais.
188 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 332.

10. PODER JUDICIÁRIO: uma abordagem do poder estatal como pauta da agenda política brasileira

Alexandre Izubara Mainente Barbosa189

1. O poder judiciário na república constitucional brasileira

O Poder Judiciário da atualidade já não é mais o mesmo de alguns anos atrás. Decisões que gerariam um arrepio à sociedade tradicional são encaradas com naturalidade
pelo cidadão moderno. Nos anos 90, pesquisa feita com juízes já revelava a dispensa da postura mecanicista.
Analisando os desdobramentos do constitucionalismo190 no cenário pós-guerra, a primeira observação que deve ser feita é com relação à denominação que é
costumeiramente empregada pela doutrina sem atenção aos momentos históricos de sua construção terminológica. Daí porque:

Se adotado o conceito amplo de constitucionalismo, não haveria que se falar em neoconstitucionalismo pois ele seria somente mais um dos vários momentos de
reflexão sobre a experiência política-jurídica de uma sociedade e de Estado191.

Essa atmosfera deriva do abandono da cultura legicêntrica, isto é, do: “fortalecimento do Estado Democrático Constitucional, na argumentação, na coerência e na
ponderação”192, uma proteção contra a arbitrariedade das leis cuja construção foi feita “a partir de necessidades mostradas por fatos históricos”193, isto é, das consequências
proporcionadas pelas grandes guerras.
A guerra fria e a segunda guerra mundial, em especial, foram o estopim dos conflitos bilaterais e multilaterais, mutilando os direitos humanos e comprometendo gravemente
a economia mundial. Em resposta:

[...] para facilitar a cooperação entre os povos e países, gerando instituições supranacionais (como a Organização das Nações Unidas) e tratados
socioeconômicos194regionais que buscaram a paz pelo comércio195, inclusive em [...] temas de interesse comum (p. ex. a questão ambiental), sobretudo com o
término da Guerra Fria no final do século passado196.

Logo no século XX:

[...] com os seus múltiplos e diversificados cenários de crise, atingido por três diferentes momentos de elevada e agressiva beligerância (2 guerras mundiais e a guerra
fria que durou 42 anos – 1947 a 1989), a economia passou a representar o ponto nevrálgico dos diálogos travados em esfera jurídica e política, ante a instabilidade dos
governos, institucionais, políticas daí derivados197.

A acelerada dinâmica social fazia com que a lei não fosse suficiente para atender as necessidades havidas em todas as esferas. Reduzindo a incerteza da velocidade
legislativa e do debate político há, a partir do final da II Guerra Mundial, portanto, a consolidação do Estado Constitucional de Direito na Europa continental198. No Brasil,
superadas as grandes guerras e o momento ditatorial, em face da Constituição de 1988, abrangente e analítica, vemos um Judiciário forte e independente, pronto para retirar temas
do debate político e levá-los para uma arena de pretensões judicializáveis.
Para nós, é possível identificar alguns fenômenos particulares ao Poder Judiciário: a judicialização e o ativismo judicial. É verdade que: “Os
termos ativismo e protagonismo judicial têm sido utilizados com maior frequência nos estudos jurídicos, assim como judicialização da política”199. Judicialização é: “sinônimo
de expansão global do Poder Judiciário”200. Essa expansão é percebida precipuamente na infusão das decisões prolatadas sobre temáticas próprias da arena política, sobre as
quais não deveriam ocorrer.
Mas, ao mesmo tempo, se acentua a partir da década de 90 quando, em outros problemas, Executivo e Legislativo se mostram inefetivos na resposta de direitos fundamentais
para todos os cidadãos. Nesse clima de “frustração com a democracia”201, esses direitos passam a ser garantidos pelo Poder Judiciário o qual passa a ter um espaço cada vez
maior no século XXI.
Pelo menos dois aspectos são elementares para explicar esses fenômenos, um deles é a credibilidade de um em relação aos demais poderes republicanos, enquanto o segundo
é a própria formação jurídica brasileira202 que conduz a solução de controvérsias de diversas natureza ao crivo judicial dentro de um litígioprocessual.
A credibilidade se evidencia não apenas pelo garantismo dos direitos fundamentais do cidadão, mas pela própria ideia de que a judicialização da política pode sequer existir
e ser, na verdade, outra forma de fazer política, fazendo com que neste circuito o Poder Judiciário seja parte integrante do sistema político, assim como é o Poder Legislativo e o
Executivo, designando uma nova forma dos cidadãos participarem do jogo democrático203.

1.1 Acesso à justiça

O Judiciário é estruturado, de maneira geral, a partir dos seguintes órgãos: Supremo Tribunal Federal; Conselho Nacional de Justiça; Superior Tribunal de Justiça; Superior
Tribunal do Trabalho; Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; Tribunais e Juízes do Trabalho; Tribunais e Juízes Eleitorais; Tribunais e Juízes Militares, finalmente,
Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e dos Territórios.
Após a reforma constitucional, juízes togados e leigos passaram a atuar com causas de pequeno valor ou de menor complexidade; juízes classistas foram extintos: “Durante
décadas esses servidores, que fizeram o papel de juízes não concursados, limitaram seu campo de ação à Justiça do Trabalho”204; a composição do Superior Tribunal de Justiça
foi alterada assim como parte da competência; o mesmo se diga quanto à Justiça Federal, no quesito competência. Parte da justiça especial sofreu alteração e, na Constituição, foi
incluída a justiça agrária205 para dirimir conflitos fundiários.
De modo geral, houve um fortalecimento do Superior Tribunal de Justiça, como órgão de cúpula, na tentativa de se reservar ao Supremo Tribunal Federal funções de Corte
Constitucional, adequando as justiças especiais, incluindo a justiça agrária entre os órgãos do Judiciário, aumentando o número de juízes togados e leigos206 na tentativa de
contribuir com a celeridade da prestação jurisdicional, reduzindo formalidades e ampliando as competências de certos órgãos para democratizar o acesso à justiça207.
Decorrente da pretensa imparcialidade do julgador e a segurança do povo contra o arbítrio do Estado em seus outros segmentos, concentra-se a garantia individual de haver
um juiz natural208, sempre que houver violação do direito, mediante lesão ou ameaça à direito. O acesso foi, gradativamente, sendo ampliado seja para a população carente pelas
leis criadoras dos Juizados Especiais, seja pelas definidoras dos direitos consumeristas.
Inclusive o Supremo Tribunal Federal “alterando seu posicionamento anterior, afastou verdadeira ‘barreira ao acesso ao Poder Judiciário’”209, ao declarar inconstitucional a
exigência de depósito de bens para a admissão do recurso administrativo. Albergou também as ações coletivas, improbidades, admitindo seu próprio ingresso no debate de
políticas públicas.
Outros temas de dividida posição, afeto às políticas legislativas, também foram albergados para uma segunda discussão, em uma compreensão dada ao controle
constitucional pela Corte Constitucional Brasileira, como a temática da união homoafetiva e o aborto de anencéfalos. Essa amplitude, isto é, a judicialização é esse “fenômeno em
que o poder é transferido ao Judiciário, em detrimento das instituições tradicionais, como o Legislativo e Executivo”210.
Por essa via, o fenômeno mitiga o modelo de separação dos poderes do Estado, pela ampliação dos poderes na política e, consequentemente, o conceito de legitimidade
democrática. Contudo, a expansão da atividade judiciária: “decorre da própria Constituição211, que o legitimou a atuar na arena política”212, não sendo uma distorçam
institucional.

1.2 A imparcialidade

O ativismo que muitos acham que é uma grande saída, pode ser uma grande tragédia, porque o juiz pode ser independente ao governo, ao partido, mas nunca é independente
em relação à sua posição de classe e aos movimentos estruturais do capitalismo. Por isso, as decisões do tribunal não são tomadas por um juiz isoladamente, são tomadas por
maioria. Isso é para evitar que a visão muito particular do mundo de um possa se sobrepor a visão do colegiado.
Ao mesmo tempo, é uma quimera liberal acreditar que o juiz não terá conexão com os poderes constituídos. A crítica feita no Brasil é que o juiz é muito independente e
deveria ter maior compromisso com o povo. Juízes são pessoas recrutadas da classe média, em geral brancas, em geral homens, que passaram por um concurso dificílimo,
ganhando um salário impressionante comparado ao resto da população brasileira e, portanto, não tem qualquer compromisso com o projeto de país. Não é neutra, é uma técnica
que reproduz a ordem social.
O juiz deve ser imparcial como pressuposto de uma relação processual, distante do que se pode afirmar com neutralidade. Juiz neutro é o julgador que está imune a qualquer
influência ideológica e subjetiva, é indiferente ou insensível.
Para aprimorar o judiciário, deve-se permitir que seus integrantes sejam levados ao posto a partir de critérios adequados à função vislumbrada e que os órgãos judiciários
ocupem o espaço para o qual foram idealizados e serão necessários. Isso, em atenção à Corte Suprema, levanta a discussão sobre a manutenção da sua função precípua de
jurisdição constitucional com a típica função de jurisdição de primeiro grau, no processamento das questões penais213.

1.3 Mecanismos de uniformização das decisões

Afora as questões pessoais do julgador, atenção deve ser voltada às funções desempenhadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal deJustiça.
Enquanto órgãos de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal desempenha expressa atribuição de preservar a constitucionalidade da legislação,
mantendo a integridade da Constituição Federal, na via difusa e concentrada214, assim como na preservação da unidade do ordenamento jurídico nacional, função essa
desenvolvida pelo Superior Tribunal de Justiça.
É claro que ao primeiro Tribunal incumbe a garantir a uniformidade da interpretação da norma constitucional: “estabelecendo diretrizes e posicionamentos que deverão ser
adotados por todas as demais instâncias hierarquicamente inferiores”215, assim como deve fazer o segundo, no que diz respeito às normasinfraconstitucionais.
Os julgamentos nesses Tribunais devem acontecer segundo a relevância e transcendência do tema apresentado, na redução significativa de recursos calcados apenas no
inconformismo humano, decorrendo daí a pertinente crítica de Sá:

É preciso, portanto, coibir uma comum mentalidade da prática jurídica atual de que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal constituem mera
terceira (e eventual quarta) instância, a quem cabe reexaminar toda e qualquer decisão judicial216.

O excesso de recursos veiculado aos Tribunais de cúpula marcam a macrocrise do Judiciário e, consequentemente, o descrédito de suas decisões marcadas, dentre outros
fatores, pela demora na correção de posturas e resolução de contendas.
Uma das tentativas de reequilibrar os julgamentos proferidos inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal foi repartir a atribuição de uniformização ao recém constituído
Superior Tribunal de Justiça, permitindo acesso a ele a partir da interposição do recurso especial, enquanto àquele a partir da interposição do recurso extraordinário. Com efeito:

A agenda política brasileira dos anos 90 foi marcada pelas propostas de reforma constitucional e infraconstitucional que modificaram o perfil do Estado e a sua relação
com a economia e a sociedade. Nesse contexto, era previsível a inclusão da questão judiciária na pauta de discussões, uma vez que a prestação de justiça constitui-se
importante função estatal. [...] o Judiciário tornou-se palco de conflitos de grande intensidade, envolvendo setores sociais ou grandes agrupamentos de indivíduos
descontentes ou prejudicados pelas ações do governo. Junte-se a isso o fato de a Constituição de 1988 ter ampliado sensivelmente as formas individuais e coletivas de
acesso ao Judiciário, entregando-lhe ao mesmo tempo difícil missão de zelar pelos direitos constitucionais do cidadão217.

Antes disso, acreditava-se que o problema poderia ser contido com a súmula da jurisprudência do Supremo, criada por emenda regimental de 28 de agosto de 1963, cujo
escopo era facilitar a fundamentação dos julgados. Somente naquele ano, trezentos e setenta súmulas foram aprovadas. No ano seguinte, estabeleceu o Tribunal a possibilidade de
julgar prejudicado os recursos pendentes há mais de 10 anos sem julgamento, cujas partes não se manifestassem depois de devidamente intimadas.
Adiante, se viu a repartição de atribuições do STF e STJ. O desdobramento das funções não refletiu o problema-raiz o qual deixou de ser zelado para ser remediado.
A verdade era a insatisfação da comunidade jurídica com tantas barreiras para acessar o Tribunal de cúpula. A ideia era:

[...] minimizar o problema de excesso de recursos no STF e, ao mesmo tempo, abrir o acesso das partes à nova Cortes, oferecendo uma resposta aos até então rígidos
requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário, principalmente em matéria de lei federal218.

Assim, na ânsia de reabrir o acesso à justiça, criou-se o STJ. Com efeito, a crise dos recursos extraordinários se expandiu para apenas “crise”, onde o STJ teve mais aptidão
para lidar com o problema de excesso de feitos comprometendo, consequente, da celeridade e qualidade de seus julgamentos.
Daí se vê que o problema é antigo219. Gráficos analisados por Sardek apontaram que: “a litigiosidade difusa em torno da interpretação da Constituição (REx) quase triplicou
entre 1990 e 2000, enquanto a litigiosidade em torno da [...] legislação federal (Res) quase duplicou”220. Não tardou para verificar que a crise do STF não estava contida, assim
como, frustrando expectativas, o Superior Tribunal de Justiça aproximava-se do problema:

Os números, mais uma vez, falam por si: em 1989, ano da instalação do STJ, foram distribuídos 6.103 processos e, no ano seguinte, foram 14.087 distribuições. Dez
anos depois, o número aumentou para incríveis 150.738 feitos distribuídos, chegando a 198.613 em 2001, 226.440 em 2003 e 313.364 em 2007!221.

Para retomar as atribuições que lhes eram pertinentes, a reforma constitucional estabeleceu a súmula vinculante:

[...] justificada como forma de resolver a chamada ‘crise dos tribunais superiores’, caracterizada pela sobrecarga de processos [...] Além de evitar a repetição
desnecessária, a SEV poderia ser útil nos casos de ampla repercussão pelo país, decorrentes de origem comum, que poderiam receber tratamento uniforme a partir de
decisões firmadas pelos tribunais superiores222.

Cuidava-se de uma solução viável, pois no topo da pirâmide da sobrecarga era identificado que grande parte dos processos advinham de recursos interpostos pelo próprio
Estado, insistente em levar os processos até as instâncias superiores do Judiciário.
Fosse a proposta encarada com essa obviedade a ponto de reduzir o número de causas repetitivas, no fundo:

[...] o problema da SEV que se propõe a resolver é que no Brasil, as decisões dos tribunais ditos superiores não são superiores em relação às demais instâncias do
Judiciário [...] Para o governo, a reforma do Judiciário ganhou importância como linha auxiliar de reforço da governabilidade enquanto para a oposição o mais
importante tem sido garantir e ampliar o acesso à Justiça223.

Outra construção foi o requisito da repercussão geral no recurso extraordinário e a técnica de julgamento de processos repetitivos. Tais institutos vêm se mostrando
ineficientes, o primeiro por conta da jurisprudência defensiva e o segundo em relação à deficiência em cumprir com o objetivo de impor o tratamento molecularizado para as ações
de massa, a despeito do que se viu nas concomitantes demandas individuais e coletivas, em que o proveito consistia nos expurgos inflacionários dos planos econômicos além de
outros temas.
O caminho encontrado na discussão da PEC 10/2017 (senadora Rose de Freitas – PMDB-ES), em trâmite conjunto com a PEC 17/2013 (senador Ricardo Ferraço –
PSDB-ES)224, deve ter cautela para evitar a posição apresentada. O mencionado projeto visa criar o requisito da relevância da matéria discutida no recurso especial, cuja
admissibilidade só poderia ser recursada pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para julgá-lo.
A vultosa quantidade de processos que aportam ao Judiciário acabou por afastar as funções primordiais dos Tribunais de cúpula. Embora estruturados os mecanismos de
contenção do aumento vertiginoso do número de conflitos postos ao crivo judicial, restou inspirada em experiências internacionais e, na esteira da repercussão geral, pretende-se a
constituição do requisito para o recurso especial, a partir de um conceito jurídico propositalmente indeterminado.
As novas propostas de reforma do Poder Judiciário o aproximam de uma maior discricionariedade. Por um lado, esse conceito impede o engessamento do sistema,
permitindo albergar inúmeras hipóteses ao longo do tempo ao aproximar o juiz brasileiro da discricionariedade americana e inglesa e, por outro lado, mantém o critério político
que pode ser esperado na agenda política brasileira, ao politizar os membros desse Tribunal, os quais não foram engajados no sistema por meio de sufrágio.
REFERÊNCIAS

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CAGGIANO, M. H. S. (Coord.); LEMBO, C. (Coord.). Direito Constitucional Econômico: uma releitura da constituição econômica brasileira de 1988. Barueri, SP: Manole,
2007. (Série culturalismo jurídico).

CARLINI, A. L. Judicialização da saúde no Brasil: causas e possibilidades de solução. 2012. 202 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade
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GALDIANO, J. E. B. Técnica de julgamento de recursos repetitivos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. 2014. 396 f.
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GASPARI, E. A ditadura derrotada: o sacerdote e o feiticeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988. Malheiros editores, 2005.

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MOREIRA, E. R. Neoconstitucionalismo – a invasão da constituição. São Paulo: Método, 2008

MOTTA, L. E. O Estado Democrático de Direito em Questão. São Paulo: Elsevier, 2011

SÁ, D. C. G. de. Repercussão Geral da Questão Constitucional: Uma análise crítica. 2014. 121 f. Dissertação (Direito Processual Civil) – Universidade de São Paulo, São
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SADEK, M. T. (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.

VERBICARO, L. P. A (i)legitimidade democrática da judicialização da política: uma análise à luz do contexto brasileiro. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 13, n. 101,
p. 445-488, out. 2011/jan. 2012.

Notas de Rodapé
189 É bacharel em direito pela Universidade Católica de Santos, pela qual também é especialista em direito tributário. Além disso, é especialista em direito e
processo do trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus e mestrando em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2016-2018), com bolsa integral pela CAPES. Foi representante titular da 132ª subsecção da OABSP de 2011-2013 junto ao CONDEMA (Conselho
Municipal de Defesa do Meio Ambiente) e parecerista na Comissão de Ética e Disciplina (2014-2015), ambos na cidade de Praia Grande – SP. Pesquisa na
área de Direitos Sociais e Políticas Públicas, no grupo constituído junto à Universidade Presbiteriana Mackenzie. É advogado e, desde 2016, assessor na 3ª
Câmara Recursal da OABSP.
190 Segundo Moreira: “A origem do constitucionalismo representou uma necessidade: a de limitação dos poderes [...] freio e contra peso é formalmente prevista
e age até sob a crise institucional máxima” (MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo – a invasão da constituição. São Paulo: Método, 2008.
p. 130).
191 FRANCISCO, José Carlos (Coordenador e coautor). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 52.
192 FRANCISCO, José Carlos (Coordenador e coautor). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 53.
193 FRANCISCO, José Carlos (Coordenador e coautor). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 59.
194 A preocupação com o capital foi sentida internamente, que países como o Brasil alçaram o tema à norma constitucional a ponto de separar um capítulo para
estabelecer um “conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem
uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de
1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 76), denominada por alguns de Constitucição Econômica (CAGGIANO, Mônica Herman Salem; LEMBO,
Claudio (Coords.). Direito Constitucional Econômico: uma releitura da constituição econômica brasileira de 1988. Barueri, SP: Minha Editora, 2007.
195 FRANCISCO, José Carlos (Coordenador e coautor). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 60.
196 FRANCISCO, José Carlos (Coordenador e coautor). Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 61.
197 CAGGIANO, Mônica Herman Salem (Coord.); LEMBO, Claudio (Coord). Direito Constitucional Econômico: uma releitura da constituição econômica
brasileira de 1988. Barueri, SP: Minha Editora, 2007. p. 23. (Série culturalismo jurídico).
198 BARROSO, Luis Roberto. Constituição Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência,
Brasília, v. 12, n. 92, p. 5-43, fev/maio 2010.
199 CARLINI, Angelica Luciá. Judicialização da saúde no Brasil: causas e possibilidades de solução. 2012. 202 f. Tese (Doutorado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012. p. 94.
200 MOTTA, Luiz Eduardo. O Estado Democrático de Direito em Questão. São Paulo: Elsevier, 2011. p. 179.
201 CARLINI, Angelica Luciá. Judicialização da saúde no Brasil: causas e possibilidades de solução. 2012. 202 f. Tese (Doutorado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012. p. 95.
202 Uma formação onde o professor é uma autoridade incontestável dentro da sala de aula, cujas análises críticas não se formam no ambiente educacional, em
uma metodologia despreocupada com abordagem tradicional do ensino-aprendizagem cria um novo problema para a interpretação e aplicação do direito e,
consequentemente, para a construção da justiça (CARLINI, Angélica Luciá. Aprendizagem Baseada em Problemas Aplicada ao Ensino de Direito:
Projeto Exploratório na Área de Relações de Consumo. 2006. 295 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Educação) – PUC, São Paulo, 2006. p. 80-84.
203 KOERNER, Andrei; INATOMI, Celli Cook; BARATTO, Márcia. “Sobre o Judiciário e a Judicialização”. In: MOTA, Maurício; MOTTA, Luiz Eduardo. O Estado
Democrático de Direito Em Questão. São Paulo: Elsevier, 2011. p. 127.
204 SADEK, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 185.
205 BRASIL. Constituição Federal, artigo 134.
206 Com previsão no artigo 98, I, da Constituição Federal de 1988, juízes leigos são recrutados entre advogados com mais de cinco anos de experiência,
designados para os juizados especiais (Lei
n. 9.099/95) para auxiliar a justiça na tentativa de conciliação das partes, na instrução processual permitindo, inclusive, à essa figura a proposta de decisão,
supervisionado por um juiz togado, ao final.
207 SADEK, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 215.
208 Juiz natural consiste numa expressão que designa um julgador “integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias institucionais e pessoais previstas na
Constituição Federal” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32. ed. 2016, p. 135), que consagrem independência e imparcialidade do órgão
julgador, impedindo a criação dos juízes ou tribunais de exceção e orientando as regras de determinação de competência.
209 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32. ed. 2016, p. 159.
210 BARROSO, Luis Roberto. Constituição Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência,
Brasília, v. 12, n. 92, p. 5-43, fev/maio 2010, p. 13
211 No contexto brasileiro: “grande parte das condições facilitadoras da judicialização da política podem ser identificadas, especialmente, a partir do processo de
redemocratização e reconstitucionalização do Brasil, após sucessivos períodos de autoritarismo” (VERBICARO, 2012, p. 452). Sua elaboração também é
ponto nevrálgico: especialmente ao inserir normas com textura aberta em detrimento das categorias e definições precisas e unívocas cultivadas
tradicionalmente pela dogmática jurídica” (VERBICARO, 2012, p. 453).
212 VERBICARO, Loiane Prado. A (i)legitimidade democrática da judicialização da política: uma análise à luz do contexto brasileiro. Revista Jurídica da
Presidência, Brasília, v. 13, n. 101, p. 450, out. 2011/jan. 2012.
213 A questão afeta às ações penais, relativamente ao foro privilegiado e a competência originária desta e de outras Cortes, são abordadas em outro momento.
214 O controle de constitucionalidade concreto, feito a posteriori, é, dentre outras formas, classificado quanto ao órgão jurisdicional que pode apreciar a matéria.
É denominado difuso o controle de constitucionalidade permitido à todo e qualquer órgão jurisdicional, cuja proteção é franqueada diretamente e
individualmente ao caso apresentado enquanto o controle concentradoacontece apenas no STF, por intermédio da ADI, ADC ou ADPF, cujo interesse
protegido está diretamente voltado à preservação da norma constitucional.
215 SÁ, Danielle Carlamagno Gonçalves de. Repercussão Geral da Questão Constitucional: Uma análise crítica. 2014. 121 f. Dissertação (Direito Processual
Civil) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. p. 20.
216 SÁ, Danielle Carlamagno Gonçalves de. Repercussão Geral da Questão Constitucional: Uma análise crítica. 2014. 121 f. Dissertação (Direito Processual
Civil) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. p. 21.
217 SADEK, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 7-8.
218 GALDIANO, José Eduardo Berto. Técnica de julgamento de recursos repetitivos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Dissertação (Direito Processual) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. p. 105.
219 Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora haja visível preocupação ao se atentar para o valor exagerado das custas judiciais, para a eliminação de
recursos e para a criação de Tribunal posicionado acima das cortes federais, não há relato do excesso de recursos em órgão jurisdicional de cúpula, pois:
“o certiorari permite às Cortes Supremas selecionar discricionariamente as causas que julgarão” (GALDIANO, José Eduardo Berto. Técnica de julgamento
de recursos repetitivos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. Dissertação (Direito Processual) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. p. 97).
220 SADEK, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 25.
221 GALDIANO, José Eduardo Berto. Técnica de julgamento de recursos repetitivos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Dissertação (Direito Processual) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. p. 106.
222 SADEK, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 24.
223 SADEK, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 28-30
224 Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/07/05/recurso-especial-no-stj-pode-passar-a-ter-requisitos-de-admissibilidade>. Acesso
em: 2 out. 2017.
225 Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Advogado.
226 DEL PRIORE, Mary. A Carne e o Sangue. p. 54-55.

11. CRIME DE RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA: a solução parlamentarista na constituição


brasileira

Rodrigo Albuquerque Maranhão225

1. Introdução

Passados quase trinta anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, seguida pela primeira eleição para Presidente da República em 1989 – momentos marcantes da
história recente que melhor simbolizaram a superação do regime militar imposto ao Brasil em 1964 –, alguns questionamentos e imputações de uso indevido da Constituição
povoam os debates jurídicos e dos cidadãos em geral.
A redemocratização e a retomada plena de direitos políticos, lutas em torno das quais a sociedade civil se uniu, somente foram possíveis ao custo de muitas vidas. Talvez por
isso, o tema da preservação dos mandatos dos representantes eleitos seja tão sensível à população brasileira. Reaver, tomar de volta em suas mãos – ou na ponta dos dedos nas
urnas eletrônicas – o poder de escolher, de decidir quem governará a Nação foi certamente um dos mais – ao lado do fim do voto censitário e do voto feminino – importantes
eventos relacionados aos direitos políticos na história republicana nacional.
Entretanto, o breve caminho desta retomada não tem sido plano, não tem sido pacífico. Não tem sido constante, embora impregnado de legalidade.
Ao caminho de completarem-se três décadas da primeira eleição para presidente depois de vinte e um anos de ditadura, dos quatro Presidentes eleitos (Fernando Collor,
Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff), dois deles tiveram seus mandatos cassados, foram impedidos de concluírem o tempo que originalmente
lhes caberia, sofreram impeachment.
Se por um lado as medidas extremas podem apontar para uma dificuldade – para dizer o mínimo – de encontrar-se na política nacional um caminho de relação estreita e
correta no cumprimento das determinações constitucionais, por outro semeia na coletividade a desesperança quanto aos políticos e, em sentido oposto, a descrença quanto às
instâncias jurídicas e legislativas que “usurpam” mandatos que foram legitimamente dados pelo Povo.
A norma posta na Constituição Federal de 1988 para o crime de responsabilidade do Presidente da República será aqui analisada em seus aspectos técnicos, mas, em
paralelo, apresentando a justificativa histórica que conduziu ao modelo que tem causado dúvidas para uns e indignação para outros.

2. Brasil: do Império Português ao Império da constituição

Desde os primeiros anos da ocupação portuguesa em terras brasileiras até a declaração de sua Independência, o Brasil esteve sujeito a diversas modificações de status,
finalidade e importância, variando entre mera colônia de exploração, Vice-Reino e sede do Império. Contudo, foi a partir de 1822 que as principais alterações foram efetivadas e
passou-se a dar o tom do que ocorreria no século a seguir.
Inicialmente governado como uma monarquia de poderes absolutos, atento a reivindicações que lembravam a Revolução Francesa, D. Pedro I – com seu irmão D. Miguel, à
época príncipes – jurou a Constituição, evento que abriu caminho para que D. João VI também o fizesse. O ano era 1821 e uma importante transição se operava: a limitação dos
poderes monárquicos pela Constituição226. Apesar de a posterior partida de D. João VI em retorno a Portugal aplacasse as queixas da Corte, o cenário brasileiro não mudara aqui
como arrefecera inicialmente lá. Motivado por um decreto que determinava seu retorno imediato para Portugal, o que, caso consumado, afetaria a posição adquirida pelo Brasil, D.
Pedro I, em janeiro de 1822, anunciava sua permanência, contrariando determinações do Rei, seu pai.
O ápice do confronto finalmente ocorreu em setembro de 1822. Ainda pressionado pela Corte que ordenava seu retorno a Portugal, mas diante da fragilidade da situação
monárquica na Europa, D. Pedro I declarou a Independência do Brasil, conservando a monarquia e sendo declarado imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil227.
Fato relevante é que o novo imperador jurou obediência à constituição que seria elaborada pela futura Constituinte, ou seja, jurou estar limitado por uma Carta que ainda seria
elaborada, por uma “folha em branco”. Independente do movimento republicano presente na Europa, América do Norte e já na América do Sul, o Brasil apontava, naquela
ocasião, para a Constituição como seu principal elemento, como o fundamento da nova Nação.
Como monarquia ou república, a base da formação do Estado brasileiro passou a ser, reconhecidamente, a Constituição. Marco Antônio Villa, sobre a importância desta
transição, afirma que “a Assembleia Constituinte se transformou na fundadora da vida legal brasileira”228. Desde a Independência até a proclamação da República foram
formalmente promulgadas 7 constituições229.
Muito embora inaugurada uma nova época, desde a promulgação da Constituição de 1824 até 1826 o Congresso permaneceu fechado, voltando a funcionar apenas 4 meses
por ano a partir de então. O voto censitário refletia a democracia inconsistente. Por sua vez, o Poder Judiciário poderia suspender Juízes conforme previsto no artigo 154. A figura
do Poder Moderador exercida exclusivamente pelo imperador levou VILLA230 a afirmar que o Brasil nasceu como uma organização política antidemocrática, onde o poder
arbitrário era travestido de liberdades.
John Locke já tinha afirmado que “as coisas deste mundo mudam tão constantemente que nada fica muito tempo na mesma condição. Assim, as pessoas, as riquezas, o
comércio, o poder, mudam de lugar; cidades florescentes e poderosas caem na ruína e se tornam lugares pobres e desolados, cheios de riquezas e de
habitantes”231. A alternância observada no século XVII pelo filósofo inglês foi fielmente cumprida no Brasil do século XX. A proclamação da República trouxe consigo hábitos
arraigados que correspondiam à prática tipicamente oligarca, de favorecimento da corte, da nobreza e dos “amigos do Rei”. Não se tratava a coisa pública como de interesse
público, tendo em seu fim a manutenção de posições, influências e poder – financeiro ou político232.
O momento histórico que marcou a ascensão de Vargas ao poder deu-se no contexto da Crise de 1929, de repercussões econômicas internacionais, evento não muito distante
do fim da Primeira Grande Guerra, o que aguçou sentimentos nacionalistas e totalitários. Muito embora o Brasil já fosse um país com instâncias públicas criadas e relativamente
consolidadas – e aqui fala-se de instâncias de governo, poder de polícia e poderes republicanos – ainda havia uma certa restrição de alcance do poder público ao extenso território
brasileiro. Foi essa conjunção de eventos externos aliado, no campo doméstico ao declínio da economia cafeeira e consequente perda de poder da classe política tradicional, que
Vargas foi nomeado chefe do governo provisório em 1930 – ignorando resultado de eleições sobre a qual lançavam-se suspeitas de lisura –, culminando com o posterior golpe
nomeado Estado Novo.
Embora vigente nova Constituição desde 1934 que reafirmava a forma republicana e independência dos poderes (art. 3º), em 1937 Vargas cedeu à sedução ditatorial. No
mesmo ano anunciou mais uma Constituição que, ao argumento de agir “em nome do povo” e “no interesse do seu bem-estar”, previa no artigo 13 a possiblidade de, durante
recesso ou dissolução do Parlamento, autorizar o Presidente da República a promover alterações sobre matérias de competência legislativa, além de autorizá-lo a dissolver a
Câmara dos Deputados233. Havia, apesar da forma republicana, desrespeito à independência dos poderes na medida em que se permitia ao Executivo “poder acima do poder”
Legislativo. Curiosamente, enquanto no regime monárquico o imperador formalmente submeteu-se à Constituição, no regime republicano era a própria Carta Magna que permitia
ao Chefe do Executivo estar acima do regime que o legitimava. Não se tratava, portanto, de hipótese de dissolução do Parlamento por falta de consenso como ocorre na Inglaterra,
mas de atos típicos de um regime ditatorial.
Foi em tal contexto que naquele mesmo ano acabaram fechados a Câmara dos Deputados e Senado, reabertos somente em setembro de 1946 com a vinda de mais uma
Constituição. Curiosamente, foi no período de distanciamento dos ideais democráticos que foram geradas e implantadas importantes leis como o Código Penal e a Consolidação
das Leis Trabalhistas e a implantação do salário mínimo.
Após o restabelecimento do processo eleitoral, Gaspar Dutra (1946-1951), Vargas (1951-1954), Café Filho (1954-1955), JK (1956-1961), Jânio (1961), Jango (1961-64234),
ao que se sucedem 5 governos militares até novo restabelecimento parcial da democracia com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral em 1985. Entre o início do
regime militar que inaugurou em 1964 mais um período ditatorial em nossa história e seu término em 1985, foram editados 17 atos institucionais, concentrados entre abril de 1964
e outubro de 1969.
Já no ato institucional nº 1 a justificativa apresentada à Nação mais uma vez valia-se do revestimento formal constitucional para validar as exceções que a seguir viriam.
O novo governo provisório investiu-se de poder constituinte235 para dar sequência aos ideais do que os militares chamaram “a revolução vitoriosa”, reafirmado no ato
institucional nº 2236 que no artigo 31 voltava a permitir decretação de recesso das casas parlamentares por ato do Presidente da República, bem como o governo, neste período,
por decretos-leis.
O ato institucional nº 5, já sem disfarces, alegando que o presidente não poderia permitir que “pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhassem”, autoriza-o a
dissolver o congresso “em estado de sítio ou fora dele”, ampliando possibilidades e prazos de perda de direitos políticos.
Finalmente em 28 de junho de 1985 o presidente José Sarney enviou mensagem ao Congresso convocando Assembleia Constituinte, instalada em 1º de fevereiro de 1987.
Promulgada em 5 de outubro de 1988, a atual Constituição Federal do Brasil já é a segunda mais longeva, sendo superada somente pela de 1824. Nela estão reafirmadas a forma
de governo republicana237 e sistema de governo presidencialista238, embora houvesse previsão de plebiscito para escolha, pelo eleitorado, em data definida239.
Realizada a consulta, foram mantidos os modelos vigentes desde 1889, permanecendo o Brasil como uma República Federativa governada por sistemapresidencialista.
O traço comum a todos estes importantes recortes históricos é o anúncio de respeito e submissão à Constituição. Mesmo quando se fazia unicamente na forma, por vezes
promulgando-se, noutras decretando-se conteúdos que não ecoavam a voz manifestada pelo povo de seu tempo ou que ignoravam os próprios conceitos republicanos basilares a
fim de executar premissas que se entendiam necessárias, é possível afirmar que desde que D. João VI e D. Pedro I juraram a Constituição a ela se submetendo, o Brasil vive outra
era: o Império da Constituição.

3. Presidencialismo, Semipresidencialismo e Parlamentarismo: características distintivas

Não foram poucas as formas de governar praticadas desde que o Brasil alcançou sua independência. Monarquia Constitucional e República, Presidencialismo e
Parlamentarismo. De tudo já foi tentado. Para tratar do presidencialismo brasileiro e do crime de responsabilidade do presidente da república na Constituição Federal de 1988,
analisaremos as principais características de cada um dos sistemas de governo a fim de, comparando-os, ser possível identificar as soluções neles propostas para superação de
impasses políticos severos.
Em linhas gerais, caracterizam o sistema presidencialista a eleição do Executivo pelo povo, direta (caso brasileiro) ou indiretamente (caso americano), para um mandato
fixo, renovável ou não. Neste sistema o Presidente do Poder Executivo acumula funções de chefe de estado e chefe de governo, controlando a administração, tendo liberdade para
nomear seu ministério sem necessária aprovação do Parlamento. Sua destituição antes do término do mandato só ocorre nos casos previstos de impeachment.
Já no semipresidencialismo, apesar de Presidente e Parlamento serem eleitos por voto popular, cabe ao Presidente nomear um Primeiro-Ministro que exercerá a chefia do
governo e nomeará seu gabinete, que, contudo, dependerá da confiança da Assembleia. A principal distinção reside no fato de que no semipresidencialismo o Presidente, apesar de
não ser chefe de governo, dispor de mais poderes que no Parlamentarismo, inclusive para dissolver a assembleia.
Considera-se parlamentarista o sistema em que a legitimidade democrática e a autoridade do governo derivam da confiança ou da tolerância do parlamento. Na falta de
confiança o governo cai, devendo o Parlamento formar nova coalizão majoritária e novo gabinete. Persistindo o impasse, dissolve-se o próprio Parlamento e convocam-se novas
eleições. Apesar de aparentar fragilidade ao ponto de em qualquer impasse o governo estar exposto à substituição, na maioria dos casos isso só ocorre em votações com essa
finalidade específica, como moções de confiança ou de censura. No sistema parlamentarista, portanto, o chefe de governo depende sensivelmente de sua capacidade de formação e
manutenção de maioria parlamentar a fim de planejar e executar seu plano de governo. Alguns são os exemplos que melhor espelham os sistemas aqui apresentados240:
REINO UNIDO. O sistema funciona, teoricamente, com três centros de poder: a Coroa, o Gabinete e o Parlamento. A Câmara dos Comuns é eleita pelo voto majoritário
distrital para mandatos de 5 anos, sujeito à redução no caso de dissolução. O Governo depende da confiança da Câmara. Moções de confiança (Governo) ou censura (oposição)
podem ser propostas.
ALEMANHA. O sistema político é parlamentarista, com papel reduzido do chefe de estado, Presidente Federal eleito por um colégio eleitoral. Cabe à Câmara dos
Deputados (Bundestag) exigir a responsabilidade do governo, mediante a moção de censura ou a questão de confiança. O governo é formado a partir da indicação do Presidente
Federal ao Bundestag de um nome para Chanceler Federal. O Chanceler aprovado escolhe os demais ministros e responde pelos resultados do ministério. O Chanceler só assume,
portanto, com a confiança do Bundestag e se mantém enquanto essa confiança perdurar. A aprovação de uma moção de censura construtiva, suficiente para derrubar o governo,
exige apenas o apoio de um quarto dos deputados eleitos e a indicação de um governo alternativo viável.
FRANÇA. Considerada caso exemplar de sistemas mistos, sua característica principal é a dupla responsabilidade do Governo perante o Presidente e a Assembleia.
O Presidente pode nomear o Primeiro Ministro sem o aval da Assembleia, dissolvê-la e convocar referendo para revogar decisões da Assembleia. Entretanto, a Assembleia, em
razão de sua origem democrática no voto direto do eleitor, pode exigir a responsabilidade política do governo mediante apresentação de moção de censura, cujo sucesso redunda
na queda do Governo.
PORTUGAL. O sistema opera a partir de três centros de poder: o Presidente da República, a Assembleia e o Governo, todos sujeitos à arbitragem do Tribunal
Constitucional. O Presidente da República é eleito pelo voto direto, por um mandato de 5 anos, mais longo, portanto, que os mandatos de 4 anos dos deputados da Assembleia e
não pode ser por ela destituído. O governo indicado pelo Presidente da República tem 10 dias para apresentar seu programa de governo à Assembleia que, uma vez rejeitado leva à
demissão do governo. Aqui, fator fundamental é a ausência de desconfiança, não a existência de confiança.
Estas breves ilustrações tornam possível identificar a principal distinção entre os sistemas presidencialista, parlamentarista e semipresidencialista. Enquanto nos dois últimos
o apoio (ou simples falta de repúdio) do Parlamento são condições constitucionais para permanência do Governo, no primeiro, uma vez empossado o Presidente eleito, sua
manutenção se dará, em tese, independentemente da existência de sustentação do Congresso, interrompendo-se o mandato por renúncia, cassação ou morte.
Assim é porque o Presidente da República representa o povo na condução administrativa do país. O governante é a figura máxima do administrador da coisa pública.
Tamanha importância política na organização nacional tem seu preço: o Presidente da República é responsável por seus atos, pelas decisões tomadas em nome do seu povo, o que
o diferencia essencialmente do cargo real, vitalício.
É então de especial importância entender que no presidencialismo o Presidente da República pode perder o mandato por crimes que representem clara afronta à lei, mas
também por deixar de observar preceitos legais que a importância do seu cargo não pode relevar.
4. Extinção do mandato

O mandato eletivo do Presidente da República será extinto por renúncia ou falecimento Presidente da República. Diante de qualquer dessas ocorrências declara-se extinto o
mandato pelo Congresso Nacional. A hipótese de renúncia admite as modalidades expressa e presumida. A segunda241 fica caracterizada quando o Presidente da República
ausenta-se do país por um período superior a quinze dias, sem a autorização do Congresso Nacional.

5. Cassação do mandato

Já para cassação do mandato de Presidente da República a Constituição exige a instauração de um processo administrativo ou judicial, podendo ser condenado pela prática
de crime de responsabilidade ou pela prática de um crime comum. A admissão da denúncia é analisada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, de cuja decisão não cabe
recurso242.
Deixaremos as primeiras hipóteses de lado neste momento, dando atenção à perda de mandado pelo Presidente da República na Constituição brasileira por de crime
de responsabilidade.

6. Crime de responsabilidade do Presidente da República: solução parlamentarista no regime presidencialista brasileiro

Como visto, o presidencialismo no Brasil não tem uma sequência linear. Iniciado por um golpe militar que instalou o republicanismo, não é possível afirmar que a maior
característica histórica dos seus quase 130 anos é o viés democrático. Seja pelas leis que restringiam a cidadania ativa (direito de votar) na Primeira República (voto censitário,
vedação do voto feminino e de analfabetos), seja pela falta de eleições diretas ou indiretas, tem havido consenso em afirmar que vivemos atualmente o maior período de afirmação
da cidadania tanto no que tange à aquisição direitos sociais quanto políticos.
É verdade que todo universo político tem sido largamente rejeitado pela população, o que pode ser observado nas seguidas altas de abstenção medidas pelo Tribunal Superior
Eleitoral243. Porém, a abstenção, os votos brancos ou nulos representam parte intrínseca do direito político ativo e somente podem existir num cenário de
consolidação democrática.
Todavia, desde o Império português, passando por breve período do governo Jango, até os debates que povoaram os bastidores das negociações da Constituição de 1988, a
bandeira parlamentarista esteve presente na política brasileira, sendo possível observar sua influência na atual Carta Magna, justamente no ponto que melhor lhe define: a
constância do chefe de governo e as formas de sua substituição.
Conforme observado na comparação com outros sistemas de governo, o presidencialismo é o único no qual o mandado do chefe de governo (mas também de estado) não é
diretamente ameaçado pela falta de apoio parlamentar. Enquanto no parlamentarismo e no semipresidencialismo moções de censura podem ser fatais ao governante, a dinâmica
pura do presidencialismo afasta tal possibilidade.
Tamanha segurança não está garantida em absoluto, estando prescritas condições de cassação de mandato que resultam de sanção aplicada em decorrência da prática de
ilícitos ou crime de responsabilidade.
Eis que se pergunta: é possível afirmar categoricamente que no presidencialismo brasileiro nenhum Presidente da República será impedido, terá seu mandato cassado por
ausência de confiança do Parlamento? Não é isso que se pode concluir na leitura do artigo 85 da Constituição Federal. A Carta Suprema estabeleceque:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra
I – a existência da União;
II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV – a segurança interna do País;
V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

O STF, enfrentando o desafio de manifestar-se acerca de tema tão sensível e de enorme repercussão, encontrou no voto da Ministra Carmen Lúcia medida de cautela que
assim ficou definida: “A definição das condutas típicas configuradoras do crime de responsabilidade e o estabelecimento de regras que disciplinem o processo e julgamento das
agentes políticos federais, estaduais ou municipais envolvidos são da competência legislativa privativa da União e devem ser tratados em lei nacional especial (art. 85 da
CR)”244.
“São crimes de responsabilidade”. Veja-se que a importância e sensibilidade do tema são tamanhas que resguardou-se exclusivamente à União a definição de condutas
típicas. A regra está disposta na Lei 1.079/50, recepcionada pela CF/88, conclusão também vinda da Suprema Corte:

No regime da Carta de 1988, a Câmara dos Deputados, diante da denúncia oferecida contra o presidente da República, examina a admissibilidade da acusação (CF,
art.86, caput), podendo, portanto, rejeitar a denúncia oferecida na forma do art. 14 da Lei 1.079/1950. No procedimento de admissibilidade da denúncia, a Câmara dos
Deputados profere juízo político. Deve ser concedido ao acusado prazo para defesa, defesa que decorre do princípio inscrito no art. 5º, LV, da Constituição,
observadas, entretanto, as limitações do fato de a acusação somente materializar-se com a instauração do processo, no Senado. Neste, é que a denúncia será recebida,
ou não, dado que, na Câmara ocorre, apenas, a admissibilidade da acusação, a partir da edição de um juízo político, em que a Câmara verificará se a acusação é
consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a notícia do fato reprovável tem razoável procedência, não sendo a acusação simplesmente
fruto de quizílias ou desavenças políticas. Por isso, será na esfera institucional do Senado, que processa e julga o presidente da República, nos crimes de
responsabilidade, que este poderá promover as indagações probatórias admissíveis. Recepção, pela CF/1988, da norma inscrita no art. 23 da Lei 1.079/1950245.

O voto do Ministro Carlos Velloso destacou dois momentos distintos e igualmente importantes: a Câmara faz juízo político; o Senado enfrenta a questão técnica. Os motivos
desta separação e diferença de essência devem ser buscados na própria formação do estado republicano, cuja citação a seguir tentará bemexemplificar:

o filósofo genebrino [Rousseau] desenvolve o seguinte argumento: quando um grupo de indivíduos resolve sair do estado de natureza e constituir uma comunidade
política à parte, no mesmo ato em que a formam tem se surgir uma vontade unificada, que é a soma de todas as vontades individuais – isto é, o que há de comum em
todas elas –, e uma forma de poder correspondente. Essa vontade comum é o artefato, a pessoa artificial que o contrato cria, cuja existência e força só se mantêm
indivisíveis na mesma medida em que a vontade permanecer assim – como vontade geral. O soberano, com seu atributo da indivisibilidade, apenas faz sentido como
vontade geral, e não há ouro modo de a vontade geral se manifestar senão na forma da lei. Assim, o poder soberano se resume a uma única instância: o Poder
Legislativo246.

O mandato do soberano só existe enquanto existir o “artefato que o contrato [social] cria”, a vontade geral. Se é a vontade geral que institui o soberano, somente a mesma
vontade pode destituí-lo. Qual a instância da soberania popular na democracia representativa? O Poder Legislativo. Portanto, tanto pela lógica da democracia representativa quanto
pela separação de poderes na república, o poder soberano será exercido pelo Legislativo nas condições definidas pelo acordo constitucional que cada país fizer. A Constituição
brasileira, pelo artigo 86, entrega esta tarefa [análise política] à Câmara dos Deputados, aos representantes dopovo.
Cícero Romão Resende de Araujo, citando Políbio, recorda que “só o povo, em suas assembleias públicas, tem o poder de conferir honras públicas e infligir punições, além
de aprovar e rejeitas leis e deliberar sobre a guerra e a paz”247.

7. Qual honraria maior do que ser indicado como o maior representante de um Estado?

O poder pertence ao povo, emana do povo e é exercido em nome do povo. Nessa afirmação tão antiga quanto as mais antigas teorias de organização social, reside a
justificativa para que imponha-se limites políticos ao exercício do mandato nos sistemas de governo, permitindo que determinada sociedade não fique sujeita a um governante
imprudente que, contudo, não cometa crimes comuns248.

Peter Burke observa que Luís XIV foi lembrado exatamente disso por Bossuet, o que não deixa de matizar a célebre sentença em que o rei identificava sua pessoa com
o Estado: “No entanto, representar o Estado não é o mesmo que ser identificado com ele. Bossuet lembrou ao rei que ele morreria, ao passo que seu Estado deveria
serimortal.
O que, portanto, a figura do soberano captura, e tem de capturar é essa permanência, essa pretensão de incorruptibilidade, que se traduz nas ideias da máscara e do
retrato: o “soberano-representante” é a expressão de um self – o Nós da comunidade política – vocacionado a transcender sua aparência presente, o qual pode
perfeitamente variar ao longo do tempo, sem que o outro tenha que sofrer a mesma variação. Isso é o Estado249.

O soberano não é o Estado. A representação política deve se distanciar de uma interpretação excessivamente pessoal-carismática do soberano. O governante é passageiro, o
Estado permanece. A transitoriedade do governante se mostra tanto dentro do período de seu mandato quanto na possibilidade de uma prematura cassação, quando ultrapassados
alguns limites, quando quebrado o vínculo de confiança.
Analisar o texto do artigo 85 da Constituição Federal brasileira significa reconhecer a opção da Assembleia Constituinte, ou seja, do povo que a seu tempo e valendo-se da
vontade geral então existente, no sentido de enquadrar como condutas caracterizadoras de crime de responsabilidade próprias do Presidente da República atos abstratos, pouco
concretos. São “atos típicos” que podem ser interpretados não pela técnica, mas pela vontade, tamanha sua amplitude250.
São crimes de responsabilidade os atos que atentem (a) contra a Constituição Federal (caput); (b) contra a existência da União (inciso I); (c) o livre exercício do Poder
Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação (inciso II); (d) o exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais (inciso III); (e) a segurança interna do País (inciso IV); (f) a probidade na administração (inciso V); (g) a lei orçamentária (inciso VI); (h) o cumprimento das leis e das
decisões judiciais (inciso VII).
Das oito possibilidades previstas no artigo 85, talvez as duas últimas sejam mais palpáveis no sentido de representar atitudes identificáveis com maior clareza. No mais,
atentar contra a Constituição, contra a existência da União, contra os Poderes, contra a cidadania (direitos civis, políticos e sociais), contra a segurança interna, a lei orçamentária...
Embora a lei 1.079/50 apresente rol configurativo de cada uma destas hipóteses, a real imputação pode se dar por nada, ou por tudo. Depende do Congresso.
Em dependendo do Congresso, sendo a decisão política, a avaliação da denúncia pelo Presidente da Câmara poderá ser vista com maior ou menor rigor, preciosismo ou
tendência interpretativa conforme for melhor ou pior a relação do Chefe do Executivo com o Chefe do Legislativo. Repita-se: entregar poder tão grande ao Congresso foi opção
constitucional registrada por Assembleia constituinte, decorrente do poder originário do povo. Como questionar sua inteiralegalidade?
O maior questionamento que se faz acerca do julgamento do crime de responsabilidade pelo Parlamento toca o fato de uma análise técnica ser feita por um corpo atécnico.
Se há acusação de crime, cuja conduta precisa estar devidamente comprovada a fim de ser imputável ao agente, de cuja eventual tipificação se imporá uma sanção, nada mais
natural que imaginar que a solução adequada deveria ser o julgamento pelo Poder Judiciário, qualificado para a tarefa.
A complexidade do julgamento de uma conduta pela análise da própria norma é função que mesmo para os juristas apresenta-se como imenso desafio e levou Humberto
Ávila a dedicar estudo exclusivo sobre interpretação de normas jurídicas. Para ele, “normas não são os textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da
interpretação sistemática de textos normativos”251, não estando o significado incorporado ao conteúdo das palavras, dependendo “precisamente de seu uso e interpretação, como
comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual sentido mais adequado se deve atribuir a um texto
legal”.
Sendo certo que a interpretação não se caracteriza em mera descrição de um significado previamente dado, “também não é plausível aceitar a ideia de que a aplicação do
Direito envolve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo do processo de aplicação”252.
Se o ato de julgar uma conduta e avaliar o conteúdo normativo permite diversas interpretações dentro de um mesmo Tribunal, podendo variar conforme a avaliação de cada
julgador e ser modificada ao longo do tempo, muitíssimo mais espinhosa e impossível de consenso se mostraria ao ser praticada por uma Casa (Parlamentar) composta de
“julgadores” que não possuem preparo jurídico.
Aparentemente, não é rigor técnico que se exige do Parlamento que, representando o povo soberano, é investido constitucionalmente do poder de cassar mandato do
Presidente da República ao analisar a tipicidade do crime de responsabilidade. O que se entrega ao Parlamento é uma avaliação política a um órgão político. É uma solução justa?

o problema sobre se uma norma é justa ou não é um aspecto de contraste entre mundo real e mundo ideal, entre o dever ser e o ser; norma justa é aquela que deve ser;
norma injusta que não deve ser. Pensar sobre o problema da justiça ou não de uma norma equivale a pensar sobre o problema da correspondência entre o que é real e o
que é ideal253.

Norberto Bobbio, em análise franca, diz que nem tudo trata de justiça ou injustiça, de ser ou dever ser, mas de traçar a melhor correspondência entre o que é ideal e o que é
real. Muitas vezes, obcecados pelo ideal, deixamos de realizar o possível; obcecados pelo ótimo, abandonamos o bom.
Conjugar a avaliação de uma conduta supostamente antijurídica a um corpo político foi solução de viés parlamentarista num sistema parlamentarista.
Essa é uma dinâmica que certamente confere ao presidencialismo brasileiro toques de parlamentarismo (ou semipresidencialismo). Basta a falta de apoio, basta a quebra da
relação com o Legislativo, em especial com a Presidência da Câmara para que uma denúncia seja admitida. Espelhando-se a falta de sustentação no Plenário da Câmara de
Deputados, estará consumada a sorte e provavelmente encerrado prematuramente o mandato presidencial.
É o equivalente presidencialista mais próximo à negativa do “voto de confiança” ao Governo nos sistemas acima mencionados.

8. A presença do parlamentarismo no debate brasileiro

Como esta solução aparentemente descontextualizada foi implantada e permaneceu na Constituição brasileira? Algumas sugestões podem ser apresentadas, apesar de
representarem meros indicativos.
O texto constitucional de 1988 trouxe disposições transitórias (ADCT, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), que por sua natureza seriam de aplicação única, e
por isso não permanentes. Dentre elas, o artigo 2º estabelecia que no dia 7 de setembro de 1993 seria realizado plebiscito para que o eleitorado definisse a forma e sistema pelo
qual seriam governados, dívida que pendia desde o Decreto nº 1 do governo que proclamou a República. Passaram-se mais de 100 anos até o cumprimento da promessa.
Excetuando o período monárquico, o parlamentarismo por algumas ocasiões históricas apresentou-se como resposta à falência do presidencialismo no Brasil. A primeira
experiência republicana deu-se em com João Goulart Presidente da República em sucessão por renúncia de Jânio Quadros, tendo em Tancredo Neves seu Primeiro-Ministro.
A instabilidade política e incapacidade de solução de crises criou um impasse institucional de tamanha envergadura que transbordou em mais um golpe militar (1964). A regra foi
o conflito entre Executivo e Legislativo.
A Carta de 1988, fruto histórico de longo período de restrições aos direitos políticos, fundou-se no pluralismo político-partidário como resposta democrática que definiria o
presidencialismo até então vigente. Todavia, talvez exatamente a prolongada abstenção imposta aos partidos tenha-lhes retirado parte essencial das características que poderiam
fazê-los únicos. Mais agravante, à reabertura democrática sucederam-se divisões, fundações, refundações e fusões de partidos, sempre a fim de acomodar as forças políticas que
enfim podiam se expressar e participar do jogo de poder.
As restrições políticas forjaram uma geração de diversas lideranças que, na reabertura democrática, participaram da Constituinte entre 1987 e 1988, muitas delas concorrendo
nas eleições presidenciais de 1989.
A maioria destes políticos era favorável à implantação do parlamentarismo no Brasil, o que chegou a ser proposto e acordado entre a Comissão de Sistematização e estas
principais lideranças, aí incluindo o então Presidente da República José Sarney254 e o Presidente do Congresso Ulysses Guimarães a redução do mandato de Sarney para quatro
anos em troca da implantação do parlamentarismo como sistema de governo na vindoura Constituição.
Sarney chegou a afirmar que “o mandato não era meu, era do PMDB, e, portanto, do Tancredo”255. Por que de Tancredo? Porque era ele o líder do partido até sua morte.
E no Parlamentarismo a regra mais comum é que o Primeiro-Ministro será o líder do partido com maioria nas eleições parlamentares. Analisando a Carta de 1988 Sarney também
afirma que “é uma constituição híbrida. Ora achavam que era parlamentarista, ora presidencialista, então ficou dessa maneira”.
Em relatos publicados em 2017, muitos dos que participaram das negociações e elaboração do texto constitucional trataram abertamente da proposta parlamentarista e a
influência que o debate deve na redação final da Constituição em vigor.
Euclides Scalco, então líder do PMDB em substituição a Mario Covas relata ter viajado a São Paulo para apresentar o acordo costurado, ao fim negado por Covas por “não
confiar em Sarney”. Scalco era favorável, Ulysses e FHC eram favoráveis, FHC. Nelson Jobim era favorável e considerava a implantação do parlamentarismo como redesenho
que alterava o sistema eleitoral e mudava toda a estrutura política.
O cenário era parlamentarista. A vontade dos principais políticos era parlamentarista, o que apenas fracassou por impasse de negociação, por desconfiança. Este debate, esta
vontade, certamente não passariam a largo do resultado lançado no texto constitucional final. Consciente ou inconscientemente, de alcance medido ou com consequências que
superaram a projeção original, entregou-se ao País uma relação de forças entre Poderes que, embora republicana, não é puramente presidencialista, permitindo ao Congresso
(primeiro em seu Presidente e por último no plenário) avaliar a continuidade ou interrupção de um mandato Presidente da República outorgado pelo sufrágio popular. Mas como
visto, o mandato do Parlamento também é popular e representa, ele e não outro, o próprio povo, o soberano.
Concordado ou discordando, é a solução brasileira. É a solução constitucional. É a prevalência da constituição sobre os governantes, monarcas ou presidentes. É a vontade
geral. E assim permanecerá enquanto a vontade se mantiver ou, cessando, for convocada nova constituinte para que um novo texto com uma nova solução apresente outra resposta
mais adequada a um novo tempo, uma população com novas ideias, novos clamores.
Tamanha fluidez, tamanha hibridez produziu um padrão de relacionamento que reconhece a importância do relacionamento entre Poder Executivo e Poder Legislativo, mas
que, contudo, é fundado na negociação individual com cada parlamentar, dono cada um de um voto, voto que poderá ser decisivo em eventual momento de instabilidade ou baixa
de popularidade, de pressão popular, da opinião pública ou simplesmente de outros políticos. A solução constitucional brasileira forjou uma possibilidade de saída que depende
mais da política que da técnica jurídica. Esta característica, que perdura ainda em 2017, levou a negociações individuais nem sempre licitas, nem sempre republicanas e ficou
conhecida como “presidencialismo de coalizão” (ou “de cooptação”, conforme o humor do analista).
REFERÊNCIA

ARAÚJO, C. R. R. de. A forma da República: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013.

______. Revisitando o debate entre os sistemas de governo. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas; CONLEG; Senado, set. 2016. (Texto para Discussão n.210). Disponível
em: <www.senado.leg.br/estudos>.

ÁVILA, H. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016.

BOBBIO, N. Teoria da norma jurídica. 6. ed. São Paulo: Edipro, 2016.

CARVALHO, L. M. 1988: segredos da constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.

DEL PRIORE, M. A Carne e o Sangue. A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos. Rio de Janeiro: ROCCO, 2012.

LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo. Ensaio acerca do entendimento humano. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

VILLA, M. A. A História das Constituições Brasileira – 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: LEYA, 2011.

Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes>.

Notas de Rodapé
224 Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/07/05/recurso-especial-no-stj-pode-passar-a-ter-requisitos-de-admissibilidade>. Acesso
em: 2 out. 2017.
225 Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Advogado.
226 DEL PRIORE, Mary. A Carne e o Sangue. p. 54-55.
227 DEL PRIORE, Mary. A Carne e o Sangue. p. 90.
228 VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições Brasileira – 200 anos de luta contra o arbítrio.
229 Havendo quem também considere como Constituição a Emenda Constitucional nº I de 1969.
230 A História das Constituições Brasileira – 200 anos de luta contra o arbítrio.
231 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo In: CARTA acerca tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano.
2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 105.
232 O Decreto nº 1 do governo provisório que proclamou a República, estabelecia “como forma de governo da nação brasileira a República Federativa”, decisão
que seria levada a confirmação pelo sufrágio popular. Contudo, a decisão provisória somente foi levada a consulta em 1993.
233 Art. 75, alínea “b” e art. 167, parágrafo único
234 Posse: em 08.09.1961, em sessão conjunta do Congresso Nacional, presidida pelo Senador Auro Moura Andrade, toma efetivamente posse na Presidência
da República. Na mesma sessão, toma posse o Primeiro Gabinete Parlamentarista presidido por Tancredo Neves * Afastamento: 02.04 a 11.04.1962, por
motivo de viagem, período em que o Presidente da Câmara dos Deputados exerceu a Presidência da República. Disponível em:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes>.
235 “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”.
236 “A revolução investe-se, por isso, no exercício do Poder Constituinte, legitimando-se por si”.
237 Art. 1º e art. 2º da CFB/88.
238 Art. 76 da CFB/88.
239 ADCT, Art. 2º.
240 ARAÚJO, C. E. P. de. Revisitando o debate entre os sistemas de governo. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas; CONLEG; Senado, set. 2016. (Texto
para Discussão nº 210). Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. Acesso em: 14 set. 2016.
241 Art. 83 da CFB/88.
242 Impeachment do presidente da República: apresentação da denúncia à Câmara dos Deputados: competência do presidente desta para o exame liminar da
idoneidade da denúncia popular, “que não se reduz à verificação das formalidades extrínsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se
pode estender [...] à rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao controle do Plenário da Casa,
mediante recurso [...]”. MS 20.941-DF, Sepúlveda Pertence, DJ de 31-8-1992. (MS 23.885, rel. min. Carlos Velloso, j. 28-8-2002, P, DJ de 20-9-2002.
Vide MS 30.672 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 15-9-2011, P, DJEde 18-10-2011).
243 Eleições de 2016, 1º turno: Capitais:
SP: 8.876.324 aptos a votar/1.940.454 abstenções/ 367.471 votos brancos /788.379 votos nulos.
RJ: 4.898.045 aptos a votar/1.189.187 abstenções/204.110 votos brancos/473.324 votos nulos.
Salvador: 1.534.231 aptos a votar/413.960 abstenções/48.615 votos brancos/158.087 votos nulos.
Belo Horizonte: 1.927.460 aptos a votar/417.537 abstenções/108.745 votos brancos/215.633 votos nulos.
Fonte: www.tse.gov.br
244 ADI 2.220, rel. min. Cármen Lúcia, j. 16-11-2011, P, DJE de 7-12-2011.
245 [MS 21.564, rel. p/ o ac. min. Carlos Velloso, j. 23-9-1992, P, DJ de 27-8-1993.]
246 ARAUJO, Cícero Romão Resende de. A forma da República: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013. p. 224-225.
247 ARAUJO, Cícero Romão Resende de. A forma da República: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013. p. 18.
248 “Os gregos entendiam por politéia não só a distribuição de competências e poderes entre os diversos órgãos da cidade, mas também o ethos, os costumes e
o modo de vida da comunidade por ela organizada.” “Ao combinar esses diferentes elementos no conceito de uma constituição, Aristóteles acompanha o
uso grego. Os gregos não tinham uma distinção clara, como nós temos, entre o legal e o ético” (ARAUJO, Cícero Romão Resende de. A forma da
República: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013. p. 39).
249 ARAUJO, Cícero Romão Resende de. A forma da República: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013. p. 215.
250 Nelson Jobim, então Ministro de Estado em 2003 também foi objeto de pedido de impeachment requerido pelos juristas Fábio Comparato, Celso Antunes e
diversos outros, ao fim indeferido e arquivado por José Sarney, à época presidente do Senado. Fonte: CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da
constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 197.
251 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 50.
252 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 52.
253 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 6. ed. São Paulo: Edipro, 2016. p. 46.
254 “José Richa volta para a casa do dr. Ulysses com uma proposta do Sarney: ele aceitava o parlamentarismo, com mandado de cinco anos, sob a condição de
indicar o primeiro-ministro, que escolheria os demais, e teria estabilidade por um ano. Ou seja: nesse período não poderia ter voto de desconfiança desse
primeiro gabinete” (CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro :
Record, 2017).
255 CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro : Record, 2017. p. 47.
256 Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Especialista em Direito Processual Penal por essa instituição de ensino, bem como em
Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie/SP. Assistente Judiciário lotada na Presidência do 8º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professora
Universitária. E-mail: [email protected]
12. BREVE ANÁLISE SOBRE O ABUSO DO PODER ECONÔMICO POR PROVEDORES DE INTERNET E A CONTENÇÃO
PELO ESTADO

Gisele Porto Barros256

1. Introdução

Criada na década de 1960, a Internet tornou-se popular entre as de 80 e 90 quando o respectivo custo passou a ser acessível à população em massa. Os efeitos dessa
ferramenta tecnológica são instigantes e surpreendentes. Ela possibilitou maior aproximação entre as pessoas, encurtando distâncias e derrubando barreiras, além de criar novos
padrões e definir diferentes valores de comportamento e atitude.
Atividades corriqueiras do dia a dia são realizadas por meio da Internet. A conexão em rede é realidade imprescindível à comunicação e ao exercício da cidadania pela
popularização da liberdade de expressão e pelo acesso à informação.
Contudo, decorre do uso desenfreado dessa ferramenta global, entre outros problemas, a desvirtuação da neutralidade da rede com vistas à repercussão econômica própria
para a garantia do sigilo de dados como facilitador ao cometimento de crimes, os quais, por sinal, a envolver nova conceituação de territorialidade para a definição do alcance
da norma.
Fruto do aprimoramento das relações sociais e dos avanços tecnológicos de informação e comunicação, a Internet surge como meio propício à prática de algo talvez
endêmico à raça humana, a perpetração de ilícitos. A imersão dos indivíduos no meio digital propicia riscos cada vez maiores e mais complexos na órbita dos direitos da
personalidade e da liberdade individual, entre outros. Dito de outro modo, o crescimento do número de tratativas realizadas pelo ambiente eletrônico dá azo à evolução de
infrações cibernéticas, sendo possível dizer que há maior controle sobre informações e dados pessoais no mundo real do que novirtual.
Desse modo, à luz da nova legislação brasileira reguladora da rede mundial de computadores (Lei 12.965/2014 – Marco Civil da Internet), tem-se por objetivo apontar a
responsabilidade dos provedores na guarda de dados pessoais e registros eletrônicos, incumbência essa que, presentes os interesses em jogo (de âmbito não só individual, mas
também público), devem prevalecer sobre pretensões meramente econômicas.
A atuação e a consequente ingerência estatal na economia será, portanto, justificada quando estiver caracterizado abuso do poder econômico pelos provedores de Internet.

2. Proteção constitucional e infraconstitucional à privacidade, à vida privada e à intimidade257

O artigo 5º da Constituição Federal de 1998 estabelece, por meio dos incisos X, XII e LXXII, serem direitos e garantias fundamentais a privacidade, a intimidade e o sigilo
de dados e comunicação.
A interpretação dessas previsões constitucionais em conjunto à redação dos 32 artigos da Lei 12.965/2014 aponta para a privacidade (em sentido amplo), a neutralidade e a
liberdade de expressão na rede mundial de computadores como fundamentais ao exercício da cidadania. É que o uso das “infovias” abrange basicamente todas as atividades
realizadas em sociedade.
Delosmar Mendonça Junior aponta ser a privacidade princípio fundamental ao correto uso da Internet, certo que dela decorrem a inviolabilidade e o sigilo do fluxo de
comunicações pela rede, bem como a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações próprias258.
De fato, a Lei do Marco Civil da Internet (12.965/2014) prevê, no respectivo artigo 3º, que o uso dessa ferramenta no Brasil deve pautar-se pelos princípios da garantia da
liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, bem ainda pela proteção da privacidade. Do teor do artigo 7º dessa norma depreende-se, ademais, que,
“agora, de forma eficaz, os dados armazenados são objeto de salvaguarda direta dos direitos da personalidade e, sobremaneira da tutela constitucional à vida privada”259.
Vale consignar, porém, que “privacidade” e “intimidade” são conceitos análogos, mas não sinônimos. A propósito, citando Hannah Arendt, Célia Leite Costaexplica:

A esfera da intimidade, diz Hannah Arendt, é regida pelo princípio da exclusividade. Esse princípio não se confunde com o da diferenciação, que marca a diferença
entre os indivíduos, própria da esfera privada, e que se opõe ao público enquanto espaço do coletivo. A intimidade é a esfera que comanda as escolhas, pessoais e que
não segue nenhum padrão objetivo. É exatamente a intimidade enquanto esfera do exclusivo que a autora sugere como limite ao direito à informação, através da
ponderação de que o que constitui a vida íntima das pessoas não é de interesse público. A intimidade não exige publicidade, porque não envolve direito de terceiros.
Epor ser exclusiva, sente-se lesada quando é divulgada ou invadida sem autorização260.

A esfera íntima, portanto, é mais restrita que a privada. Ao passo que a primeira deve ser fortemente preservada, a segunda consubstancia cláusula genérica de proteção
jurídica, podendo ser obtemperada. Inviolável, de fato, é a intimidade, não a privacidade.
Desse modo, tem-se que o vocábulo “privacidade” é polissêmico e suas variantes podem ser limitadas quando elas se contrapõem a direitos fundamentais outros.
Sob igual lógica, o direito à inviolabilidade do sigilo deve ser sopesado e analisado conforme interesses individuais, da sociedade e do Estado. Ou seja, dever-se-á, no caso
em concreto, confrontar os direitos em jogo (privacidade em sentido lato e inviolabilidade do sigilo X interesses individuais específicos e interesse público), balizando-os à luz do
princípio da proporcionalidade.
Para Marco Aurélio Florêncio Filho, no choque entre o princípio da liberdade de expressão e violação ao direito alheio e o da privacidade da informação deverá ser aplicado
o postulado da proporcionalidade, haja vista ser este consentâneo aos ditames do Estado Democrático de Direito261.
Aliás,

Na medida em que cabe ao Estado não só garantir a não interferência por parte dos poderes públicos na esfera da intimidade e da vida privada dos cidadãos, como
também que os demais particulares não violarão tal preceito fundamental, o direito à privacidade configura-se como direito de proteção. Uma vez identificada grave
ameaça à privacidade dos cidadãos, seja em decorrência de atos da iniciativa privada ou de outros Estados, deve haver intervenção estatal262.

O poder público pode, por meio da edição de normas, dar eficácia aos direitos fundamentais de intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assim como
estabelecer que o sigilo de informações inerentes a tais valores possa, excepcionalmente, admitir quebra em atenção ao interesse público263.
Deve-se, pois, superar a ideia de que “a proteção da pessoa e da propriedade é um princípio tão antigo quanto o próprio ‘common law’”264 e, assim, mitigar a derivada
garantia à privacidade (em sentido amplo) quando esta contrastar com direitos fundamentais outros (balanceamento conforme o caso concreto) ou com o interesse público.
Dessa forma, explica Gianpaolo Poggio Smanio que “a proteção constitucional dos dados e da intimidade do indivíduo vem sendo assegurada pela jurisprudência dos
Tribunais dentro da proteção do interesse público e social”265.
Portanto, a privacidade e a vedação à quebra de sigilo, conquanto consubstanciem direito e garantia individuais, não podem ser consideradas absolutas e nem tampouco
constituir salvaguarda para práticas ilícitas.

3. A responsabilidade dos provedores de internet

Conceituados por Marcel Leonardi como “pessoa natural ou jurídica que fornece serviços relacionados ao funcionamento da Internet, ou por meio dela”266os provedores
de Internet são, em síntese, os intermediários entre o internauta e o meio digital. Viabilizam, de modo direto ou indireto, meios hábeis a manter os usuários conectados à rede
mundial de computadores.
Atuam os provedores, ainda, como centros “de controle capazes de coordenar, inovar e gerenciar as atividades interligadas das redes de empresas”267.
Malgrado os provedores possam prestar serviços de modo não oneroso, a gratuidade que dessa relação emerge é apenas aparente, posto que a publicidade veiculada na
Internet propicia remuneração indireta, bem como o acesso a dados, informações e perfis.
Michal S. Gal e Daniel L. Rubinfeld afirmam, a propósito, que

Firms offer free goods for a variety of economic reasons. Thus, the offer of free goods might be a means of increasing revenues in product markets (e.g., introducing
free products to grow consumer demand in network markets). Alternatively, the offer of free experience goods may be an effective means of growing demand for a
product whose value is only appreciated after it has been consumed. Indeed, an increasingly common marketing strategy is to offer a basic product for free, and charge
for its premium versions or added features (“freemium” examples include Linkedin Business, Adobe, and Spotify). Furthermore, zero pricing may be motivated by the
goal of increasing revenues in markets for complementary products that operate in more lucrative markets (e.g., service-based revenue models). Finally, free products
are often used in multi-sided platform markets which take advantage of cross network effects (e.g., free newspapers which increase attention to ads, free internet search
services in return for personal information). Of course, a business strategy may combine several of these motivations268.
Registros eletrônicos e hábitos de navegação podem fornecer aos provedores elementos para criação de perfis de usuários, conferindo-lhes vantagens para atuação no
mercado. Essa estratégia pode ser denominada “profiling” e a composição desse universo de dados é conhecida como “Big Data”.
Melhor explicação a respeito de vantagens da espécie é trazida por Sérgio G. Lazzarini:

É razoável supor que, quanto mais acesso tiver um determinado proprietário a outros atores na economia, maior será a sua capacidade de mobilizar recursos e
influenciar decisões. Mais facilmente esse proprietário terá informações em primeira mão sobre oportunidades que surgem no mercado [...] e mais intensamente será
procurado por indivíduos que querem se valer dos seus contatos. Sendo alguns proprietários mais conectados que outros, muito provavelmente haverá desigualdade de
influência na economia. Os mais conectados tenderão a ser os mais influentes; os mais influentes tenderão a exibir mais contatos valiosos269.

A coleta de dados pessoais dos usuários é praxe e, até certo ponto, necessária para a manutenção do modelo de negócios que fomenta a Internet. Sem embargo, ao Direito
incumbe estabelecer normas e diretrizes para a minimização de eventuais efeitos nocivos que dessa prática possam decorrer.
Nesse passo, a Lei 12.965/2014 assegura aos usuários da rede princípios e direitos que, uma vez violados, poderão ensejar responsabilização dos provedores, haja vista a
essencialidade da “infovia” para o exercício da cidadania. Entre o mais, é vedado a eles, provedores, o fornecimento a terceiros de dados pessoais, registros de conexão e de acesso
a aplicações, salvo se houver consentimento livre do usuário ou na hipótese de ordem judicial.
Desse modo, o Poder Judiciário poderá determinar a quebra de sigilo, por exemplo, se necessário for para a apuração e a identificação de autores de delitos cibernéticos.
Em suma, dois são os tipos de responsabilidade de guarda de dados e registros na Internet atribuíveis a provedores. Aos denominados “provedores de conexão”270 incumbe
armazenar os registros de conexão (com base no IP – internet protocol –, código numérico conferido ao terminal que representa sua identificação e permite o acesso à rede) pelo
prazo de um (1) ano271. Já os “provedores de aplicações”272, notadamente quando no regime de guarda obrigatória273(haja vista o interesse econômico que lhes é próprio),
devem manter os registros de acesso às correspondentes aplicações sob sigilo e em segurança, em princípio, por seis (6) meses274.
A fim de coibir que empresas prestadoras de serviços ao público brasileiro localizadas no exterior se furtem a cumprir tais exigências, o artigo 11, parágrafo 2º, da Lei do
Marco Civil da Internet prevê responsabilização correspondente, bastando comprovação da oferta do serviço a brasileiros ou que “pelo menos uma integrante do mesmo grupo
econômico possua estabelecimento no Brasil”. A pessoa jurídica estrangeira, ademais, responderá solidariamente com a respectiva filial, sucursal, escritório ou estabelecimento
situado no Brasil pelo pagamento de multa, se o caso (artigo 12, parágrafo único, dessa norma).
Para Delosmar Mendonça Junior,

Os registros entram no processo na categoria de prova documental. As informações prestadas pelo responsável pela guarda são documentos que integram o acervo
probatório do processo. Se a noção de documento passa pelo registro de fatos, o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à
internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados, bem como o conjunto de informações referentes à data e
hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP, são fatos registrados pelo provedor responsável, isto é, documentos
eletrônicos que devem ser guardados e podem ser requisitados judicialmente. [...] O provedor, desde que requisitado pelo juiz, não tem direito subjetivo de recusar a
disponibilização dos registros [...]. Os provedores, quanto a guarda de informações para preservar os valores da lei do Marco Civil, realizam munus público, havendo
dever jurídico em disponibilizar as informações275.

O artigo 22 do sobredito diploma legal estabelece que, em caráter incidental ou autônomo, pode a parte interessada requerer ao juiz a determinação do fornecimento de
registros de conexão ou de acesso a aplicações de Internet ao provedor responsável pela guarda. Para tanto, nesse pedido deverão estar demonstrados a existência de fundados
indícios da ocorrência de um ilícito (penal ou civil), justificativa motivada da utilidade dos dados solicitados para fins de investigação ou instrução probatória e o período ao qual
se referem os registros (o necessário para a descoberta do ilícito e da respectiva autoria, observados os limites traçados pelos artigos 13 e 15 dessa Lei).
Frise-se que eventual prejuízo sustentado pelo usuário que tiver seus dados divulgados pelo provedor após ordem judicial pode ser solucionado com a proteção das
informações recebidas mediante decretação de segredo de justiça no processo próprio (artigo 23, dessa norma).
Vale lembrar, também, que o artigo 19, caput, dessa Lei dispõe que, com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações
somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no
âmbito e nos limites técnicos do respectivo serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em
contrário. Essas ressalvas, porém, permitem que haja responsabilização do provedor tão logo tenha ciência do conteúdo ilícito e nada faça, máxime “nos casos de ofensa aos
direitos de personalidade, danos às imagens de empresas, crimes contra a honra, violação de propriedade intelectual, fraudes, ameaças, pornografia infantil, racismo etc”276.
Em que pese a valia da argumentação de que a coleta e o armazenamento dos registros de aplicações deveria ser facultativa, mormente para a manutenção da privacidade e
da intimidade dos usuários, conforme sobredito, a responsabilização dos provedores e a obrigatoriedade da guarda de dados da espécie por eles advém da correspondente
importância para a salvaguarda de direitos fundamentais. Entre o mais, são com esses dados que se possibilita efetiva identificação e punição de autores de crimes digitais.
Renato Leite Monteiro pondera, a esse respeito, por sinal, que

A função teleológica por trás da faculdade de não coleta e armazenamento seria a manutenção da privacidade e da intimidade dos usuários de Internet. [...] Apesar dos
merecidos aplausos no argumento utilizado, [...] Se eventual empresa adotar plataforma de negócios que não dependa dos dados e registros produzidos por seus
usuários, a solução de ilícitos que porventura aconteçam através de sua plataforma restará imensamente prejudicada. Novamente, a metodologia atual de investigação
de ilícitos cibernéticos depende da existência de registros eletrônicos que possam identificar a origem da conexão à Internet utilizada para praticá-los277.

Saliente-se, ainda, que, no mais das vezes, a identificação da origem é o que basta para a solução da questão em pauta, seguindo as investigações, a partir daí, com os
métodos ditos tradicionais.

4. Impactos da quebra do sigilo telemático no cenário econômico

A Internet é um importante instrumento a ser usado nas relações econômicas. Aliás,

Trata-se de um mecanismo ultra eficiente de comunicação, com possibilidades diversas, o que proporciona um ambiente de mercado e, portanto, envolve a proteção
da livre-iniciativa, da livre concorrência e da defesa dos consumidores278.

A Lei do Marco Civil da Internet, por seus dispositivos, determina, basicamente, que as operações das empresas que atuam na web deverão ser mais transparentes (é exigido
delas o fornecimento de todas as informações necessárias à sua identificação pelos consumidores, inclusive). Ainda, não mais podem as pessoas jurídicas que atuam com dados de
usuários da Internet para fins de publicidade os fornecer a terceiros sem o expresso e livre consentimento daqueles. Também não é mais admitido que provedores de conexão
possam discriminar ou privilegiar determinados conteúdos (princípio da neutralidade da rede)279.
A transparência é uma das formas de assegurar a concorrência justa entre os provedores de aplicação disponíveis no mercado, permitindo, ainda, que os consumidores
possam escolher o provedor de conexão no tipo de gerenciamento de rede que considerem admissível ou razoável. A necessária autorização expressa do usuário para fornecimento
dos respectivos dados a terceiros evita condutas anticompetitivas entre empresas de publicidade. E a proibição à priorização de um aplicativo/serviço/conteúdo em detrimento de
outro impede o tolhimento da liberdade de expressão.
A despeito dessas realidades, fato é que se trata de prática comumente realizada pelos serviços coletores de dados pessoais de usuários de Internet o fornecimento destes a
terceiros, seja em virtude de parceria previamente estabelecida, seja em razão de ser essa a fonte de lucro maior do empreendimento.
Conforme Vicente Bagnoli, “A relação público-privado cria externalidades à sociedade resultantes da maximização do lucro pelo poder econômico que são negativas,
comprometendo o bem público”280.
Antes da edição da Lei 12.965/2014, situação da espécie era regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, legislação que mais atendia aos anseios do usuário lesado pela
indevida divulgação dos respectivos dados. Com o advento dessa norma especial, estabeleceu-se como regra o sigilo do conteúdo das comunicações privadas em meio digital e a
vedação ao fornecimento correspondente a terceiros. Entretanto, conforme antes exposto, esse sigilo pode ser quebrado por meio de ordem judicial, observadas as condições
dispostas no artigo 23 desse novo diploma.
Um dos impactos dessa relativização da inviolabilidade do sigilo de dados e comunicações é a perda de confiabilidade nas empresas e/ou provedores de guarda. Mais que
propriamente preocupar-se com a mitigação de liberdades individuais281, essas pessoas jurídicas tendem a inquietar-se com a possível diminuição da obtenção de lucro que
decorra dessa medida.
Pode-se dizer, aliás, que há intensa preocupação das empresas provedoras de serviços de Internet em serem revelados, por meio dessas quebras de sigilo, seus modelos de
negócio ou segredos empresariais282.
Prejuízos tais poderiam impactar sobremaneira o cenário econômico, haja vista a possível queda no uso de serviços, hoje, a alcançar público de qualquer faixa etária e em
qualquer local do Planeta283.
Como defende Gustavo Rabay Guerra,
De regresso ao enfoque eminentemente constitucional dos direitos da personalidade, é o enfrentamento de situação concreta em que a violação ao sigilo ou o
comprometimento de dados privados, que permitirá delimitar se tal ato permitiu malferimento jurídico a bens jurídicos tutelados nessa órbita, ou, de modo inverso, se
sua intangibilidade oferecerá riscos de maior porte para a guarda de outros bens mais ou tão relevantes quanto a privacidade, em típicas situações de conflito de direitos
fundamentais, a ensejar o balanceamento de princípios, por meio do uso da proporcionalidade284.

Daí decorre, portanto, a necessidade de determinar-se a quebra do sigilo telemático em situações excepcionais e desde que confrontados os direitos em jogo à luz do
princípio da proporcionalidade.

5. Intervenção estatal no domínio econômico: o controle pelo estado ao abuso do poder econômico por provedores de internet

Conquanto hodiernamente predomine a transferência pelo Estado do protagonismo da atividade empresarial à iniciativa privada, é premente a correspondente atuação como
fiscalizador desse processo, o que se verifica por meio da expedição de normas, do acompanhamento das atividades realizadas e da imposição de sanções quando necessário
(funções típicas de regulação).
Embora etimologicamente a função reguladora do Estado sugira uma associação com competências normativas, o respectivo conteúdo é mais amplo e variado. Mesmo que
se aproxime da ideia de poder de polícia administrativa, segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a regulação contempla uma gama maior de atribuições, as quais se
relacionam com atividades econômicas e com a prestação de serviços públicos, além de representar fiscalização, composição de conflitos e aplicação de sanções em caráter
eventual285.
Enquanto unidade de poder alheia ao domínio econômico do capital e do trabalho, o Estado funciona como garante político necessário no seio da reprodução econômica
capitalista. É dizer, a atuação dele é imprescindível à contenção do abuso do poder econômico na busca desenfreada pela obtenção de lucro. Conforme Fabiano Dolenc Del Masso,

No caso das práticas de deslealdade competitiva, a rede também facilita as condutas, principalmente, no que diz respeito à tutela de marcas, na divulgação de
informações falsas sobre produtos e serviços de concorrentes, entre outros. Devido ao livre acesso para que todos os interessados em desenvolver alguma atividade
econômica possam participar do mercado digital, também é necessário que se fiscalizem as condutas ilícitas, sobretudo no que diz respeito às práticas que envolvem
abuso de poder econômico. Fora isso, não se deve esquecer que a tutela da concorrência também pode ser aplicada em relações econômicas envolvendo os provedores
de acesso à Internet, o que também não se diferencia dos outros agentes econômicos que operam em outros ramos do mercado286.

Silvia Regina Barbuy Melchior adverte a esse propósito que a infraestrutura de acesso ao usuário ainda constitui um monopólio natural no Brasil287. Acarência de um
mercado realmente competitivo de redes é também uma das justificativas para a intervenção e a regulação pelo Poder Público288.
No que tange aos provedores de Internet próprios da iniciativa privada, o intervencionismo estatal será necessário, portanto, para a tutela da livre concorrência e para coibir
violação aos direitos conferidos aos consumidores/usuários do ciberespaço.
E a atuação do Estado na solução de impasses entre os direitos e interesses envolvidos deverá nortear-se pela proporcionalidade, como antes exposto, e pela razoabilidade.
Sob esse prisma,

O princípio da proporcionalidade aparece como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, servindo de controle efetivo, em um primeiro momento, dos atos de
natureza estatal, sem prejuízo de sua aplicação cada vez mais intensa em atos de natureza privada. Instrumento de garantia da efetivação dos valores
constitucionalmente previstos, tanto através da ação positiva do Estado, com a adoção de atos e medidas que visam concretizar os preceitos constitucionais, quando
negativa, visando à repressão de atos violadores de direitos fundamentais praticados por terceiro289.

Tomando por base essa diretriz é que os direitos dos usuários e da coletividade em geral (máxime, neste caso, na hipótese de determinação judicial para quebra do sigilo de
dados) serão tutelados.
A Lei 12.965/2014, no respectivo artigo 24, estabelece políticas a serem adotadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios no desenvolvimento da
Internet no Brasil. Também os artigos 25 a 28 tratam da atuação do poder público no ciberespaço.
Sobre esses dispositivos, aliás, expõem Fabiano Dolenc Del Masso e Humberto Barrionuevo Fabretti o seguinte:

[...] o legislador agiu bem ao inserir na própria lei a forma de atuação do Poder Público, pois desta forma estabelece diretrizes aos governantes no sentido de efetivar a
implementação da Lei.
Porém, é preciso ter em mente que a simples previsão legal das funções do Estado na regulação da Internet não é suficiente, sendo necessário que estas normas se
efetivem tanto através de políticas públicas, como pela participação popular290.

A atuação do Poder Público deve ir além da adoção de políticas tais, as quais, conquanto de elevada relevância, não abrangem a tutela de situações outras passíveis de causar
lesão a direitos e interesses fundamentais.
Assim, defende-se ser possível a relativização do sigilo de dados consagrado constitucionalmente e por meio da Lei do Marco Civil da Internet na medida em que não se
verifica a intangibilidade de informações armazenadas, máxime face às novas tecnologias de “computação em nuvem” (cloud computing)291.
Aspecto outro importante extrai-se da necessidade de ponderação de interesses em questões atinentes ao chamado “direito ao esquecimento” (right to be forgotten), incluído
na “tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação” pelo Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada pelo Centro
de Estudos do Judiciário em março de 2014.
Pode-se indagar, por exemplo, se criminosos teriam direito ao esquecimento, ou seja, direito a terem resultados de busca on line ligados a seus passados espúrios apagados.
Estar-se-ia diante da máxima de que, “por vezes, proteger dados é proteger criminosos (‘Datenschutz ist Täterschutz’)”292.
Para Daniel Sarmento o “direito ao esquecimento” pode representar perigo ante fatos históricos importantes para a sociedade, constituindo, ainda, afronta às liberdades de
imprensa e de expressão. Segundo ele,

As liberdades de expressão e de imprensa configuram direitos preferenciais na ordem constitucional brasileira. [...] Não bastasse, os ônus que o “direito ao
esquecimento” impõe às liberdades comunicativas são incomparavelmente mais graves do que os benefícios que ele enseja, sob a perspectiva dos valores
constitucionais. É compreensível que as pessoas queiram que a sociedade olvide os fatos desabonadores ou desagradáveis em que se envolveram no passado. Porém,
nem todo desejo configura direito fundamental. Não há como reconhecer um direito ao esquecimento de fatos pretéritos que envolvam interesse público. Menos ainda
um direito que seja forte o suficiente para prevalecer sobre uma liberdade preferencial293.

Há destaque para casos em que esse direito (ao esquecimento) seja invocado como permissivo à reinvenção ou recriação do passado por pessoas que objetivem simplesmente
apagar momentos ou situações que não lhes agradem ou não lhes convenha reconhecer a existência. E maior risco tende a existir em países nos quais inexista Internet aberta e
democrática294.
Não se nega a importância do direito de informar para o crescimento da economia digital e da Internet no Brasil, bem como para o exercício das liberdades individuais
citadas anteriormente. Porém, o poder econômico, quando abusivo, necessita ser limitado pelo Estado. É dizer, a liberdade coletiva deve prevalecer sobre a individual.
Vicente Bagnoli, a propósito, ensina que, talvez, “o pior dos Estados seja aquele que se relaciona com o poder econômico e perde sua soberania”295.
Na mesma toada, aponta Sérgio G. Lazzarini que a atuação estatal deve objetivar a tutela de interesses coletivos e sociais, e não meramente políticos, sob pena de
desvirtuar-se a razão de ser das ações regulatórias. Não pode o Estado, portanto, ficar refém do que o autor denomina “capitalismo de laços”. Assim, para ele, quatro ações são
prementes para nortear a atuação estatal: transparência, isolamento político, redução de custos de transação e combate a condutasanticompetitivas.
Dessa forma, tem-se que o Estado deve atuar no processo de limitação do abuso do poder econômico e na promoção de contrapartidas, no mais das vezes, viabilizadas por
meio do Direito.
A imposição do princípio da neutralidade de rede é um exemplo, a bem ver, do uso do direito enquanto norma para barrar certas práticas abusivas de poder econômico.
Segundo Roberta Westin,

[...] a vedação à priorização de tráfego é necessária para evitar uma concorrência artificial por parte de aplicativos que tenham condições financeiras para obter um
tráfego privilegiado. Ainda, é também uma medida para evitar abuso de poder econômico por parte de provedores de conexão que, por serem verticalizados, também
teriam interesse em dar preferência aos seus próprios aplicativos.
Ou seja, a imposição de uma regra de neutralidade de rede não seria para corrigir eventuais falhas de mercado existentes, mas para prevenir possíveis abusos de poder
de mercado, para que o futuro da Internet seja livre de quaisquer manipulações indesejáveis296.

É bem verdade que toda regulamentação traz custos e consequências ao mercado. Porém, é ela imprescindível frente a situações como as ora discutidas. Oideal é que seja
usado esse mecanismo (regulação) com cautela e responsabilidade, a fim de atingir equilíbrio e benefício a todos. Quando aplicada de forma razoável, a regulação poderá coibir
práticas abusivas e não correrá o risco de se tornar incompatível com situações e tecnologias futuras.

5. Conclusão

Aspectos iniciais relativos à importância da conexão em rede para a comunicação e, dado o uso da Internet para a consecução de tarefas e atividades cotidianas, para o
exercício da cidadania foram abordados no presente artigo. Em conformidade ao disposto no artigo 5º, X, XII e LXXII, da Constituição Federal, a Lei 12.965/2014 estabelece
serem a privacidade, a neutralidade e a liberdade de expressão no meio virtual fundamentais para esse exercício.
Como forma de garantia da privacidade (em sentido amplo) deve-se preservar a inviolabilidade do sigilo. Porém, não se está diante de regramento absoluto. Daí ter-se
apontado que esse direito deve ser sopesado e analisado conforme interesses não apenas individuais, mas também da sociedade e do Estado. Deverá haver no caso concreto a
proteção de dados e da privacidade em consonância com a tutela do interesse público e social.
Discorreu-se, ademais, sobre o interesse dos provedores de Internet em coletar e armazenar dados pessoais dos usuários – praxe relevante para a manutenção do modelo de
negócios que fomenta a rede mundial de computadores –, bem como a respeito das correspondentes responsabilidades estabelecidas na Lei do Marco Civil. Essa responsabilização
e a obrigatoriedade de guarda de dados são medidas voltadas à salvaguarda de direitos fundamentais que, não raramente, sofrem violação pelos que se valem das “infovias” para
perpetrar ilícitos.
Assim, a possibilidade de relativizar a inviolabilidade do sigilo de dados e comunicações à luz do princípio da proporcionalidade, conforme se destacou, decorre de
interesses que, na hipótese de delitos cibernéticos cujas autorias se pretende descobrir, por exemplo, se sobrepõem ao objetivo de obtenção de lucro ou à preocupação das
empresas provedoras de serviços de Internet em serem revelados, por meio de quebras de sigilo, seus modelos de negócio ou segredosempresariais.
Nesse passo, com este trabalho objetivou-se demonstrar a importância da atuação do Estado, notadamente na correspondente função reguladora, para evitar que o uso
desenfreado dessa ferramenta global acarrete danos a terceiros. A fiscalização é necessária para a tutela da livre concorrência, para a contenção do abuso do poder econômico no
mercado digital e, sobretudo, para coibir violação aos direitos conferidos aos consumidores/usuários do ciberespaço.
O intervencionismo estatal justifica-se, ainda, pela necessidade de relativização da intangibilidade de informações armazenadas frente a novas tecnologias que propiciam,
pela característica universal e aparentemente “livre”, o cometimento de delitos. A título de exemplificação foram citadas questões a envolver computação em nuvem (cloud
computing) e direito ao esquecimento (right to be forgotten).
Não se pretendeu com este trabalho esgotar a análise da problemática referente ao controle estatal sobre a atuação de provedores de Internet, tarefa, aliás, inviável frente à
amplitude da matéria. Buscou-se tão somente apontar situações nas quais a intervenção do Estado no mercado digital é medida imprescindível para fazer prevalecer a liberdade
coletiva sobre a individual, o interesse público e social sobre o político e econômico.
Conclui-se, portanto, estar-se diante de realidades que demonstram a necessidade do poder público atuar no processo de limitação do abuso do poder econômico e na
promoção de contrapartidas, no mais das vezes, viabilizadas por meio do Direito. E esse processo deverá ocorrer conforme os princípios de proporcionalidade e razoabilidade,
balizas estas que impedirão se torne a contenção estatal, por ela própria, abusiva.
REFERÊNCIAS

ARTESE, G. (Coord.). Marco Civil da Internet: Análise Jurídica sob uma Perspectiva Empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015.

BAGNOLI, V. Direito e poder econômico: os limites jurídicos do imperialismo frente aos limites econômicos da soberania. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

CAPPELLARI, Á. dos S. O controle penal das movimentações financeiras: o dever de informar versus o direito à privacidade. 2012. 278 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
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Notas de Rodapé
256 Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Especialista em Direito Processual Penal por essa instituição de ensino, bem como em
Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie/SP. Assistente Judiciário lotada na Presidência do 8º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professora
Universitária. E-mail: [email protected]
257 Embora enfoque maior seja ora dado à Constituição Federal de 1988 e à Lei 12.965/2014, vale lembrar que vários outros diplomas nacionais e
internacionais tratam desses direitos, entre eles: Código Penal, Código Civil e Código de Defesa do Consumidor – cenário nacional –, Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem (art. 5º), Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 12), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos (ratificado pelo Decreto 592, art. 17) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, art. 11) – estes, de
âmbito internacional.
258 MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Requisição judicial de registro. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São
Paulo: Atlas, 2014. p. 848.
259 GUERRA, Gustavo Rabay. Direito à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas armazenadas: um grande salto rumo à proteção judicial da
privacidade na rede. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 393.
260 COSTA, Célia Leite. Intimidade versus interesse público: a problemática dos arquivos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p.194, 1998.
261 FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. Apontamentos sobre a liberdade de expressão e a violação da privacidade no marco civil da internet. In: MASSO,
Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014. p. 32.
262 VIEIRA, Tatiana Malta. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito fundamental diante dos avanços da tecnologia da
informação. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2007. p. 97.
263 Nesse sentido: MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Requisição judicial de registro. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da
Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 849.
264 GUERRA, Gustavo Rabay. Direito à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas armazenadas: um grande salto rumo à proteção judicial da
privacidade na rede. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 397.
265 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Sigilo de dados: a proteção constitucional. Artigo de periódico. Caderno Especial: Sigilo, Revista dos Tribunais, ano 102, v.
937, p. 187, nov. 2013.
266 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de Internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 19.
267 ABRUSIO, Juliana Canha. As fragilidades da estrutura informacional da rede e as formas de manipular o sistema dos provedores de buscas da internet. In:
MASSO, Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 90.
268 GAL, Michal S.; RUBINFELD, Daniel L. The hidden costs of free goods: implications for antitrust enforcement. New York University School of Law, January
2015. p. 5-6. (Law & Economics Research Paper Series, working paper nº 14-44).
269 LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: Os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 27.
270 São “empresas prestadoras de serviços de valor adicionado, contratadas pelos consumidores para viabilizarem a conexão do terminal do usuário à rede
mundial de computadores” (KUJAWSKI, Fábio Ferreira; THOMAZ, Alan Campos Elias. Da proteção aos registros, dados pessoais e comunicações privadas
– um enfoque sobre o marco civil da internet. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p.
686).
271 Artigo 13 da Lei 12.965/2014.
272 São “aqueles que ofertam um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet [...] aqueles que ofertam
a seus usuários funcionalidades que serão por esses utilizadas, tais como empresas que disponibilizam blogs, redes sociais, portais de comércio eletrônico,
entre outras. Em suma, são todos aqueles que disponibilizam uma plataforma com interação direta entre usuário e plataforma” (KUJAWSKI, Fábio Ferreira;
THOMAZ, Alan Campos Elias. Da proteção aos registros, dados pessoais e comunicações privadas – um enfoque sobre o marco civil da internet. In: LEITE,
George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 686).
273 São “pessoas jurídicas e que exercem a atividade de provedor de aplicações de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos” (idem, p. 687).
274 Artigo 15 da Lei 12.965/2014.
275 MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Requisição judicial de registro. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São
Paulo: Atlas, 2014. p. 850-851.
276 VAINZOF, Rony. Da responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. In: MASSO, Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha;
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 203.
277 MONTEIRO, Renato Leite. Da proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas. In: MASSO, Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana
Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 143.
278 MASSO, Fabiano Dolenc Del. Livre-iniciativa, livre concorrência e direitos do consumidor como fundamentos do uso da internet no Brasil. In: MASSO,
Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014. p. 43.
279 A esse respeito, a propósito, “Em última instância a neutralidade tem o efeito de evitar o acesso desigual ou a discriminação (seja a degradação ou
priorização) sobre o tráfego da rede bem como práticas anticompetitivas (ou seu incentivo), por meio das quais o detentor da infraestrutura e rede que
controla o acesso e sua precificação, trafega os dados e provê o serviço dessa entrega, tem a habilidade de degradar o tráfego de serviços concorrentes
aos seus, favorecendo o seu conteúdo proprietário, em especial os serviços transportados (correio eletrônico, mensagens instantâneas, vídeos, dados) ou
acesso ao conjunto dinâmico de conteúdos/serviços/aplicações/usos acessíveis através da rede” (MELCHIOR, Silvia Regina Barbuy. Neutralidade no direito
brasileiro. In: MASSO, Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei
12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 102).
280 BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico: os limites jurídicos do imperialismo frente aos limites econômicos da soberania. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009. p. 243.
281 Não se olvida haver entendimento contrário ao ora defendido no presente artigo. Nesse sentido, aliás, aponta Alberto Zacharias Toron o seguinte: “Ou bem
se entende que as garantias individuais compõem um sistema que limita a ação do Estado e seus agentes, representando igualmente o interesse público,
sendo, portanto, de igual relevância quando cotejadas com outros mecanismos de defesa social, ou as garantias serão meramente nominais, isto é,
despidas de qualquer eficácia” (In: O SIGILO profissional do advogado e a proteção à cidadania. Artigo de periódico. Caderno Especial: Sigilo, Revista dos
Tribunais, ano 102, v. 937, nov. 2013, p. 226).
282 A fim de evitar-se prejuízo da espécie, dispõe o parágrafo 4º do artigo 10 da Lei do Marco Civil da Internet o seguinte: “As medidas e os procedimentos de
segurança e de sigilo devem ser informados pelo responsável pela provisão de serviços de forma clara e atender a padrões definidos em regulamento,
respeitado seu direito de confidencialidade quanto a segredos empresariais”.
283 A propósito: “Vejamos algumas estatísticas de alguns dos provedores de aplicações de Internet: (i) Youtube: mais de um bilhão de usuários únicos visitam o
serviço todos os meses; mais de seis bilhões de horas de vídeo são assistidas por mês; cem horas de vídeo são enviadas a cada minuto; (ii) Facebook:
1,19 bilhão de usuários ativos durante o mês de setembro de 2013; a cada dia, em média, 728 milhões de pessoas usam a rede social; 874 milhões de
pessoas por mês acessando-o por celular e 507 milhões de pessoas por dia, em média; (iii) Twitter: em outubro de 2014 contava com 230 milhões de
usuários; (iv) LINKEDin: em outubro de 2013 contava com 259 milhões de usuários. Boa parte dos milhões de usuários dos referidos provedores de
aplicações de Internet são brasileiros, conforme pesquisas que nos apontam entre os primeiros países em número de usuários e quantidade de
acessos”(VAINZOF, Rony. Da responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. In: MASSO, Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO,
Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 189).
Mais: “A título de exemplo, a cada minuto (i) internautas enviam aproximadamente 204 milhões de e-mails; (ii) o Google recebe mais de 4 milhões de
pesquisas on-line; (iii) os usuários do Facebook compartilham 2.4 milhões de conteúdos em seus perfis; (iv) os usuários do YouTube realizam o upload de
72 horas de novos vídeos; e (v) os usuários do aplicativo Whatsapp compartilham 347 mil fotos” (WESTIN, Roberta. Neutralidade de rede: quem ganha e
quem perde?. In: ARTESE, Gustavo (Coord.). Marco Civil da Internet: Análise Jurídica sob uma Perspectiva Empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015.
p. 137).
284 GUERRA, Gustavo Rabay. Direito à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas armazenadas: um grande salto rumo à proteção judicial da
privacidade na rede. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 404.
285 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 45.
286 MASSO, Fabiano Dolenc Del. Livre-iniciativa, livre concorrência e direitos do consumidor como fundamentos do uso da internet no Brasil. In: MASSO,
Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014. p. 46. Os grifos apostos não constam da redação original.
287 A respeito da necessidade de intervenção estatal em casos a envolver monopólios naturais, destaca-se o seguinte trecho de compilado do Comitê do Prêmio
de Ciências Econômicas da “The Royal Swedish Academy of Sciences” (artigo científico sobre o prêmio Nobel em ciências econômicas, 2014): “The ■eld of
Industrial Organization (IO) studies how markets function. The main emphasis is on how ■rms exercise their market power in imperfectly competitive
markets, how they interact with other ■rms, the welfare implications of such behavior, and the justi■cations for government intervention. In the case of
natural monopolies, the government may directly regulate the monopolist” (TIROLE, Jean. Market power and regulation. 13 out. 2014. p. 18).
288 MELCHIOR, Silvia Regina Barbuy. Neutralidade no direito brasileiro. In: MASSO, Fabiano Dolenc Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO,
Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 136.
289 CAPPELLARI, Álisson dos Santos. O controle penal das movimentações financeiras: o dever de informar versus o direito à privacidade. 2012. 278 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. p. 94.
290 MASSO, Fabiano Dolenc Del; FABRETTI, Humberto Barrionuevo. Atuação do poder público no desenvolvimento da internet. In: MASSO, Fabiano Dolenc
Del; ABRUSIO, Juliana Canha; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coords.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2014. p. 256.
291 “A computação em nuvem é um modelo que permite um acesso ubíquo, conveniente e sob demanda, por meio da rede, a um conjunto compartilhado de
recursos computacionais configuráveis (por exemplo, redes, servidores, armazenamento, aplicativos e serviços) que podem ser rapidamente provisionados
e liberados com mínimo esforço de gestão ou interação do prestador de serviços” (definição dada pelo National Institute of Standards and Technology –
NIST –, do Departamento de Comércio norte-americano, no documento intitulado “Recomendações do NIST”).
292 GUERRA, Gustavo Rabay. Direito à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas armazenadas: um grande salto rumo à proteção judicial da
privacidade na rede. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 412.
293 SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira. Parecer técnico sobre decisões
proferidas pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais 1.334.097 e 1.335.153 em 22 de janeiro de 2015, p. 48-49.
294 Nesse sentido: PARENTONI, Leonardo. O direito ao esquecimento (right to oblivion). In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa
Pereira (Coord.). Direito e Internet III – Tomo I:
Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 607.
295 BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico: os limites jurídicos do imperialismo frente aos limites econômicos da soberania. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009. p. 80.
296 WESTIN, Roberta. Neutralidade de rede: quem ganha e quem perde?. In: ARTESE, Gustavo (Coord.). Marco Civil da Internet: Análise Jurídica sob uma
Perspectiva Empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 145.

13. A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA MONETÁRIA NA SEARA MACROECONÔMICA DO ESTADO EM CONFRONTO COM O


SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL: o papel de relevo do Banco Central do Brasil como agente executor – art. 192 da
Constituição Federal

Marcelo Cavalcante Faria de Oliveira297

1. Introdução

Na formação do Estado, observa-se na Constituição Federal Brasileira de 1988 a presença de elementos fundamentais, não únicos, para que se possa exprimir como está
constituído o Estado brasileiro.
Com a opção do Constituinte pela livre iniciativa – capitalismo – e também da propriedade privada, o desenvolvimento da democracia como regime de governo no País,
desenvolve-se com base nos pilares da liberdade e da propriedade privada.
Com o advento do sistema capitalista, após o feudalismo quando prevalecia a força e a vontade direta dos senhores feudais e escravocratas, o Direito, nestas sociedades
capitalistas, vem a desempenhar um papel estruturante das relações sociais que se lhes apresentam, em espelho das relações de troca mercantil operada pelo próprio sistema
capitalista, através das trocas havidas entre o capital e a força do trabalho.
O direito, através do Estado, nesta configuração capitalista, observa uma perspectiva qualitativa através dos mecanismos e estruturas que vão dar a especificidade dele ante
qualquer assunto, podendo os assuntos serem jurídicos, desde que hajam estruturas que os assim qualifiquem.
Mas, no bojo das Ciências Sociais, não só o Direito importa para constituição do Estado brasileiro, pois inserta na Constituição Federal de 1988 encontram-se vários
comandos que tocam à ciência da Economia.
Desta forma, o “[...] Direito Econômico surge como uma reação, uma necessidade social do Estado, por meio da Lei, de controlar os efeitos da atuação de agentes
econômicos no mercado, bem como controlar a própria Economia e suas leis naturais [...]”298.
Para que o poder econômico não cometa excessos que venham a prejudicar o cumprimento de mandamentos constitucionais, como a promoção do bem de todos, da garantia
do desenvolvimento nacional e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, faz-se necessário que o Estado gere e implemente mecanismos de contenção aos abusos
cometidos pelo poder econômico, que venham prejudicar a soberania, inclusive a econômica.
É através do Direito Econômico, portanto, que se vislumbra “[...] o instrumento jurídico a dar segurança às práticas econômicas, legitimando a atuação do Estado no
domínio econômico e assegurando a ordem econômica e social”299.
Desta forma, há um enfoque na política monetária como àquela, dentre outras, e assim operada no Brasil através do Banco Central do Brasil, que exerce uma função
reguladora no mercado econômico, extraindo-se do art. 192 da Constituição Federal o comando para a operacionalização da mesma no País, tendo em conta a recepção da Lei
(Ordinária) nº 4.595/64 pela Constituição Federal de 1988 como àquela que rege complementarmente o Sistema Financeiro Nacional.

2. Forma de estado, sistema, forma e regime de governo

A forma de Estado (módulos de organização geopolítica e jurídica do Governo), Sistema, Forma e Regime de governo compõem elementos que são fundamentais para a
existência de um Estado, sendo abordagem de cunho constitucional, logo definido na Constituição Federal de um Estado, por se tratarem de elementos fundamentais, embora
não únicos.
Em linhas gerais, observa-se que quanto à Forma de Estado, pode possuir este (quanto à sua estrutura ou personalidade) a forma composta (confederação) ou simples
(unitário, federação/união, outros).
No que respeita ao Governo de um Estado, pode àquele ter a forma de organização deste como sendo uma Monarquia ou República; para o seu sistema de Governo, o Estado
pode ser presidencialista ou parlamentarista e, quanto ao regime de Governo, pode ser este democrático ou autocrático.
Na Constituição Federal do Brasil de 1988, encontram-se princípios fundamentais que definem a República como a forma de Governo do País, a Federação como seu
sistema de Estado, a Democracia como o Regime de Governo e o Presidencialismo como sistema de Governo.
O Estado possui três elementos constitutivos, sendo que a falta de qualquer deles descaracteriza a formação do próprio Estado, fazendo-se necessário, portanto, a presença do
povo, a existência de um território (é sobre uma dada base territorial que o Estado exerce o seu poder e autoridade) e da soberania (poder político caracterizado pelo fato de ser
ilimitado na ordem interna e independente na perspectiva externa também), que é legitimada pela vontade do povo; através da soberania, que concede autonomia e independência
a determina Estado, pode este garantir a realização plena da cidadania, nos seus limites físicos, além de garantir sua individualidade e independência externa.

3. Livre iniciativa na Constituição Federal de 1988 e outros elementos fundamentais

O artigo 1º, inciso IV da Constituição Federal de 1988, enuncia a opção do Poder Constituinte pelo capitalismo na República Federativa do Brasil. Desta forma, Vicente
Bagnoli descreve que:

[...] A vida econômica no capitalismo é regida pelo império da lei, que justamente pelos contratos possibilita a aquisição da propriedade em geral, confirmando assim a
essência da liberdade econômica [...] a dinâmica da liberdade econômica exige a base sólida e pétrea da propriedade privada e do respeito aos contratos, algo
estabelecido pelo Direito300.

A democracia, regime de Governo, ainda com Bagnoli:

[...] tende a desenvolver-se melhor no sistema capitalista pelos princípios da liberdade e da propriedade privada301.
Dentro do prisma que a democracia aglutina dois princípios como sendo aqueles norteiam este regime, quais sejam, a liberdade e a igualdade, rememora-se aqui a regra de
ouro para Aristóteles, no terreno da justiça e do direito, sendo esta dar a cada um o que é seu.

Não na norma nem em Deus, mas na distribuição dos bens sociais, buscava Aristóteles situar o problema do direito e da justiça. [...] o direito e a justiça tratavam
diretamente das coisas, de dar, ou seja, a geografia do direito dizia respeito à distribuição dos bens. A noção do direito como justeza nas coisas foi a proposição de
Aristóteles numa sociedade pré-capitalista. [...] a questão do direito antigo girava em torno desse ato de dar, de distribuir, falando diretamente das coisas e das pessoas,
e não das normas jurídicas ou dos direitos subjetivos, como será o caso das sociedades atuais302.

Como se expressam as ações voluntárias, que resultam em atos justos e injustos? Como a justiça é praticada? Segundo Aristóteles, o justo será o meio termo, devendo ser ao
mesmo tempo intermediário, igual e relativo, equidade, pois em cada espécie de ação há o mais e o menos, havendo, também, o igual.
O justo, é uma espécie de termo proporcional. É intermediário, porque está no meio de dois polos ou extremos; é igual, pois exige duas participações iguais e é relativo
porque o que é justo para um, poderá não o ser para o outro.
Para a justiça universal e particular, na compreensão de Aristóteles, há a separação nestes dois campos:

Na sua perspectiva universal, a justiça é tomada num sentido lato. Ela tanto é uma manifestação geral da virtude quanto uma apropriação do justo à lei que, no geral, é
tida por justa. O respeito à lei é característica desse justo que é tomado no sentido lato. [...] a lei, produzida na pólis a partir de um princípio ético, é diretamente
relacionada ao justo, mas não por conta de sua forma (ou seja, não é justa somente porque é formalmente válida), e sim em razão de seu conteúdo303.

Quando a justiça no sentido particular, observando-se a regra de ouro já mencionada de dar a cada um o que é seu, sendo essa a regra sobre o justo, Aristóteles dirá que o
justo é a ação de distribuição, que “demanda uma qualidade de estabelecer o que é de cada qual”304.
Desta forma, deve o Estado prover atuação no sentido de equilibrar estas condições, ou seja, promover ações e intervenções que busquem atingir estenivelamento.
É certo que num regime democrático, os cidadãos ao exercerem sua liberdade de forma igualitária, promovem escolhas, inclusive àquelas que estão descritas na Constituição
do Estado, como, por exemplo, o disposto no art. 1º, § único da Constituição Federal de 1988 do Brasil.
Nesta senda, observa Vicente Bagnoli que:

[...] para o Estado ser plenamente livre, autônomo, no exercício integral de sua soberania, deve também ser detentor da soberania econômica, caso contrário sua
liberdade é limitada305.

O Estado exerce, então, um papel preponderante no sistema capitalista, pois o mesmo na sua forma política é parte integrante das relações de produçãocapitalistas.
Considera ele, então, as relações materiais de produção, ou seja, a maneira como se comportam os indivíduos entre si no processo de produção. Não se pode esquecer que no
sistema capitalista, há uma divisão de classes, burgueses, trabalhadores, latifundiários, camponeses, e o sistema capitalista tem como consequência, dentre outras, o
desenvolvimento desigual, a contradição entre o movimento do capital e a forma de organização política de cada estado, tendente, por conseguinte, à sua internacionalização.
No sistema capitalista, o “[...] Estado, se institucionaliza e passa a regular uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais. E, além disso, por detrás do Estado há
determinadas relações sociais necessárias que performam a própria estrutura jurídica”306.
No dizer de Alysson Mascaro, “É o capitalismo que dá ao direito a condição de fenômeno distinto do mando do senhor feudal, do mando da igreja, da crença em ordens
sagradas. O capitalismo dá especificidade ao direito”307.
Desta forma, é a qualidade do direito que consagra a identificação do fenômeno jurídico moderno. Para melhor compreensão, observe-se que:

[...] o passo científico mais decisivo para compreender o direito não é, então, entender quais temas são jurídicos (a sua identificação quantitativa), mas, sim, quais
mecanismos e estruturas dão especificidade ao direito perante qualquer assunto (a sua identificação qualitativa). [...] ao se ver a indeterminação do direito nos modos de
produção do passado, resta clara a ligação específica que há entre o direito e capitalismo, por conta de suas estruturas e relações sociais308.

Nas classes estabelecidas pelo capitalismo, há a exploração do trabalhador pelos donos dos meios de produção, no entendimento de que àquele despende a sua força de
trabalho, ainda que por necessidade, para este através do artifício do manejo da sua própria vontade, por intermédio da assinatura de um contrato de trabalho, ou seja, de um
instrumento jurídico.
O Direito se torna, através do sistema capitalista, um Direito capitalista então, pois o que lhe dá forma se espelha na essência do sistema, ou seja, a trocamercantil:

[...]. Seus institutos são resultantes diretos das transações mercantis, porque as possibilitam e as garantem. Entender o direito a partir do movimento mais simples do
capitalismo – as trocas mercantis – é captar o ponto que dá a qualificação específica ao direito moderno309 .

Tem-se, portanto, a diferenciação que a partir da justiça em Aristóteles, na sua regra de ouro em dar a cada um o que é seu, com as distinções das justiças distributivas e
corretiva, com a observância da equidade e reciprocidade, cujo direito se dava a partir das coisas, utilizando-se àqueles tempos uma régua quantitativa e, para o direito moderno,
com o sistema capitalista e os seus meios de produção, classes e demais características, a mudança do enfoque para uma perspectiva de identificação qualitativa, ao invés
de quantitativa.
Esta perspectiva foi forjada com o passar dos tempos, advinda da observação das trocas mercantis inerentes ao sistema capitalista:

O direito subjetivo, a autonomia da vontade e tantos outros conceitos técnicos do direito moderno surgem como formas reflexas imediatas dessas relações fundamentais
do capitalismo310.

Para o sistema capitalista, e a ordem jurídica que o conforma, há uma ideologia por detrás da propalada igualdade com que são tratados o capitalista e otrabalhador:

Ao tratar igualmente o capitalista e o proletário, o direito nivela, com a mesma medida, dois sujeitos desiguais, sem igualar suas condições. Assim, ao invés de
demonstrar a desigualdade real entre as partes, o direito a esconde311.

Através desta ideologia, então, pode-se perceber um dos vetores do desenvolvimento desigual, de economias periféricas ou semiperiféricas, do imperialismo, da
concentração social e regional resultante da riqueza.

4. Economia e direito – Ciências Sociais

Direito e Economia são ciências sociais e, sendo assim, há que ser observada uma noção de reunião entre estas ciências. Segundo Vicente Bagnoli:

[...] O conhecimento interdisciplinar das matérias jurídicas exige a noção de conjunto, pois só assim o profissional do Direito estará atento e apto a atuar na realidade
jurídico-econômica que interfere diretamente no cotidiano de pessoas e Estados312.

Porém, neste entendimento de que tanto o Direito quanto a Economia estão no conjunto das Ciências Sociais não significa que para um mesmo termo usado nas duas
ciências, haja uma interpretação ambivalente.
A Economia é o estudo de “[...] como indivíduos, instituições e sociedade escolhem lidar com a condição da escassez”313. A Economia observa as escolhas que são
produzidas pelas pessoas, o comportamento das pessoas, examinando:

[...] aquilo que levas os seres humanos a fazer o que fazem, e observa como reagem quando enfrentam dificuldades ou o sucesso. Investiga as escolhas feitas pelas
pessoas quando estão diante de um conjunto limitado de opções e a maneira como negociam essas opções como outras pessoas. É uma ciência que abrange a história, a
política, a psicologia e, claro, uma ou outra equação. Se cabe à história nos dizer os erros que cometemos no passado, cabe à economia descobrir como fazer as coisas
de maneira diferente da próxima vez314.

Desta maneira, capital em Economia não se refere a dinheiro, mas sim a “[...] todas as ferramentas, fábricas e todos os equipamentos utilizados no processo de produção.
O capital é o produto do investimento”315. Capital difere de investimento em Economia, sendo àquele a “[...] coisa física utilizada para fazer outras coisas e, investimento é o
dinheiro gasto na compra dessa coisa”316.
A alocação é descrita pelos economistas como sendo a distribuição dos recursos certos para as pessoas certas, ocorrendo a eficiência alocativa quando o benefício marginal
iguala o custo marginal.
Decompondo-se os termos para que se possa ter o concatenamento das ideias que visam à interpretação de comandos constitucionais insertos da Constituição Federal do
Brasil de 1988 na área econômica e financeira, observa-se que a eficiência alocativa é o resultado do maior benefício para a sociedade na distribuição dos recursos certos,
considerando-se a relação de igualdade que será perseguida entre o benefício marginal (benefício de uma decisão, que é tomada uma de cada vez) e o custo marginal (o que custa
produzir ou consumir uma unidade extra de qualquer coisa que se esteja produzindo ou consumindo).
Rememore-se que capital em Economia se refere às ferramentas, fábricas, equipamentos etc., e que tudo que é produzido (para atender os desejos das pessoas) assim é feito
com recursos, que são fatores de produção (terra, trabalho, capital, empreendedorismo etc.).
Estas considerações sobre a ciência da Economia servem de apoio para que, observando-se o comportamento e as escolhas das pessoas e grupos, tenha-se uma visão do que
venha a ser a macroeconomia e microeconomia.

5. Política macroeconômica – microeconomia e macroeconomia

Em linhas gerais, preocupa-se a microeconomia com a análise do “[...] comportamento da economia a partir da ótica dos agentes econômicos isolados, tendo como objeto
de estudo: o comportamento do consumidor [...] Estratégias e formas de atuação das empresas [...] O comportamento do mercado”317.
Sob uma perspectiva diversa, a macroeconomia “[...] procura analisar o comportamento da economia pela ótica das informações agregadas”318, inexistindo a
preocupação, por conseguinte, de se entender as ações dos agentes econômicos de forma isolada.
O Estado brasileiro pratica a gestão macroeconômica, baseada nos pilares das políticas fiscal, cambial e monetária.
Na política fiscal, o Governo promove as formas como incidirão os recolhimentos dos tributos e o padrão dos gastos públicos na economia. Os impostos também podem ser
usados como ferramenta de política microeconômica e possuem, como seu oposto, os subsídios. O Governo “[...] utiliza impostos e subsídios não apenas para aumentar a receita
ou redistribuir a renda, mas também para moldar os incentivos das pessoas e para mudar o mercado319”.
Na política cambial, observa o Governo à relação de troca havida entre a moeda do país, o real, no caso a unidade monetária brasileira, e as principais moedas em circulação
na economia mundial. “[...] Sempre que uma moeda é trocada por outra, ocorre o câmbio e uma taxa de câmbio é paga. A taxa de câmbio não é nada mais do que o preço atual
de uma moeda em termos de outra moeda”320.
As taxas de câmbio estão sujeitas às forças da oferta e procura e o mercado de câmbio tem nos grandes bancos os seus principais participantes, pois através de um sistema de
corretores interligados, atendem clientes corporativos e individuais na condução de seus negócios. Os bancos centrais também participam do mercado cambial, quando promovem
o gerenciamento das taxas de câmbio e a correção de desequilíbrios entre as contas-correntes e financeiras de seus respectivos países, tendendo os respectivos governos a
buscarem o equilíbrio para que não ocorram valorizações ou desvalorizações excessivas:

[...] São muitos os motivos para o valor de uma moeda aumentar ou diminuir, mas dois afetam particularmente seu comportamento. O primeiro, e mais importante, é
que a moeda tende a se valorizar ou desvalorizar juntamente com a percepção da saúde econômica do país a que está associada (ou da jurisdição que a emite). Segundo,
quem investe em moedas costuma buscar a moeda com maior rendimento. Se um país tem taxas de juros altas, isso significa que os títulos do governo e outras
oportunidades de investimentos que emite vão oferecer um retorno maior que os de uma país com taxas de juros muito baixas. Investidores do mundo todo as
compram, e por conta da demanda extra pelos investimentos deste país, o valor da sua moeda aumenta. Em contraste, a moeda se deprecia quando as taxas são baixas e
as pessoas abandonam os investimentos denominados nessa moeda321.

Como já referido, os bancos centrais exercem papel de destaque na operacionalização e condução da política macroeconômica, principalmente na condução das políticas
cambial e monetária.
Para o manejo da política monetária, terceiro pilar da composição da seara macroeconômica, é esta uma das formas de o Estado exercer um controle sobre o poder
econômico quanto à política monetária que implementa. O Governo gerencia as moedas em circulação, atua na taxa de juros, controla o mecanismo do depósito compulsório ao
qual os bancos estão vinculados exercendo neste caso, o controle sobre o efeito multiplicador da moeda e as instituições financeiras, por conseguinte, utilizam-se de mecanismos
internos para o gerenciamento da moeda em seu poder através do encaixe técnico, por exemplo.
A moeda tem uma característica de especificidade, em que o equivalente geral representa a abstração da expressão do trabalho humano convertido em mercadoria, em um
sistema em que cada mercadoria somente encontra validação social convertendo-se em equivalente de outra mercadoria. Como todas as mercadorias devem se estabelecer em
condições de equivalência com as demais, o processo deve atribuir a uma mercadoria específica a forma de equivalente geral perante as demais, resultando numa expressão da
equivalência entre todas elas.
A materialização do dinheiro fez-se necessária para o processo de circulação mercantil, em que o desdobramento do produto do trabalho em mercadoria deve ser seguido do
desdobramento da mercadoria em dinheiro.
Também outras políticas exerce um Governo, numa gestão macroeconômica como a de políticas fiscais (controle orçamentário e das contas públicas) e a da política cambial,
conforme já descrito, perfazendo-se este conjunto de políticas fiscal, cambial e monetária no arcabouço da política macroeconômica operada pelo Governo.
Para a necessidade de autarquias federais exercerem este controle, encontra-se o Banco Central do Brasil como sendo àquela responsável pela condução destas políticas
no País.
De acordo com a prestação de contas do BACEN havida em 2009, a política monetária deste consiste em cumprir as metas de inflação estabelecidas pelo Conselho
Monetário Nacional, condição esta necessária para o crescimento sustentável ao longo do tempo.
A moeda é a instituição básica de uma economia mercantil. A moeda legal do Estado então é emitida pelo seu respectivo Banco Central, enquanto que os demais bancos
emitem moedas de crédito.
Criada e instituída a moeda, institui-se o chamado regime monetário, ou seja, o conjunto de regras que orientam o sistema de pagamentos e crédito noEstado.
O mercado, sendo uma construção social, é uma instituição que pressupõe uma organização e controle quanto às trocas, acessibilidade e a maneira como se darão os
pagamentos efetuados nele.

6. Sistema financeiro nacional na Constituição Federal

A redação do art. 192 da Constituição Federal322 prevê que o sistema financeiro nacional será regulado por leis complementares. Sucede que estas leis não
foram promulgadas:

[...] permanecendo o funcionamento do Sistema Financeiro Nacional sendo regulado e estruturado pela Lei (Ordinária) nº 4.595/1964, que dispõe sobre a Política e as
Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, cria o Conselho Monetário Nacional, além de outras providências. O entendimento feito é que tal lei foi recepcionada
pela Constituição de 1988 com lei complementar, em que pese a sua elaboração em momento histórico distinto ao da Constituição Federal de 1988 [...]323.

O Banco Central do Brasil, portanto, é braço executivo do Conselho Monetário Nacional, compondo e atuando no mercado financeiro, ao executar a gestão da política
macroeconômica advinda do Conselho Monetário Nacional.
Oportuno destacar que, “[...] ao tratar do Sistema Financeiro Nacional, cumpre observar que o Brasil é signatário dos Acordos de Basiléia I, II e III”324. Tais acordos
foram gestados no sentido de se promover exigências mínimas para o funcionamento do sistema financeiro, como medidas preventivas à ocorrência de riscos sistêmicos, crises
que são características do sistema capitalista.
A política monetária tem como objetivo:

[...] promover a estabilidade de preços, o pleno emprego e o crescimento econômico. O Banco Central, um monopolista em relação à oferta monetária, está em posição
única para influenciar a demanda agregada na economia. A política dele afeta o excesso de reservas no sistema bancário, o que influencia diretamente a oferta de
moeda, que, por sua vez, altera a taxa de juros. Essas mudanças nas taxas de juros geram mudanças da demanda agregada por meio de consumo, investimento e
exportações líquidas. [...]325.

O Estado pode intervir no poder econômico visando coibir abusos deste, através do Direito, quando promove instituições fortes e aptas a este controle, conforme adverte
Vicente Bagnoli:

[...] deve ser priorizada a instituição de autoridades administrativas autônomas, no Brasil autarquias federais denominadas agências reguladoras, de modo a assegurar a
autonomia e independência dessas agências, balizadas por padrões jurídicos. Sua composição por um corpo técnico e diretivo especializado e com mandato fixo, a fim
de evitar a captura tanto pelo poder econômico, quanto pelo governo. Já nos mercados perfeitos, o Estado, por meio de instituição de defesas da concorrência
devidamente munidas de recurso técnico, pessoal, econômico e legal, deverá atuar para prevenir e coibir abusos, a fim de que a disputa entre os agentes resulte na
vitória do mais apto, aquele escolhido pelo consumidor326.
O Título VII da Constituição Federal dispõe acerca da Ordem Econômica e Financeira, contando com quatro capítulos (Princípios gerais da Atividade Econômica, Política
Urbana, Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária e Sistema Financeiro Nacional.
No entanto, salienta Bagnoli que:

A Constituição Econômica deve ser interpretada à luz das demais disposições constitucionais, e não apenas daquelas contidas no Título VII, “Da Ordem Econômica e
Financeira”, pois os princípios e objetivos da política econômica estão expressos em outros tópicos da Carta, constituindo todo esse conjunto a Constituição Econômica
do Brasil327.

7. Considerações finais

Importante ressaltar que, para a concretização de um Estado Democrático e Social de Direito, visando este ao cumprimento de comandos constitucionais de nivelamento de
desequilíbrios sociais, dentre outros mandamentos dos princípios fundamentais estampados na Constituição Federal Brasileira, como o desenvolvimento de políticas
socioeconômicas e públicas neste sentido, faz-se necessário o entendimento acerca do dinamismo e desenvolvimento do poder econômico, suas imbricações com o poder político e
eventuais excessos por ele cometidos que, se não coibidos pelo Estado, fragilizam ou até mesmo inviabilizam a implementação das referidas políticas.
A política monetária apresenta-se como um dos instrumentos de regulação do mercado econômico, exercendo-a, no caso brasileiro, o Banco Central do Brasil, sobre a égide
do Conselho Monetário Nacional.
De se destacar, ainda, que o Presidente do Banco Central do Brasil, de acordo com o parágrafo primeiro da Lei 11.036/04, é Ministro de Estado, partícipe, portanto, do
Poder Executivo.
Desta forma, extrai-se do site do Banco Central do Brasil que:

“O Conselho Monetário Nacional (CMN) é o órgão superior do Sistema Financeiro Nacional e tem a responsabilidade de formular a política da moeda e do
crédito, objetivando a estabilidade da moeda e o desenvolvimento econômico e social do País (grifos nossos).

Criado pela Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, o CMN foi efetivamente instituído em 31 de março de 1965, uma vez que o art. 65 da Lei nº 4.595 estabeleceu que a
Lei entraria em vigor 90 dias após sua publicação.
O CMN sofreu algumas alterações em sua composição ao longo dos anos. Sua composição atual é:
• Ministro da Fazenda, como Presidente do Conselho;
• Ministro do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão;
• Presidente do Banco Central do Brasil.
Os seus membros reúnem-se uma vez por mês para deliberarem sobre assuntos relacionados com as competências do CMN. Em casos extraordinários pode acontecer mais
de uma reunião por mês. As matérias aprovadas são regulamentadas por meio de Resoluções, normativo de caráter público, sempre divulgado no Diário Oficial da União e na
página de normativos do Banco Central do Brasil.
Junto ao CMN funciona a Comissão Técnica da Moeda e do Crédito (Comoc) como órgão de assessoramento técnico na formulação da política da moeda e do crédito do
País. A Comoc manifesta-se previamente sobre os assuntos de competência do CMN. Além da Comoc, a legislação prevê o funcionamento de mais sete comissões consultivas.
O Banco Central do Brasil é a Secretaria-Executiva do CMN e da Comoc. Compete ao Banco Central organizar e assessorar as sessões deliberativas (preparar, assessorar e
dar suporte durante as reuniões, elaborar as atas e manter seu arquivo histórico)328.
Como integrante da soberania do Estado, a moeda e a política que a rege, são instrumentalizadas pelo Banco Central do Brasil, posto que o art. 192 da Constituição Federal
dispõe que o Sistema Financeiro Nacional será regido por leis complementares e, em função disso, como não foram estas promulgadas, permanece referido Sistema regulado pela
Lei 4.595/1964.
Desta forma, avulta a importância de os Governos, independentemente das cores das agremiações políticas/partidárias que as imprimem, observando-se que começar de novo
é diferente de começar algo novo.
A mudança abrupta de uma política monetária, fora do quadro de administração de uma crise que é inerente ao sistema da livre inciativa, requer um cuidado extremado de
parte do Governo que pretende assim implementá-la.
A moeda, que é baseada na fidúcia, confiança que inspira, é basilar do Estado e, por conseguinte, de todo o sistema financeiro. A confiança nas ações governamentais nesta
seara é de suma importância para os negócios geridos pela livre inciativa e pelo próprio Governo.

O Estado também intervém sobre o domínio econômico por direção, estabelecendo o comportamento dos agentes da atividade econômica, ou intervém sobre o domínio
econômico por indução, manipulando o funcionamento dos mercados em conformidade com o definido em lei. Logo, quando o Estado intervém sobre o domínio
econômico, ele, Estado, é o regulador da atividade econômica do mercado329.

Num cenário de globalização que vige no Século XXI, com a instantaneidade das ações e resultados, das informações, das inovações tecnológicas que resultam, muitas das
vezes, em consequências que nem as próprias Ciências Sociais como a Economia e o Direito poderiam prever, é de fundamental importância a observância da composição de
referidas Ciências no sentido de proteger e regular, cada vez mais, os usuários dos sistemas econômicos e financeiros, haja vista que a moeda hodiernamente é totalmente
escritural e virtual, requerendo do Estado uma política de controle e regulação que garanta a efetividade dos comandos constitucionais de proteção e desenvolvimento arrolados na
Carta Política.

REFERÊNCIAS

BAGNOLI, V. Direito e Poder Econômico. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

______. Direito Econômico e Concorrencial. 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

BOYER, R. Teoria da Regulação – os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

CONWAY, E. 50 ideias de Economia que você precisa conhecer. 1. ed. São Paulo: Editora Planeta, 2015.

MARIANO, J. Manual de Introdução à Economia. 1. ed. Rio de Janeiro: Alta Books Editora, 2017.

MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Gen Atlas, 2016.

______. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

MILL, A. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016.

Notas de Rodapé

297 Mestrando em direito político e econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


298 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial. 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 23.
299 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial. 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 23.
300 BAGNOLI, Vicente. Direito e Poder Econômico. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 230.
301 Ibidem, p. 231.
302 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 24.
303 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Gen Atlas, 2016. p. 66.
304 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Gen Atlas, 2016. p. 67.
305 BAGNOLI, Vicente. Direito e Poder Econômico. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 230.
306 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 3.
307 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 4.
308 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 3.
309 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 4.
310 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 5.
311 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 28.
312 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial. 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 23.
313 MILL, Alfred. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016. p. 7.
314 CONWAY, Edmund. 50 ideias de Economia que você precisa conhecer. 1. ed. São Paulo: Editora Planeta, 2015. p. 7.
315 MILL, Alfred. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016. p. 10.
316 MILL, Alfred. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016. p. 10.
317 MARIANO, Jefferson. Manual de Introdução à Economia. 1. ed. Rio de Janeiro: Alta Books Editora, 2017. p. 27.
318 MARIANO, Jefferson. Manual de Introdução à Economia. 1. ed. Rio de Janeiro: Alta Books Editora, 2017. p. 67.
319 MILL, Alfred. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016. p. 105.
320 MILL, Alfred. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016. p. 126.
321 CONWAY, Edmund. 50 ideias de Economia que você precisa conhecer. 1. ed. São Paulo: Editora Planeta, 2015. p. 99-100.
322 Art. 192 – O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir ao interesse da coletividade, em
todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a
participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram (Redação do art. 192 da CF dada pela EC nº 40, de 29-05-2003).
323 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 178-179.
324 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial. 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 179.
325 MILL, Alfred. Tudo o que você precisa saber sobre ECONOMIA. 1. ed. São Paulo: Editora Gente, 2016. p. 205.
326 BAGNOLI, Vicente. Direito e Poder Econômico. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 266.
327 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial. 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 185.
328 Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/Pre/CMN/Entenda%20o%20CMN.asp>. Acesso em: 9 maio 2017, às 22h15.
329 BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico e Concorrencial 7. ed. Thomson Reuters. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 190.

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Temas de direito constitucional / Alexandre Izubara Mainente Barbosa (organizador), Luiz Sales do Nascimento (coordenador) – Curitiba: CRV, 2017.

Bibliografia
ISBN 978-85-444-2012-6
DOI 10.24824/978854442012.6
1. (Neo)Constitucionalismo. 2. Direitos Fundamentais. 3. Administração Pública. 4. Poder Judiciário. 5. Poder Econômico. I. Título II. Série
CDU 342.4(81) CDD 342
Índice para catálogo sistemático
1. Direito constitucional 242

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