Arte

Por Ana Carolina Ralston*


Vik Muniz: a leveza e o humor como ferramentas transformadoras na arte contemporânea — Foto: Bispo
Vik Muniz: a leveza e o humor como ferramentas transformadoras na arte contemporânea — Foto: Bispo

Existem dois adjetivos que há tempos parecem incomodar os intelectuais que circundam a arte contemporânea: o bonito e o engraçado. Se alguma obra traz humor ou dá ênfase excessiva à beleza, pode apostar que algum crítico contestará sua qualidade. Isso não começou com Vik Muniz, mas é fato que o artista paulista de projeção internacional ostenta esses dois aspectos de forma sistemática em sua produção – com extrema destreza, diga-se. Basta lembrar de Marcel Duchamp (1887 -1968) e seu famoso urinol, ou de outros tantos que usaram de um des - ses atributos para confrontar e deslocar o pensamento do espectador rumo a novas direções, para entender a relevância do humor e da irreverência na esfera da arte. Em entrevista exclusiva sobre o assunto, Vik conta a seguir como a risada faz parte de seu projeto de vida.

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer dizia que “o bom humor é a única qualidade divina do homem”. A presença do humor nos leva a um lugar de autoaceitação e tira a seriedade de ser quem se é. O que significa o humor para você?

A filosofia sempre falou sobre o tema, porque o humor é de fato um fenômeno incrível – não à toa Schopenhauer o coloca como uma qualidade divina. Sou uma pessoa tida como bem-humorada, engraçada para muitos. E ser engraçado, a meu ver, tem a ver com leveza. Acredito que é a partir da leveza que conseguimos chegar aos lugares mais interessantes e verdadeiros. Por isso, digo que a erudição é um negócio muito chato. Eu não gosto nada de gente erudita, cansa demais. Gosto da profundidade que a leveza e o humor trazem para as discussões.

Medusa Marinara (1997) — Foto: Divulgação
Medusa Marinara (1997) — Foto: Divulgação

Suas obras carregam doses preciosas de humor, costumam tirar o espectador do estado único de deslumbramento, brincando com as funções cognitivas. Como você vê essas relações na sua produção?

Eu trabalho muito com ilusões de ótica. Acho muito interessante como o cérebro tenta corrigir o que estamos vendo, tenta compensar para que enxerguemos o que é tido como certo. Acredito que a arte também nos coloca em uma situação na qual temos que refazer nossa relação com a realidade – e isso acontece no humor. Quando conto uma piada, por exemplo, vou construindo uma história, colocando partes diferentes uma em cima da outra e você, ouvinte, vai me acompanhando na construção dessa narrativa. Em um determinado momento, eu tiro uma parte essencial dessa construção, e a coisa inteira desmorona. Quando isso acontece, tudo aquilo que você está relacionando logicamente cai junto, e experimentamos um momento de profunda liberdade, que expressamos por meio de espasmos, as famosas risadas.

Dois Pregos (1988), trabalho que integra o acervo do MoMA de Nova York  — Foto: Divulgação
Dois Pregos (1988), trabalho que integra o acervo do MoMA de Nova York — Foto: Divulgação

Dentre tantas obras com humor que você produziu, qual em especial lhe chama a atenção, agora que estamos falando sobre o tema?

Uma das primeiras que me vêm à cabeça é Dois Pregos [1988], atualmente parte do acervo do MoMA [de Nova York]. A obra nada mais é que uma fotografia de um prego na parte inferior da imagem, pregada na parede com o mesmo tipo de prego, em um ângulo idêntico e iluminada de um jeito que faz ambos projetarem a mesma sombra. Quando você mexe a cabeça, um prego mexe e o outro não, como num truque de cartas. O que acho bonito em mágicas assim é a simplicidade. Quando as pessoas veem essa obra, costumam rir. Para mim, elas estão rindo delas mesmas, da própria incapacidade de ver que uma coisa tão simples pode iludir.

Existe uma geração de artistas que usou o humor ao longo da história da arte, de Marcel Duchamp e seu mictório ao brasileiro Nelson Leirner e suas ácidas colagens. Como você enxerga o papel do humor na arte contemporânea?

Acho que a principal função da arte hoje é tirar você do lugar onde está, é deslocar o espectador de alguma forma. O humor também é assim, possui uma capacidade singular de nos fazer reconfigurar a relação com as coisas. Dessa forma, ele tem sido uma ferramenta eficaz na discussão da política na contemporaneidade, principalmente quando há muita polarização. O humor cria um meio de campo. Mesmo quando é tendencioso, ele liberta as pessoas para que possam ampliar os pensamentos. Costumo dizer que os artistas são aqueles que comem a comida do rei para ver se tem veneno. E, assim, comemos a comida envenenada da humanidade inteira. Precisamos nos expor a todos os venenos para criar imunidade e traduzir o mundo para as pessoas, mostrar outro viés da história.

Escultura Caveira de Palhaço (1989) — Foto: Divulgação
Escultura Caveira de Palhaço (1989) — Foto: Divulgação

Muitos artistas que utilizam o humor como parte de suas estratégias conceituais já foram alvo de preconceito. Isso já aconteceu com você?

Já sofri muita crítica por ter essa abertura ao humor. Parece que tanto o humor quanto a beleza caem mal no universo das artes. Isso é uma grande besteira, já que para ambos é necessário inteligência. Existem pessoas que, quando veem uma obra de arte com algum aspecto humorístico, imediatamente a descartam como uma produção “não séria”. Como se a arte tivesse que ser sisuda, cheia de sofrimento. Lembro-me uma vez, numa exposição em Turim, em que o galerista me pediu para que não risse muito, já que a arte povera é séria. Eu caí na risada. Respondi na mesma hora que ele não deveria ficar preocupado, já que minha arte era de pobre mesmo, e não “povera”!

Auto-Retrato (2003), em que o artista compõe sua própria imagem a partir de fragmentos circulares de papel extraídos de páginas de revistas — Foto: Divulgação
Auto-Retrato (2003), em que o artista compõe sua própria imagem a partir de fragmentos circulares de papel extraídos de páginas de revistas — Foto: Divulgação

O Brasil vive um momento em que o humor tem sido questionado de forma sistemática, por muitas vezes caminhar entre limites éticos. Alguns discursos de ódio, por exemplo, podem estar disfarçados de piadas infames. Qual o papel da arte nesse quesito?

Acredito que esse lugar intelectual do humorista tem que ser preservado em todos os tipos de arte. Estranho as pessoas serem juízes de palhaço. Como é que você vai julgar uma palhaçada? Dentro do humor, existe um espaço importante de confrontação. O humorista nos faz ver coisas sob um aspecto inesperado e isso é essencial para a sociedade. Eu adoro piada boba, inclusive são as minhas preferidas, aquelas que têm a pretensão apenas de fazer você pensar em algo que nunca havia pensado.

Parece que tanto o humor quanto a beleza caem mal no universo das artes. Isso é uma grande besteira, já que para ambos é necessário inteligência
— Vik Muniz

Seu humor extrapola o trabalho e o vemos também em suas redes sociais. Enquanto muitos artistas preferem fazer dessas páginas o portfólio profissional, a sua parece mais uma reunião de memes e referências. Como você conecta esses dois lugares?

Estava no Carnaval e fui parado por uma menina bem jovem que disse me seguir nas redes sociais e adorar minhas postagens. Um colega que estava perto entrou na conversa e esclareceu que, na verdade, eu era artista plástico, ao que a menina respondeu: “Ah, você também é artista?”. Comecei a rir na hora. Ela achou mesmo que minha conta era um canal de memes. A arte, assim como o humor, cria ambiguidades. Hoje, minhas redes são referências menores que coleciono. Mais que a obra final, me interesso em mostrar o processo cognitivo das coisas que construo.

Quadro Metachrome (Untitled, 1976, after Tomie Ohtake), deste ano, em que homenageia a pintora nipo-brasileira — Foto: Divulgação
Quadro Metachrome (Untitled, 1976, after Tomie Ohtake), deste ano, em que homenageia a pintora nipo-brasileira — Foto: Divulgação

Qual foi a última obra que produziu? E se o humor está atrelado ao deslocamento, qual é o deslocamento presente nela?

A última obra que fiz foi uma homenagem a Tomie Ohtake, que está nos representando na Bienal de Veneza deste ano. Nara Roesler [galerista que representa Tomie e também Vik Muniz] tinha uma relação profunda com a artista e me fez esse pedido muitos anos atrás. Agora, resolvi realizar. Confesso que fiquei receoso em fazer essa obra, já que Tomie tinha uma pintura muito delicada e sutil, quase etérea. A minha reinterpretação ficou com pedacinhos de pigmento, cheia de detalhes e texturas. Talvez esteja nessa espécie de sujeira, na ambiguidade dos pigmentos que usei, parte desse deslocamento.

*Matéria originalmente publicada na edição de maio de 2024 da Casa Vogue (CV461) , disponível em versão impressa, na nossa loja virtual, e para assinantes no app Globo Mais.

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