Aproximação com brancos ensinou etnia a se identificar
Aproximação com brancos ensinou etnia a se identificar
Os Zo'é não se denominavam Zo'é quando começaram a conviver intensamente com os brancos, nos anos 1980.
A palavra, que significa "nós", era usada para dizer "gente mesmo". Mas o uso recorrente da expressão acabou por tornar-se um termo de autodefinição para eles.
Iniciava-se, assim, o estabelecimento de uma compreensão da diferença entre os Zo'é e os outros povos com que passaram a conviver desde aquele momento: os não índios, ou kirahi.
Depois, em contatos com outros índios, eles passaram a compreender que fazem parte de uma multiplicidade de etnias indígenas, diferentes dos brancos.
Essa compreensão é revelada com clareza em um trecho do filme "A Arca dos Zo'é" (1993), do cineasta Vincent Carelli e da antropóloga Dominique Gallois.
{{imagem=1}}
O documentário mostra a visita de um líder Wajãpi (pronuncia-se "uaiampi"), falantes de uma língua tupi muito parecida com a dos Zo'é, que vivem a leste, no Amapá.
Os dois povos provavelmente faziam parte de um mesmo grupo quando foram separados há alguns séculos. Hoje, entendem-se como brasileiros e uruguaios.
Quando o líder Wajãpi chega à aldeia Zo'é, um garoto fica admirado com a semelhança da cor de sua pele, e eles dizem: "Índio?!", usando o termo em português.
{{imagem=2}}
Diante da resposta positiva, o menino pergunta em sua língua, como contraprova: "Você caça macaco-gordo?" (referindo-se à carne mais desejada pelos Zo'é, que eles chamam kwata ike). Após ouvir outro sim, os dois riem juntos, em uma cena cena de plena empatia: eles se sentem semelhantes.
No início do contato, os Zo'é também foram chamados de Poturu, mas a palavra tampouco era um nome de sua etnia.
Quando os forasteiros, admirados com seus peculiares enfeites labiais, chamados de embe'pot, apontavam para eles, os indígenas respondiam dizendo Poturu, em referência à madeira de mesmo nome usada para a sua confecção. O termo acabou sendo compreendido como o nome da etnia. E explicavam o motivo para usarem o adorno: "O criador ensinou, não podemos desrespeitá-lo".
A difícil tarefa de decifrar uma língua indígena
A gestão de Sydney Possuelo à frente da Funai (Fundação Nacional do Índio) ainda se iniciava quando, em 1992, ele decidiu convocar a linguista Ana Suelly de Arruda Câmara Cabral para estudar a língua dos Zo'é e ensiná-la a outros funcionários do órgão indigenista.
"Eu tinha feito doutorado sobre a língua dos índios Kokama (também falantes de Tupi-Guarani, que vivem no Amazonas, no Peru e na Colômbia) e estava nos Estados Unidos em uma temporada de estudos quando a Funai me contatou. Eu disse: 'Grave uma fita deles falando, para eu conhecer mais'. Eu queria muito estudar índios amazônicos de recente contato", lembra a professora titular da UnB (Universidade de Brasília).
Foi assim que a linguista chegou à área dos Zo'é, um ano depois que a Funai passou a administrar o relacionamento da sociedade nacional com o grupo.
Os índios Kokama falam um Tupi-Guarani com muitas influências de outros povos e línguas. Quando Ana Suelly entrou em contato com os Zo'é, encontrou uma língua mais pura. "Quem conhece um Tupi-Guarani amazônico tem facilidade de aprender outras línguas do mesmo grupo."
{{imagem=3}}
Desde então, a professora produziu várias referências sobre a língua local, como o "Manual Linguístico de Apoio ao Atendimento de Saúde Junto ao Povo Zo'é" (2019), um dicionário ilustrado, escrito com o médico Erik Jennings para ajudar no atendimento de saúde aos Zo'é.