Entenda o impacto da empresa que surgiu em uma garagem e ajudou a transformar o modo como lidamos com tecnologia
No seu celular, clique no logo do YouTube para abrir o app e ver o vídeo em realidade virtual (compatível com o Google Cardboard)
A Crist Drive é uma rua tranquila de Los Altos, uma pequena e rica cidade-dormitório de 30 mil habitantes na região hoje conhecida como Vale do Silício, na Califórnia (EUA). Em um sábado pela manhã no mês passado, crianças aprendiam a andar de bicicleta na via quase deserta ou jogavam basquete nos gramados nas entradas das casas e cães passeavam com seus donos.
No número 2.066, uma placa indica que a casa tem algo marcante que a distingue das outras: “Não ultrapasse. As fotos devem ser tiradas da rua”. Há 40 anos, o lugar era habitado pelo casal Paul e Clara Jobs e os filhos Patty e Steve -este transformou um dos quartos da casa em uma pequena fábrica.
Com o xará Steve Wozniak, com quem Steve Jobs fundou oficialmente a Apple Computer em 1º de abril de 1976, ele estava montando um aparelho que permitiria duas coisas inteiramente novas: criar programas de computador na sua própria casa, na sua própria máquina, sem ter de recorrer a um enorme servidor, e digitar comandos em um teclado e vê-los diretamente em um monitor de TV. Era um computador pessoal.
A produção saiu do quarto, teve a ajuda de parentes e amigos e foi transferida para a garagem. O produto, chamado Apple I, ganhou as ruas --na realidade, inicialmente apenas uma loja, a Byte Shop, em Mountain View (hoje conhecida por sediar o Google), perto dali.
“O produto não foi um enorme sucesso --menos de 200 unidades foram vendidas. Mesmo assim, aquele verão naquela garagem legendária representou a primeira vez que Steve juntou um grupo de pessoas para trabalhar duro e entregar algo inovador”, resumem Rick Tetzeli e Brent Schlender no livro “Como Steve Jobs Virou Steve Jobs” (editora Intrínseca).
O que começou naquela garagem, até o fechamento desta reportagem, era um negócio avaliado em US$ 604 bilhões. Há quem diga que a empresa, exceção ao design, pouco inovou. Seu grande mérito é perceber potencial em tecnologias já disponíveis e transformá-las em produtos. Nesta página, entenda como ela aplicou essa estratégia e gerou impacto em diferentes mercados, da computação à música.
Primeiro logo da Apple criado por Ronald Wayne, que a chegou a ser sócio da Apple, mas decidiu vender suas ações para Jobs e Wozniak ainda em 1976
Computadores ocupavam salas inteiras quando o homem pisou na Lua pela primeira vez, em 1969. Durante os anos 1960, eles eram usados para isso: calcular a trajetória de foguetes da Terra à órbita terrestre, pousar módulos em solo lunar e trazer de volta seus tripulantes vivos. Não fazia sentido -nem seria possível- ter um computador em casa. Até o Apple I chegar ao mercado.
Enquanto EUA e União Soviética disputavam a soberania aeroespacial com a ajuda de seus imensos mainframes, havia nos dois países quem visse o potencial das máquinas de calcular para pessoas comuns. Em 1965, a Olivetti, tradicional fabricante de máquinas de escrever, lançou um simples computador digital em Nova York, o Programma 101, com teclado, memória e capacidade de armazenamento em fitas magnéticas.
Entre 1965 e 1969, a União Soviética desenvolveu a série MIR de computadores desktop para aplicações de engenharia. O modelo MIR-2 tinha monitor e uma caneta usada para corrigir textos e desenhar na tela.
Não faltaram projetos para colocar computadores em cima das mesas de casas e escritórios, (daí o nome desktop computers). Mas foi o Apple II, com seu monitor e teclado integrados, a consolidar o formato em 1977. Junto ao PET 2001, da Commodore, e o TRS-80, da extinta Tandy, o desktop da Apple formou o que a revista especializada Byte chamou de “Trindade” --os computadores que, finalmente, chegaram às pessoas comuns.
Da trindade, o Apple II foi o maior sucesso. Em abril de 1977, a mesma revista Byte classificou o computador como “provavelmente o primeiro computador a se qualificar como eletrodoméstico”. Em maio do mesmo ano, Steve Wozniak, o engenheiro que fundou Apple com Steve Jobs, disse à revista que sua ideia de um computador era algo “pequeno, confiável, conveniente e barato”.
Não era exatamente a mesma ideia de Steve Jobs. Os designs seguintes da Apple foram mais ambiciosos, mas mais caros. O Lisa e o Macintosh traziam a novidade da interface gráfica e hardware mais poderoso, mas não puderam competir com os clones IBM, que rodavam Windows e eram mais baratos. Além disso, Jobs preferiu uma plataforma fechada, pouco compatível com equipamentos de terceiros.
A mudança do paradigma inicial imaginado por “Woz”, de um computador aberto e acessível, para o conceito de um sistema monolítico, perfeitamente integrado --uma obra de arte, como Jobs gostava de dizer--, ajudou a Apple a embarcar em águas difíceis, chegando à beira da falência.
Demitido pela condução obcecada mas desastrosa da empresa, Steve Jobs retornou à Apple em 1997 com um cargo temporário e a missão de reerguer a companhia que fundara. Antes mesmo dos sucessos do iPod e do iPhone, a mira do empresário voltou-se justamente para o computador pessoal, objeto que lhe consumira anos de dedicação. Depois de anos patinando, a Apple reinventou os PCs com os iMac coloridos e amigáveis.
Steve Wozniak, que efetivamente projetou os primeiros computadores da Apple
Tudo está ao alcance de um clique, dizem os sites de compra on-line, as redes sociais, os anúncios de loções contra calvície. Mas houve um tempo em que absolutamente tudo que se fazia em um computador pessoal --eles ainda eram chamados assim, por esse nome de eletrodoméstico-- precisava ser digitado. Copiar arquivos, jogar jogos, navegar por pastas, tudo era feito com comandos. No MS-DOS, o sistema da Microsoft, o mais temido deles, “format c:”, apagava todos os arquivos.
Foi dos laboratórios da Universidade de Stanford, no Vale do Silício, que saiu um protótipo de interface gráfica, num modelo que ainda é familiar: podia-se, usando um dispositivo bege, do tamanho de um punho fechado, de onde saía um fio que se conectava ao computador --parecia um rato--, mover um ponteiro para clicar em links, assim como fazemos hoje.
O mouse, e posteriormente suas janelas e botões clicáveis, só ganhariam holofotes com o Lisa, primeiro computador com interface gráfica da Apple, de 1983, e o Macintosh, de 1984. Mas não era um conceito saído exatamente das cabeças de Steve Jobs e de Steve Wozniak, o engenheiro por trás do Apple I e do Apple II, os PCs que lançaram a empresa ao topo do mercado tecnológico.
A ideia não era nova: comparada ao Lisa, já tinha uma década. Em 1973, a Xerox lançou o Altocomputer, com interface gráfica desenvolvida na PARC, a divisão de pesquisa e desenvolvimento da empresa que ficou conhecida pelas fotocopiadoras.
No filme “Piratas do Vale do Silício” (1999), há uma cena em que executivos da Xerox esperam preocupados pela chegada de Steve Jobs e equipe, convidados a conhecer a tecnologia do mouse. “Vamos entregar tudo a eles de graça”, diz uma engenheira. Em outra cena, Bill Gates, fundador da Microsoft, chega à sede da Apple para conhecer o Macintosh. Um de seus engenheiros nota uma bandeira pirata hasteada à porta da empresa.
Não se pode verificar a verossimilhança dessas cenas, mas o fato é que Apple, IBM e Microsoft usaram ideias desenvolvidas pela Xerox para criar seus sistemas operacionais com interfaces gráficas. A empresa de Jobs foi a primeira a perceber o quão acessível os cliques tornariam os computadores, mas Lisa foi um fracasso comercial e o Macintosh não teve destino muito melhor, somando vendas moderadas, aquém das expectativas.
No embate pelos cliques, quem ficou com o maior quinhão foi a Microsoft. Uma bem-sucedida campanha publicitária do Windows 95 e a possibilidade de o sistema operacional rodar em tipos diferentes de hardware --em oposição ao modelo fechado da Apple--, fez com que a Microsoft praticamente dominasse o mercado. Se se considerar todos os computadores pessoais vendidos na história, cerca de 90% deles rodam ou rodaram o Windows, segundo a consultoria Net Applications.
A redenção da Apple, que anteviu o aspecto lúdico e criativo das interfaces gráficas, veio com o primeiro iPhone, em 2007, com telas sensíveis ao toque. Antes dele, computadores portáteis, impossibiltados de usarem mouses, recorriam às canetas “stylus”. “Quem precisa de uma caneta?”, perguntou o fundador da Apple durante a apresentação do smartphone.
“Você precisa pegá-la, depois precisa guardá-la e você vai perdê-la”, continuou. “Credo. Ninguém precisa de uma caneta. Não vamos usar uma.”
Jobs e o Macintosh, lançado em 1984
Em 28 de abril de 2003, lá estava Steve Jobs em seu traje habitual: sapato, calça jeans, camiseta escura e lisa. O evento era o lançamento do iTunes Music Store, hoje chamada só de iTunes Store, a loja virtual da Apple, um complemento ao iTunes, reprodutor de áudio lançado dois anos antes. E, como muitas dessas apresentações, era a história sendo escrita pelo talentoso e polêmico empresário do Vale do Silício.
Naquele início de anos 2000, o mundo da música encontrava-se numa encruzilhada, sem saber qual rumo seguir frente ao avanço da pirataria na internet. O Napster, programa pioneiro de compartilhamento de arquivos sonoros, já era completamente difundido entre os usuários. A plataforma enfrentou diversos processos judiciais, sendo o mais famoso movido pelo Metallica. Parecia a ruína da indústria fonográfica. Até que Steve Jobs entrou em cena, com seus is: iTunes, iTunes Store e iPod.
O iTunes foi inovador no modelo de negócios: vender músicas on-line era algo inédito até então. Mas a parte operacional do iTunes não foi propriamente uma invenção da Apple. A empresa de Steve Jobs adquiriu o SoundJam, programa de reprodução de áudio que tinha sofisticados controles e personalizações para a época (o ano era 1999).
O programa foi reinventado com o nome de iTunes, o tocador de música da Apple, e lançado em 2001. Seria o pontapé inicial para o surgimento, dois anos depois, do iTunes Music Store.
A loja virtual da Apple revolucionou a distribuição de música digital de uma maneira ousada: comercializando canções pelo preço de US$ 0,99 cada, ou um mero café no Starbucks, como comparou Steve Jobs no anúncio. Na estreia, 200 mil músicas estavam disponíveis. Hoje, são mais de 43 milhões delas, de todos artistas, estilos e países que se possa imaginar.
A novidade abalou o mundo todo, das empresas que fornecem o conteúdo aos consumidores. “Foi uma mudança brusca. Primeiro, o conceito de vender música digital em tempos de pirataria. Segundo, o conceito de música a granel, uma ruptura no modelo de álbum com começo e fim, pensado com carinho pelos artistas”, diz Rafael Fischmann, editor-chefe do “MacMagazine”, blog especializado na Apple.
O número de 200 mil canções não foi maior na estreia porque houve dificuldade de convencer gravadoras e artistas a entrarem no modelo. Quatro meses e 10 milhões de músicas baixadas depois, o cenário era diferente e a adesão começou a crescer. Os entraves não pararam por aí. A entrada em outros países demorou por questões de direito autoral, como no Brasil, cuja estreia só aconteceu em 2011.
“Era um caminho que ninguém estava enxergando, e o Steve Jobs encontrou. Só que foi uma solução que padronizou o valor da música. O mercado perdeu a prerrogativa de ditar os preços de seus produtos, que passaram a ser controlados pela Apple”, aponta Luciana Pegorer, diretora-executiva da Associação Brasileira de Música Independente (ABMI).
Mais de uma década depois, o mercado da música já é totalmente atrelado ao digital, como mostram os números da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) referentes a 2015. O faturamento pela venda de músicas digitais e físicas ocupam a mesma fatia, 46% cada. Isso corresponde a US$ 6,9 bilhões (R$ 25 bilhões).
O iTunes atualmente é muito mais do que só uma loja de discos on-line e um reprodutor de áudio. A plataforma expandiu sua diversidade de produtos ao longo do tempo e oferece vídeos, filmes e aplicativos.
Mas o maior desafio para a Apple, agora, está em uma nova mudança, a qual a Apple não tem a dianteira: os internautas estão trocando downloads de músicas por serviços de assinatura de streaming, como o Spotify. O Apple Music, serviço da empresa que oferece streaming, estreou no fim do ano passado como uma tentativa da gigante da tecnologia de competir nesse contexto.
Primeira geração do iPod que chegou ao mercado em 2001
“Uma vez ou outra, surge um produto revolucionário que muda tudo”, disse Steve Jobs na apresentação no primeiro iPhone. Naquele 9 de janeiro de 2007, o chefão da Apple não estava apenas despejando retórica superlativa típica dos departamentos de marketing. Ele estava profetizando sobre o futuro do mercado de celulares e do mundo das comunicações em geral.
O primeiro iPhone definiu aquilo que hoje pensamos ser um telefone: um dispositivo retangular com tela de vidro sensível ao toque, capaz de receber apps (recurso acrescentado no iPhone 3G) e de fácil operação. Nem sempre foi assim.
Quando o iPhone foi lançado, os celulares tinham outra cara. Um dos maiores sucessos da época era o V3, da Motorola, um aparelho que exibia o hoje quase extinto design “flip” (que abre e fecha). Seus recursos eram limitadíssimos.
Como quase tudo que acontece com a Apple, ela não inventou o smartphone com tela sensível ao toque --a LG havia revelado em 2006 o LG Prada. Mas foi quem aperfeiçoou o conceito.
Em 2005, Steve Jobs percebeu que os telefones celulares poderiam dizimar o mercado do iPod, assim como já causavam grandes perdas para os fabricantes de câmeras digitais. Bastava cada celular ser também um tocador de MP3. Jobs então concluiu que deveria embutir um iPod em um celular.
Dentro da própria Apple, havia um projeto para a criação de um tablet e as pesquisas foram levadas para o projeto do telefone celular --sim, o iPad “nasceu” antes do iPhone. No ano e meio seguinte, a companhia se dedicou quase exclusivamente ao novo produto.
O projeto do iPhone rendeu frutos que beneficiaram toda a concorrência. Um deles é a existência do vidro super resistente conhecido como “Gorilla Glass”, presente atualmente em quase todos os celulares no mercado.
Ao procurar por alguém que produzisse um material do tipo, Steve Jobs chegou até a Corning, uma start-up americana que havia criado patentes relacionadas a um vidro resistente, mas que nunca havia sido produzido. Jobs então convenceu Wendell Weeks, executivo-chefe da Corning, a produzir o material em larga escala.
“Em seis meses, fizemos um vidro que nunca havia sido produzido”, relembrou Weeks na biografia de Steve Jobs escrita por Walter Isaacson. Uma fábrica de paineis de LCD foi convertida para produzir o Gorilla Glass. No dia em que o iPhone foi lançado, Weeks recebeu uma mensagem de Jobs: “Não poderíamos ter feito isso sem você”.
Outro pilar do smartphone moderno também foi popularizado pelo iPhone. Em julho de 2008, um ano depois de o telefone chegar às lojas, uma atualização do iOS trouxe a App Store, a loja de aplicativos que acrescentava conteúdo e novos recursos ao iPhone.
Abrir a plataforma para terceiros não se parece uma decisão tomada por Steve Jobs --e não era mesmo. O chefão da Apple sempre resistiu abrir seus aparelhos para que terceiros criassem programas. Mas ele foi pressionado por executivos, como Phil Schiller, até mudar de ideia.
A decisão não poderia ter sido mais acertada. Por muitos anos, a quantidade e qualidade dos apps para iPhone foram vistos como vantagem em relação aos rivais, incluindo o Android. E foi a ausência de apps um dos fatores para o sufocamento de outras plataformas, como o Windows Phone.
Sem apps de terceiros, por exemplo, hoje não teríamos WhatsApp, Uber e Instagram.
A concorrência demorou para absorver o golpe. O primeiro modelo com Android, o HTC Dream, saiu apenas em outubro de 2008. Tanto sistema quanto aparelho foram uma decepção. O iPhone passou a sofrer concorrência de verdade apenas em 2010, quando a Samsung lançou a linha Galaxy S - a aquela altura o Android já havia se tornado uma plataforma robusta e o problemas dos apps estavam sendo resolvidos.
A Apple não ficou nada feliz e resolveu processar a Samsung por quebra de patentes. Nos processos, a empresa de Steve Jobs alegava que detinha os direitos sobre o design do telefone: um retângulo de vidro com tela sensível ao toque com botão home e cantos arredondados. Qual celular não é assim?
Mesmo assim, a gigante coreana foi condenada em US$ 1 bilhão, mas o valor final da disputa foi decidido apenas no ano passado: US$ 548 milhões.
Perto de completar uma década de lançamento, o iPhone continua seu domínio. No ano passado, foram vendidos 231 milhões de unidades. Ao todo, 1,4 bilhão de smartphones foram vendidos no mundo, segundo a consultoria IDC. Quase todos têm com alguma inspiração no celular da Apple, seja no design ou no sistema operacional.
Assim, a profecia de Steve Jobs parece concretizada. O iPhone era mesmo um produto revolucionário.
O iPhone original, que não tinha 3G nem apps
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Textos: Bruno Scatena, Bruno Romani, Mateus Luiz de Souza e Isabel Seta
Edição: Felipe Maia
Design e Programação: Lucas Zimmermann
Edição de Vídeo: Douglas Lambert
Tim Cook, o presidente executivo da Apple desde 2011
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