Ana Wegner, editora para a popularização científica da Revista Brasileira de Estudos da Presença, CAPES/Université d’Artois, Arras, IDF, França.
A declaração de apoio às políticas e práticas da Ciência Aberta com IDEIA (Impacto, Diversidade, Equidade, Inclusão e Acessibilidade), feita pelo SciELO em 2023, deu impulso a transformações nas práticas editoriais da Revista Brasileira de Estudos da Presença. A revista empreendeu consideráveis mudanças em seu funcionamento – como a possibilidade de publicação de artigos em modo preprint, a práticas de divulgação de pareceres e de depósito de dados de pesquisa ligados a artigos publicados na plataforma da revista.
A Revista Brasileira de Estudos da Presença, tornou-se, assim, o primeiro periódico no campo das Artes Cênicas a aderir às práticas para uma Ciência Aberta no Brasil. O cuidado “em promover a diversidade, equidade, inclusão e acessibilidade, tanto na pesquisa quanto na sociedade” que promove o movimento Ciência Aberta com IDEIA já eram, no entanto, observáveis anteriormente a esta adesão.
A questão da equidade nas Artes Cênicas esteve no cerne de chamadas de artigos das seções temáticas, como Performance e Gênero I e II (Abril/Junho 2024 e Junho/Setembro 2024) e Performance et Transgênero (Julho/Setembro 2020). Inclusão e acessibilidade foram preocupações centrais das inúmeras chamadas sobre aspectos educacionais do teatro, como a seção temática Ação Cultural e Ação Artística. Poéticas negras na cena contemporânea (Outubro/Dezembro 2022) e Performance e Relações Étnico-raciais (Maio/Agosto 2017) propuseram repensar a diversidade nos temas e metodologias da pesquisa em Artes Cênicas.
O presente texto concentra-se na seção temática “Performance e Relações Étnico-raciais (2017)” como exemplo emblemático de pautas da revista que já estavam alinhadas às premissas de IDEIA. A chamada de artigos da seção, divulgada em 2016, lançou um convite aos pesquisadores e pesquisadoras não somente para pensar a representatividade e performatividade nas Artes Cênicas sob o prisma étnico-racial, mas também as práticas cênicas como meio de:
(…) dar visibilidade às diferenças por intermédio da garantia de direitos, visando, sobretudo, remover barreiras formais e informais, as quais impedem o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, a bens culturais, às universidades, às posições de liderança, enfim, ao acesso mínimo a um capital social e, notadamente, político por muito tempo inacessível a certos grupos.
Os autores e autoras que tiveram seus artigos publicados nesta seção temática consideraram a problemática a partir de abordagens múltiplas, explorando territórios geográficos, períodos históricos e linguagens artísticas igualmente plurais.
Tanto o artigo de abertura quanto o de fechamento da seção temática tangenciam questões de gênero e de estigmatização racial. Partindo do campo das Artes do Espetáculo, as discussões abrangem mídias diversas.
O artigo de Luc Schicharin (Université de Lorraine) estuda, assim, discursos e estratégias estéticas da performance drag king, demonstrando o risco da estigmatização de homens vindos de minorias étnicas e de populações pobres em diversas ações drag kings. O corpus estudado, situa-se no território norte-americano e comporta tanto práticas drag king do final dos anos 1990, quanto obras mais recentes de Del LaGrace Volcano e de 2Fik. O autor qualifica como pós-drag as “performances que abordam as intersecionalidades do gênero, da sexualidade, da raça e da classe sem reproduzir os estereótipos da hegemonia heterossexual branca” (Schicharin, 2017, 225).
Já em Entre Senhores, Sambas e Cervejas: a construção discursiva da mulata fácil no Brasil, Amanda Braga (Universidade Federal da Paraíba) se interessa pelo imaginário historicamente relacionado às mulheres negras e pardas no Brasil. A autora se apoia em uma iconografia particularmente reveladora, traçando um arco que vai de enunciados sobre a imagem destes fenótipos do período escravocrata até as atualizações e apropriações dessa memória na atualidade.
Figura 1. Publicidade da marca de cerveja Devassa (2011).
Ainda na linhagem de uma reflexão crítica dos estereótipos, Julianna Rosa de Souza (Universidade do Estado de Santa Catarina) debruça-se sobre a produção dramatúrgica brasileira para analisar a criação da personagem negra no teatro, contrapondo o Naturalismo e as dramaturgias Afro-Diaspóricas. No artigo Personagem Negra: uma reflexão crítica sobre os padrões raciais na produção dramatúrgica brasileira, a autora demonstra como as classificações raciais produzidas, principalmente, por cientistas naturalistas reforçaram representações paradigmáticas difundidas na cena teatral no decorrer dos séculos XIX e XX.
Deslocando a mesma problemática para outros continentes, em As Primeiras Narrativas Britânicas sobre a ilha de Bali: raça e civilização, Juliana Coelho de Souza Ladeira (Université Paris 8) observa como as manifestações espetaculares balinesas foram utilizadas como mote para o desenvolvimento de discursos científicos, que igualmente as classificavam segundo as raças das quais foram originadas. A autora analisa os primeiros escritos de dois administradores-historiadores britânicos no arquipélago malaio, Thomas Stanford Raffles e John Crawfurd, demonstrando a amplitude geográfica das teorias racistas do século XIX. A perspectiva histórica apresentada pelas duas autoras a partir de zonas geográficas muito distintas pode, de fato, colaborar para pensar a questão e mecanismos do racismo e suas ancoragens nas Artes da Cena igualmente na atualidade.
Figura 2. A representação de um balinês (à direita) e de um habitante de Papua (à esquerda)
Em outros artigos, outras dimensões performativas de matrizes estéticas afro-brasileiras são amplamente abordadas. Em Performance Negra e a Dramaturgia do Corpo no Batuque as autoras Renata de Lima Silva (Universidade Federal de Goiás) e Eloisa Marques Rosa (Instituto Federal de Brasília, Brasil) propõem uma análise das dramaturgias corporais dos batuques, mais especificamente da Suça, em Natividade, cidade do estado do Tocantins.
Assim como as duas autoras reivindicam, em suas metodologias, romper com fronteiras que separam arte e cultura popular, Jarbas Siqueira Ramos (Universidade Federal de Uberlândia), em O Corpo-Encruzilhada como Experiência Performativa no Ritual Congadeiro, apresenta conclusões de suas pesquisas de campo realizadas junto aos Catopês, da cidade de Bocaiúva em Minas Gerais. Apoiando-se nos escritos de uma das pesquisadoras que melhor desbravou caminhos para as especificidades da performance de matriz afro-brasileira, Leda Maria Martins (1995, 2003), o autor pensa a experiência performativa do ritual congadeiro a partir das noções de corpo-encruzilhada.
Figura 3. Roda de Suça durante o jogo do Mastro (2011).
Figura 4. Roda de Suça.
Figura 5. Tambores dos Ternos de Catopês de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (2007).
No vídeo que acompanha esta última publicação da Semana Especial da Revista Brasileira de Estudos da Presença, Celina Alcântara (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), uma das editoras responsáveis pelo dossiê temático, fala sobre os desafios de estabelecer os temas e as questões metodológicas que estiveram no cerne deste dossiê, especialmente no âmbito da pesquisa em Artes Cênicas, prolongando algumas das reflexões aqui desenvolvidas. E é com as palavras desta artista, docente e pesquisadora (transcritas do vídeo) que encerramos esta Semana Especial:
Ainda estamos construindo a maneira de abordar estas questões [das relações étnicos-raciais] que nos constituem e perpassam as nossas pesquisas em Artes Cênicas, tanto em nosso modo de se colocar como pesquisadores(as) […] quanto como pessoas que consomem essas pesquisas que são publicadas. Ao fim e ao cabo, a ideia da publicação é compartilhar o que está sendo produzido com aqueles e aquelas que virão depois de nós (e esse “depois de nós”, pode ser logo depois ou muitos anos depois da publicação ir ao ar). Nesse sentido, a Revista Brasileira de Estudos da Presença tem uma função muito premente: à medida que a gente divulga esses pensamentos nas pesquisas, a gente transforma o próprio status quo de pesquisas e o próprio campo de pesquisa. E isso, não só por dar visibilidade a estes temas, mas também por dar a possibilidade de outros tipos de referências a alunos de iniciação científica, graduação, pós-graduação e aqueles e aquelas que nem estão necessariamente no âmbito acadêmico.
Referências
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