Reportagem: Edilana Damasceno
Edição: Elena Wesley
Dados: Paulo Mota e Samantha Reis
Artes: Emilia López Capa, Misael Gonçalo e Nícolas Noel
Eles pegam aquilo que historicamente o Brasil criou das nossas imagens e produzem fake news contra a gente”.
O relato desta mulher travesti participante da pesquisa sintetiza as percepções levantadas na Análise do Ecossistema de Informação (IEA) sobre população negra LGBTQIAP+, uma parceria do data_labe com a Internews. A partir de informações coletadas em formulário online e em grupos focais, a pesquisa revela como o discurso de ódio e a desinformação afetam estas pessoas, sobretudo em um contexto eleitoral, período em que a análise foi realizada.
A metodologia propôs a avaliação de sete dimensões do ecossistema: cenário da mídia local, necessidades de informação, produção e movimento de informação, dinâmica de acesso à mídia, uso e impacto da informação, confiança social e influência das partes interessadas. Ao todo, foram 175 respondentes, com residência na cidade do Rio Janeiro, sendo a maioria da Zona Norte.
O estudo ocorreu entre os meses de setembro e dezembro de 2022, no contexto das eleições para deputados, senadores, governadores e presidente. Cerca de 55% das pessoas respondentes sentiram que o discurso de ódio é maior durante o período eleitoral. Os principais agentes dessas violências seriam o ex-presidente Jair Bolsonaro, seus apoiadores mais radicais e as redes sociais. Um caso emblemático nesse período foi a publicação Em agosto de 2022, a esposa do ex-presidente, Michele Bolsonaro, publicou um ataque a religiões de matriz africana em suas redes sociais.
Apesar da potencialização durante as eleições, a violência é percebida pela população negra LGBTQIAP+ no cotidiano. Pelo menos 98% das pessoas respondentes relataram que já sofreram algum tipo de discriminação ou violência racial. Quando questionadas sobre discriminação e violência sexual e/ou de gênero, o percentual de afirmativas foi de 92%. A pesquisa também aponta que uma a cada quatro pessoas já sofreram tais violências de forma recorrente.
As duas faces da internet: principal fonte de consumo de informação deixa público exposto a discurso de ódio e desinformação
Oito a cada dez pessoas negras e LGBTQIAP+ já foram vítimas de discurso de ódio. Entre as que responderam o questionário, 67% relataram já terem sido vítimas de discurso de ódio, sendo 15% no ambiente on-line, 7% apenas de forma presencial e 45% das duas formas. O estudo sugere que a vulnerabilidade econômica desta população pode favorecer sua exposição às violências na vida online. Quase 75% das pessoas entrevistadas disseram que utilizam a internet para se comunicar e obter informações. Como as provedoras de internet no Brasil restringem o tráfego de dados, é comum que os pacotes de dados acabem rapidamente e ofereçam acesso somente às redes sociais da empresa Meta – Facebook, Whatsapp e Instagram. Assim, por depender do consumo de informação a partir das redes sociais, a população negra LGBTQIAP+ do Rio de Janeiro ficaria mais exposta à desinformação e ao discurso de ódio nestes canais.
Discurso de ódio é frequente nas mídias sociais e nas tradicionais
Mais de 30% das pessoas relatam já terem se sentido violentadas por influenciadores ou comunicadores. Canais como Rede Bandeirantes e SBT foram citados como propagadores de desinformação e discurso de ódio a respeito da população negra LGBTQIAP+. A confiança dos meios de comunicação foi medida pela pesquisa de forma a revelar que 60% não se sentem representados pelas mídias tradicionais.
A credibilidade no governo também chegou a apenas 34% das respostas, o que é visto pela equipe de pesquisa como uma consequência do cenário de desinformação impulsionado pelo governo Bolsonaro e que se desdobrou nos canais digitais e nas redes sociais.
Por outro lado, o público sinaliza que tem em outras mídias, em coletivos e em organizações não governamentais a confiança para consumo de informação: 29% das pessoas sente muita confiança nas informações provenientes de organizações não governamentais, 28% em informações de coletivos e 23% para informações provenientes da mídia privada tradicional. Os dados mostram que a desconfiança pode ter relação com a falta de representatividade.
Ao longo do estudo constam diversos depoimentos anônimos coletados durante as escutas com os grupos focais. Em um deles, um homem negro transmasculino exemplifica como a desumanização do povo negro é propagada pela mídia tradicional. “O que eles passam na mídia é o olhar de que sempre que os moradores são os verdadeiros grandes vilões da situação, enquanto eles entram na nossa comunidade e simplesmente praticam o genocídio do nosso povo”.
Metodologia humanizada: o público da pesquisa é o mesmo que compõe a equipe de trabalho
Para Roberta Ribeiro, psicanalista clínica e uma das pesquisadoras do IEA, um dos diferenciais da elaboração do estudo é o respeito pelo público-alvo. A especialista explica que é comum que pessoas negras e LGBTQIAP+ tenham dificuldade em participar de pesquisas devido a serem tratadas pelas instituições como objetos de estudo. “Muitas organizações tratam essa comunidade como pessoas marginais, na experiência de usar o que eles têm a oferecer, mas sem realmente considerá-los”, conta a pesquisadora, que integrou a equipe junto ao cientista social Flávio Rocha, à graduanda em Conservação e Restauração Joyce Reis e ao doutorando em Saúde Coletiva e especialista em Gênero e Sexualidade, Leonardo Peçanha.
O coordenador de dados do data_labe, Paulo Mota, acrescenta que o relatório traz uma seção com recomendações de práticas a serem adotadas pelas mídias, pelo Estado ou pela sociedade em geral para a mitigação do discurso de ódio e da desinformação contra pessoas negras LGBTQIAP+ como também para o fortalecimento desse grupo.
“É uma pesquisa inovadora, não apenas por trazer as pessoas negras LGBTQIAP+ para o protagonismo do tema, como também por propor medidas que tornem o ecossistema da informação mais saudável, mais democrático, mais acolhedor. A ideia é que este IEA seja uma ferramenta para que tenhamos um ambiente livre de violências”, destaca Paulo.
Saiba mais sobre a metodologia da pesquisa aqui.
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