Contando os mortos pela dengue. Até quando? - por Rivaldo Venâncio da Cunha, Lucia Teresa Côrtes da Silveira e André Machado de Siqueira

Contando os mortos pela dengue. Até quando? - por Rivaldo Venâncio da Cunha, Lucia Teresa Côrtes da Silveira e André Machado de Siqueira

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Em continuidade à série do blog do CEE-Fiocruz sobre dengue, reunindo análises de pesquisadores e formuladores de política pública, o artigo abaixo apresenta quatro premissas a partir das quais os autores formulam perguntas e possíveis respostas. Tomam com base a experiência que adquiriram acompanhando diversas epidemias da doença no Brasil. Leia a seguir. 

A exemplo do que temos observado ao longo das últimas quatro décadas, uma vez mais o Brasil se vê diante de uma nova epidemia de dengue. Como nas epidemias anteriores, semana após semana, atualizamos os números de casos e de mortes causados pela doença. Mas ao analisar esses números uma pergunta se torna inevitável: até quando continuaremos contando os mortos pela dengue, no Brasil?

No ano de 2024, o Brasil já superou em quase três meses, os números recordes de 2023, de cerca de um milhão e seiscentos mil casos da doença, e igualou o número de mortos, entre óbitos confirmados e em investigação, aos números de todo o ano de 2023.

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Na tentativa de entender esse complexo processo, sistematizamos algumas premissas, a partir das quais formulamos perguntas e possíveis respostas baseadas em experiência adquirida acompanhando diversas epidemias de dengue no Brasil. 

Premissa 01: as epidemias de dengue continuarão ocorrendo no Brasil, independentemente da vontade dos gestores ou gestoras das três esferas de governo: federal, municipal e estadual, bem como de nossa ministra da Saúde. Claro, continuarão ocorrendo se uma nova tecnologia para controle de vetores ou uma vacina não estiverem disponíveis para utilização em larga escala, o que ainda não é a nossa realidade atual.

Premissa 02: as epidemias de dengue são graves problemas de saúde pública, cuja origem e consequente solução (definitiva), estão para além do nosso sistema de saúde, fora da governabilidade do nosso SUS. 

Premissa 03: as epidemias de dengue são previsíveis com razoável antecedência, desde que os dados acerca da suscetibilidade da população, circulação dos sorotipos virais, dos índices de infestação vetorial e dos casos notificados, estejam sendo adequadamente monitorados. Nas regiões endêmicas, epidemias de dengue devem ser consideradas “endêmicas”, e a preparação para enfrentá-las deve estar presente nos planejamentos governamentais anuais.  

Premissa 04: durante as epidemias de dengue, as mortes delas decorrentes são evitáveis, com raras exceções.

É sobre essas mortes que gostaríamos de dialogar. As demais premissas serão objeto de reflexões futuras. Por serem mortes evitáveis, será mesmo que é a doença que mata?

Podemos afirmar que as mortes por dengue além de evitáveis são, em sua grande maioria, fruto de alguns erros históricos. Ao longo de décadas acompanhando epidemias de dengue, participando da revisão dos óbitos, podemos afirmar que são três os principais tipos de erros cometidos e decisivos para a ocorrência dos óbitos por dengue.

O primeiro tipo de erro é aquele em que os doentes e/ou seus familiares, pelos mais diversos motivos, subestimam o potencial de gravidade da doença, e por isso não procuram em tempo hábil o atendimento em uma unidade de saúde. E quando se dão conta da gravidade, muitas vezes, a procura por assistência é tardia, com o quadro de choque já instalado de forma irreversível.

O segundo tipo de erro é aquele em que os doentes e/ou seus familiares têm consciência da potencial gravidade da doença, procuram em tempo hábil atendimento em uma unidade de saúde, mas, infelizmente, não são atendidos. Ao chegarem à unidade de saúde, encontram a porta de entrada visivelmente desorganizada, com improviso no acolhimento e na classificação de risco, situação que gera longas filas e a consequente demora para o atendimento. Devido às longas horas de espera, muitas vezes sem sucesso em conseguir atendimento, ou por serem encaminhados equivocadamente a outra unidade de saúde, os doentes desistem e vão embora, para baterem em outra porta muitas vezes fechada, ou retornarem para suas casas. Situação que representa a perda de oportunidade para orientação ou intervenção adequadas, que poderiam salvar algumas vidas. Muitas vezes, dois ou três dias depois da busca frustrada por atendimento em uma unidade de saúde, esses doentes, devido ao agravamento da doença, buscam então o atendimento de urgência, com quadro clínico de maior gravidade – muitas vezes irreversível.

Durante esses quase três meses de 2024, diversas localidades que estão enfrentando epidemias têm estado de emergência decretado e mantêm o tempo de espera para o primeiro atendimento e consequente classificação de risco, superior a três ou quatro horas. Considerando que sete entre dez estados com os mais elevados coeficientes de incidência de dengue em 2024 já tinham cenário de incidência igual em 2023, excluindo-se o Acre devido ao Oropouche, tal fato demonstra que houve tempo hábil suficiente para organização da rede  assistencial, possibilitando atendimento mais humanizado, que ao reduzir o sofrimento dos doentes, reduz as formas graves e os óbitos pela doença.  Nos outros três estados com números não tão evidentes quanto a possíveis epidemias, pode-se esperar uma desorganização inicial que as emergências em saúde causam, mas passados esses instantes iniciais, a desorganização não tem mais razão de existir, modelos, exemplos, soluções possíveis não faltam. O Ministério da Saúde tem manuais orientadores aos gestores para organização de serviços, e é justamente a organização, que permite atender o maior número de doentes, o mais rápido possível e da melhor maneira possível, para se evitar os casos graves e os óbitos.

O terceiro e, provavelmente, mais comum tipo de erro é aquele em que os doentes e/ou seus familiares têm consciência da potencial gravidade da doença, procuram em tempo hábil atendimento em uma unidade de saúde e, com maior ou menor demora, são atendidos. No entanto, a presença de sinais clínicos de alarme ou gravidade não são percebidos pela equipe que o atende, razão pela qual orientam o doente a voltar para casa, quando na verdade, deveriam orientá-lo a permanecer em leito de observação ou internação, com hidratação venosa em curso, até que os sinais clínicos de gravidade fossem superados. Da mesma forma, aqui ocorre o que já foi descrito nos dois primeiros tipos de erroso doente também ficará em casa e quando perceber que está mais grave, vai retornar à unidade de saúde, com o quadro clínico já mais deteriorado, e muitas vezes irreversível. Ou seja, o momento oportuno para tratamento do doente foi perdido, já que a gravidade do quadro não foi adequadamente reconhecida pela equipe que o atendeu inicialmente.

Cabe destaque que, na maioria das vezes, a desorganização da rede assistencial está na raiz desse terceiro tipo de erro. Nessas circunstâncias, os profissionais que estão na linha de frente, não dispõem de estrutura ou capacitação adequadas para a realização da classificação ou estadiamento de risco dos doentes que procuram a unidade. Nesses casos, geralmente a unidade não organizou a porta, e mantém o cruzamento de fluxos de dengue e de outras demandas, todos ficam numa mesma fila, juntos, unidos e misturados, como diriam o poeta da Vila, Zé Katimba e Toninho Professor. Ou seja, a unidade não organizou a porta de entrada e o acolhimento específicos para os doentes com quadro clínico suspeito de dengue. Esse fluxo cruzado tem sido uma das razões para a excessiva demora para o primeiro atendimento. Dificilmente usando a classificação de risco comum a todas as portas, no lugar da classificação que faça o estadiamento de risco específico para dengue, o paciente de dengue será classificado para ser atendido com a maior rapidez que a gravidade de seu caso exige. É sempre bom lembrar que, nesse primeiro atendimento, a classificação de acordo com a gravidade do quadro clínico de dengue é fundamental, para identificar os doentes que tenham sinal de alarme ou gravidade e condições clínicas especiais e/ou risco social ou comorbidades que possam potencializar a gravidade na evolução da doença, ou que sinalizem a necessidade de cuidados diferenciados.

Não custa lembrar que no processo de organização das portas de entrada a atuação multiprofissional é determinante a fim de mudar para melhor a situação acima descrita. Para tal a enfermagem tem papel imprescindível no estadiamento oportuno do risco dos pacientes,  na instituição das primeiras medidas de suporte ao doente, como é o caso da solicitação do hemograma e  do início imediato de hidratação venosa, nos casos preconizados pelo manual e pelo fluxograma de atendimento ao paciente do Ministério da Saúde.

Por outro lado, observa-se também alguns equívocos na gestão organizacional assistencial na resposta as epidemias de dengue, entre elas a instalação de tendas de hidratação não climatizadas; sem leito de suporte para intercorrências de maior gravidade, os chamados “leitos vermelhos”; sem laboratório que disponibilize pelo menos hemograma na modalidade point of care testing;  distantes de unidades de saúde que disponibilizem suporte assistencial para dar mais segurança ao cuidado aos pacientes; com funcionamento restrito aos horários diurnos, sem considerar que alguns pacientes necessitam de continuidade assistencial em leito de observação por um período mais prolongado, até a reversão do quadro de gravidade; com profissionais de enfermagem e médicos em número insuficiente; sem disponibilidade rápida de transporte dos casos mais graves para unidades de maior complexidade e sem a retaguarda regulada dos leitos hospitalares. 

Necessário ainda dizer que o ideal para a resposta a epidemias, é que o planejamento prévio na forma de planos de contingência de todos os estados e municípios, conforme prescreve o Ministério da Saúde e as Organizações Mundial e Pan-americana da Saúde, nos diversos documentos que vem sendo (re)publicados e atualizados nas últimas décadas para resposta à epidemia de dengue, e mais recentemente para epidemias de arboviroses.  De preferência com o componente assistencial dos planos, elaborado de acordo com as orientações do Ministério da Saúde, que tratam da organização dos serviços de assistência em saúde no caso de epidemia de dengue e de arboviroses. Vale destacar que os documentos orientam e norteiam, mas os detalhes dos planos e a definição de estratégias têm de ser feitos pelos estados e municípios, que são os entes que melhor conhecem seus territórios e especificidades das suas redes e que podem organizar a assistência de forma mais eficiente.

Por derradeiro, é desnecessário dizer que a dengue não mata, o que mata na dengue é a desassistência e a desatenção ao potencial agravamento que os pacientes podem apresentar principalmente quando a febre desaparece. Esse momento quando negligenciado leva aos casos graves e aos óbitos evitáveis.

*Rivaldo Venâncio da Cunha, médico infectologista, pesquisador da Fiocruz; Lucia Teresa Côrtes da Silveira, médica, pesquisadora do Grupo de Ensino  e Pesquisa de Emergência e Saúde em Desastres (Gepesed/UFRJ); André Machado de Siqueira, médico infectologista, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).