No curto intervalo dos últimos dois anos, assistimos atônitos ao surgimento de ferramentas de inteligência artificial generativa – isto é, criadora de conteúdo original – que desde o berço carregam o rótulo de revolucionárias. Uma delas, o software DALL-E 2, da startup OpenAI (a mesma do muito comentado ChatGPT), é capaz de gerar imagens a partir de comandos simples de texto. Você escreve, por exemplo, em linguagem corrente e não de programação,“crie uma imagem no estilo Paul Gauguin de um rapper sobre um skate entre nuvens no céu” e, em segundos, voilà, uma primeira resposta visual referente à sua descrição aparece na tela.
Um pouco mais novo e bem semelhante é o Midjourney, aplicativo apresentado ano passado pelo empreendedor David Holz, em São Francisco, Estados Unidos, que causou polêmica em março após o artista digital Paolo Xavier usá-lo para criar imagens virais de personalidades como o papa Francisco e Donald Trump, confundindo até parte da imprensa tradicional – e resultando em críticas sobre o potencial desse tipo de IA na disseminação da desinformação em massa.
É verdade que convivemos há décadas com equipamentos que contêm inteligência artificial, ou seja, tecnologias derivadas da ciência da computação que, a partir da inserção de um grande volume de dados, executam funções avançadas, como assistentes de voz, reconhecimento facial ou os algoritmos das redes sociais. Mas o salto agora nos leva a outro patamar e chega com força, entre outras áreas, aos estúdios de design, arquitetura e urbanismo. “Os efeitos nesse setor atingem níveis estruturais das disciplinas, pois não são mais ferramentas que estendem as capacidades mecânicas dos projetistas, mas soluções técnicas de interlocução, atuando como um assistente ou coprojetista”, diz o pesquisador e arquiteto Vinícius Juliani Pereira, mestre em Tecnologia da Arquitetura pela FAU-USP com dissertação sobre a interação entre arquiteto e inteligência artificial.
Conhecimento é poder
Não se trata, portanto, de mais um software como o AutoCAD ou o SketchUp, que auxiliam sobremaneira na elaboração de projetos e na criação de modelagem em 3D. Até mesmo as bibliotecas BIM (sigla em inglês para Modelagem da Informação da Construção), capazes de analisar conjuntos imensos de dados acerca de determinado projeto, sugerir as melhores soluções para a performance energética ou o desempenho térmicolumínico de edifícios, têm lá suas limitações – ao menos por enquanto. O que assombra ou causa admiração é que a IA do tipo generativa entra na esfera da cocriação dos projetos, cujas fronteiras, bem sabemos, ainda são desconhecidas.
Diante das novidades, muitos profissionais da área já se questionam como será o futuro (tão presente) da profissão. Para Vinícius, o uso de IA pode abrir novas formas de comunicação entre clientes e projetistas, auxiliar na resolução de problemas complexos na escala urbana e até criar nichos de trabalho dentro das disciplinas. “Por outro lado, a mesma tecnologia vai ser capaz de acentuar a precarização do mercado de trabalho, ameaçando escritórios de pequeno e médio porte, e reduzir a atividade de projeto a uma análise combinatória”, diz ele.
Com visão otimista, a arquiteta e designer Fernanda Marques prefere apostar nas vantagens que essas tecnologias podem gerar. “Não acho que a parte criativa será atingida tão cedo, porque a máquina ainda não alcança esse nível, mas ela pode ajudar como inspiração ao longo do processo criativo. Além disso, podem surgir novas profissões no estilo piloto de drone, algo que não existia até pouco tempo atrás”, ressalta Fernanda, que já explorou ferramentas de inteligência artificial, mas sem aplicá-las de fato. Para ela, os profissionais precisam experimentar, saber como funcionam. “Quem não estiver familiarizado e não se unir a elas vai ser carta fora do baralho”, define.
De um jeito ou de outro, sempre foi assim. A cada nova tecnologia, mudamos a maneira como trabalhamos, querendo ou não. Na rotina dos escritórios de arquitetura e design, o computador pessoal é parte indispensável desde que foi popularizado, no final dos anos 1980. E, a cada novidade, um novo modus operandi entra pela porta para ficar. O arquiteto Arthur Casas revela que quando o AutoCAD surgiu, seu escritório foi um dos pioneiros no uso do programa, apesar da resistência dos arquitetos e desenhistas técnicos que trabalhavam com ele à época – e do próprio. “Eu confesso que tentei várias vezes aprender AutoCAD, mas não consegui. Continuar desenhando na prancheta foi meu único caminho. Desenhar com lapiseira e papel, no AutoCAD ou até saber utilizar a IA corretamente não define o bom arquiteto. Ainda não sei como iremos combinar as tecnologias da IA, mas é certo que isso acontecerá”, sentencia.
Fase de experimentações
Um dos expoentes da nova geração de arquitetos brasileiros e destaque na lista de profissionais abaixo dos 30 anos da revista Forbes, Leonardo Zanatta está de olho nas inovações. Ele já testou diversas ferramentas de IA, chegou a criar algumas peças de mobiliário usando o Midjourney, mas não pretende executar nenhuma delas por enquanto. “Primeiro preciso entender mais sobre a questão ética envolvida, porque a máquina não está criando do nada, ela recebeu bilhões de inputs da internet, o que quer dizer que posso estar copiando algo de outro designer, entende?”, pondera o arquiteto, que também é coordenador de projetos no Ohtake Arquitetura e Design. Segundo ele, vivemos um ponto de inflexão importante para a profissão. “A palavra de ordem é sempre ganhar tempo, mas os processos e o trabalho em geral já estão tão acelerados, tão cheios de informação, estamos tão atarefados que penso se não precisaríamos diminuir um pouco o ritmo”, questiona Zanatta.
Nessa toada de experimentação, a dupla de designers Nicole Tomazi e Sergio Cabral vivenciou recentemente um processo criativo mediado, digamos assim, pelo Midjourney. Em março, durante a Semana de Design de São Paulo, eles participaram da exposição O Que Você Quer Ser Quando Crescer?, na Estar Móveis, com curadoria de Felipe Morozini. Lá, apresentaram a coleção de móveis e objetos em miniatura feitos de feltro E aí, AI?, resultado de um experimento de cocriação com inteligência artificial em que os designers testaram vários estímulos com a tecnologia, e receberam dela uma série de possibilidades imagéticas. “Foi muito curioso perceber que as primeiras respostas da ferramenta eram super caretas em termos de design. Tivemos que melhorar a escrita, testar bastante, construir uma linguagem mais refinada para conseguir algo de fato interessante”, conta Nicole, que teve a preocupação de receber imagens de produtos exequíveis, passíveis de virar uma produção real. “Somos meio old school, nosso trabalho é muito mais manual, então queríamos tentar um caminho diferente e transformar essa solução digital em algo artesanal”, completa.
Avanços no Brasil e lá fora
Escritórios Internacionais de arquitetura e design estão em pleno namoro com a IA generativa. O diretor do Zaha Hadid Architects, Patrik Schumacher, anunciou recentemente que a maioria dos projetos do estúdio já usa imagens geradas por inteligência artificial. Comandado por Amanda Talbot em Sydney, Austrália, o Studio Snoop surpreendeu os visitantes do Salão do Móvel de Milão ao apresentar a primeira designer de IA do mundo, Tilly Talbot. É ela quem “assina” a rodada inicial de protótipos digitais de móveis e objetos, que deve virar coleção física até o final do ano. Em entrevistas à imprensa, Amanda contou que está aprimorando a assistente, incutindo-lhe princípios caros ao estúdio, como bondade, colaboração, conexão e valorização da natureza.
Já o artista e designer 3D Alexis Christidoulou, do estúdio Color C, tem produzido inúmeras composições inspiradoras de arquitetura imaginária, que mesclam os mundos real e digital – mexendo com nossas fantasias e aspirações. Em seus trabalhos, as práticas de IA (especialmente o Midjourney) estão sendo cada vez mais incorporadas na fase de desenvolvimento do conceito. De maneira semelhante, o artista e designer multidisciplinar Stefano Giacomello, fundador do Studio Rotolo, baseado em Montreal, no Canadá, tem usado IA para testar as possibilidades do app e a quantidade de resultados diferentes que podem ser produzidos a partir de um único prompt (um comando em texto).
No Brasil e no exterior, o arquiteto e designer Guto Requena é reconhecido pelo trabalho com design paramétrico computacional, que cria algoritmos para modelar formas, uma linguagem que se aproxima muito da inteligência artificial. Ele tem utilizado o Midjourney como experimentação inicial para simular imagens e padrões. “A questão é que a ferramenta só gera imagem bidimensional, que não vira arquitetura. Depois você tem que criar aquilo do zero, existe esse gap hoje”, avalia. Dois meses atrás, durante uma aula que ministrou no Master de Business e Inovação na Universidade Sorbonne, em Paris, Guto pediu aos alunos que criassem uma instalação de arte pública usando o aplicativo de IA. “Foi fantástico o resultado, porque eles são das áreas de marketing e administração, não são arquitetos. Para mim, isso é algo que questiona a nossa profissão. Como vai ser quando o próprio cliente puder criar coisas incríveis, gerar suas próprias referências?”, reflete.
Em tempos de mudanças climáticas e desafios gigantes para o futuro das cidades, o Atelier Marko Brajovic abraçou a IA como aliada para gerar cenários inovadores e solares – tem até uma profissional dedicada exclusivamente a pesquisar o tema –, partindo da ideia de que essas tecnologias podem auxiliar os criativos na proposição de soluções para sistemas complexos combinando a inteligência da natureza e a artificial. “Será um salto muito grande se pudermos fazer a IA mimetizar a sagacidade, os parâmetros, comportamentos e as funções da natureza”, diz.
Por enquanto, Brajovic tem feito uso do Midjourney para gerar moods conceituais e evocar ambientações a fim de apresentar seus projetos. “Temos tido boas experiências na comunicação de conceitos. Ela agiliza o trabalho e traduz em imagens algo que as palavras, muitas vezes, não alcançam”, afirma. No entanto, ele lembra que, embora muitas imagens e projetos arquitetônicos gerados por meio de IA e compartilhados em redes sociais sejam encantadores, eles não têm um pensamento estrutural e de materiais por trás, o que significa que ainda não são construtivos. Pelo menos, não nos próximos meses – a ver. “Daqui a pouquíssimo tempo vamos ter apps e softwares enviando pacotes de projeto em PDF, com renderizações, modelos 3D, prontos para irem para a obra ou para as fábricas digitais”, sugere o pesquisador Vinícius Pereira. “Se isso é ou não projeto ou arquitetura não vai importar dentro da realidade do capitalismo tardio.” Acompanhemos, bem de perto.
*Matéria originalmente publicada na Casa Vogue de julho. Garanta a sua aqui