"Este é um filme de e sobre o amor ao cinema." Assim o diretor Ricardo Calil resume seu novo longa, o documentário "Cine Marrocos", que estreia na próxima quinta-feira, dia 3, e retrata parte da história recente da famosa sala, inaugurada em 1951 na capital.
Após ficar fechado por quase 20 anos, o Cine Marrocos foi ocupado por famílias sem-teto. Cerca de 2.000 pessoas viviam ali, muitas delas imigrantes sul-americanos e africanos, sob o risco iminente de reintegração de posse.
É neste contexto que, dois anos depois, com a ajuda dos moradores, Calil e sua equipe fizeram exibições de filmes em uma das grandes salas do Marrocos. Eles assistiram a longas do primeiro Festival Internacional de Cinema do Brasil, que teve o local como principal exibidor, em 1954.
No documentário, vemos a tela branca se reerguendo no Marrocos para receber clássicos como "O Crepúsculo dos Deuses", de Billy Wilder, "A Grande Ilusão", de Jean Renoir, e "Júlio César", de Joseph L. Mankiewicz, entre outros.
Após as exibições, os moradores foram convidados a participar de oficinas de teatro e reencenaram sequências dos longas de 1954, tendo o Marrocos como cenário. Mas não foram simples reproduções. Cada um colocou um pouco de si e de sua história nas cenas.
Como a ex-bailarina Volusia Gama que deslizou nas escadas do cinema para reencarnar Norma Desmond, em "O Crepúsculo dos Deuses". Ou o camaronês Yamaia Mohamed que fez, em forma de rap, o monólogo de Marco Antônio, interpretado por Marlon Brando em "Júlio César".
Em paralelo ao processo criativo e à refilmagem das cenas, o longa acompanha o dia a dia dos sem-teto, sem deixar de lado temas espinhosos, como a suspeita da atuação do tráfico de drogas na ocupação, até a desocupação do Marrocos, em 2016, por decisão da Justiça em favor da Prefeitura de SP, atual dona do prédio.
Como disse Calil, o filme transborda amor pelos cinemas físico e imaginário, pelo o que vemos nas telas e pelo que fica conosco após a projeção. Mas também fala de questões do cotidiano da cidade de São Paulo: a falta e o custo da moradia, o preconceito, o esquecimento dos cinemas de rua e a memória da cidade se desfazendo com o passar dos anos. O amado Marrocos, silenciado e fechado, à espera de vida, é um monumento incômodo a tudo isso.
Linha do tempo
25 de janeiro de 1951
O Cine Marrocos é inaugurado na rua Conselheiro Crispiniano, no centro de SP, com o slogan “o melhor e mais luxuoso cinema da América Latina”
1954
Em comemoração ao quarto centenário de São Paulo, recebe a programação principal do primeiro Festival Internacional de Cinema do Brasil. Chamado de “Palácio do Festival”, abriga sessões de gala com estrelas de cinema como Errol Flynn e Joan Fontaine
Década de 1970
É interditado pelo Instituto Nacional de Cinema por não exibir filmes nacionais. Em 1972, passa por uma reforma, que divide a sala em duas, Marrocos e Marrocos Pullman. Na mesma época, as pornochanchadas entram em sua programação
Década de 1980
Em decadência, começa a exibir filmes pornográficos
1992
O prédio é tombado pelo patrimônio municipal, no mesmo processo de tombamento do vale do Anhangabaú
1994
Encerra suas atividades e passa a ser alugado para eventos
2010
O prédio é desapropriado pela Prefeitura de São Paulo, com a intenção de instalar a Secretaria Municipal da Educação no local
2013
O antigo cinema é ocupado por famílias de sem-teto
2016
É feita a reintegração de posse, determinada pela Justiça a pedido da prefeitura
“O maior e mais luxuoso da América Latina”, dizia slogan do cinema
Notável, majestoso, perfeição técnica e monumental são algumas das expressões usadas para descrever o Cine Marrocos em sua inauguração, no dia 25 de janeiro de 1951.
Palavras que correspondiam ao próprio slogan do cinema, “o maior e mais luxuoso da América Latina”. O primeiro filme em cartaz foi “Memórias de Um Médico”, com Orson Welles e Nancy Guild.
A grandiosidade começava na entrada do Marrocos, com uma “ampla escadaria de mármore branco”, que dava acesso ao hall, “guardado por imponentes e aristocráticas colunas” e “imponentes espelhos”, segundo edição do dia 3 de fevereiro de 1951 do semanário Cine Repórter, dedicado a profissionais do cinema.
Perto das bilheterias, em um átrio, havia uma fonte luminosa, o que dava “um aspecto fidalgo e distinto ao ambiente”. E ao lado foi instalado um bar, com “numerosas mesinhas e cadeiras”.
“Certamente virá contribuir para prolongar os encontros entre amigos e conhecidos nos intervalos das sessões, fazendo do salão de espera do Marrocos o ponto de reunião da nossa sociedade”, escreveu o Cine Repórter.
Com 2.000 lugares, a sala de exibição tinha “poltronas estofadas, do tipo recuáveis”, “a maior e mais perfeita instalação de aparelhos projetores do Brasil”, ar-condicionado, tela de vidro e “visibilidade perfeita de todos os seus pontos”. Sua decoração era inspirada na obra “As Mil e Uma Noites”, em “delicados tons”.
Desapropriação ainda não terminou, diz Prefeitura de SP
A Prefeitura de SP diz que a desapropriação do Cine Marrocos ainda está em curso. A gestão contesta o valor de R$ 46,3 milhões para o imóvel, definido por perícia. Diz considerar R$ 27,7 milhões como valor justo da indenização. Quando concluída a desapropriação, o imóvel será restaurado e usado como auditório pela Secretaria da Educação, pela SPCine e por entidades culturais.
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