Meninada do sert�o
M�sico cria 'quartinho de brincar' em que se constr�i o futuro com o desvendar do passado
Quando pequeno, o menino Francisco Alemberg de Souza Lima dizia que, no dia em que virasse homem grande, teria um quartinho s� para brincar.
Hoje, aos 44 anos e ainda menino, o grande homem enche os olhos de brilho ao falar da Funda��o Casa Grande, um privilegiado quartinho de brincadeiras que divide com outras 70 crian�as e mais de 25 mil curiosos que ali passam anualmente.
Est� tudo l�. A paix�o antiga por quadrinhos foi traduzida no rico acervo da gibiteca, onde n�o poderia faltar toda a cole��o da revistinha "Tex", seu gibi favorito.
No recinto ao lado, prateleiras recheadas de nomes como Vittorio de Sica e Giuseppe Tornatore revelam a prefer�ncia pelo cinema italiano.
E, se na primeira inf�ncia Alemberg escreveu um livro e v�rios gibis, na atual, montou uma biblioteca e desenhou a Casa Grande Editora, onde a meninada inventa personagens e produz materiais educativos.
At� a banda de lata que tinha com o irm�o n�o ficou de fora -deu origem aos grupos musicais Os Cabinha e Abanda.
"A Casa Grande � o resumo da epopeia da minha inf�ncia", define o moleque cearense. "Tenho a alegria de ter estendido minha meninice at� hoje."
Homem de cariri
Ex�mio contador de hist�rias e mitos �-tanto que foi a inspira��o de Selton Mello para o personagem Chic�, do filme "O Auto da Compadecida"-, Alemberg tamb�m tem em sua f�bula uma hero�na: a arque�loga Rosiane Limaverde.
Juntos, formaram a dupla Alemberg e Rosiane e viajaram por todo o Brasil apresentando em festivais can��es compostas a partir de pesquisas sobre a mitologia dos cariris, primeiros habitantes do sul do Cear�.
"A primeira pesquisa foi sobre a lenda da pedra da batateira, que diz que que a regi�o seria inundada um dia, e os cariris voltariam ao sert�o", lembra Rosiane.
Ela tamb�m foi a pedra fundamental para a cria��o, em 1992, do Memorial do Homem Kariri, na mais antiga casa de Nova Olinda, pertencente � fam�lia de Alemberg. Como se a lenda tivesse de se cumprir, o casal inundou o sert�o com as hist�rias de seus ancestrais.
Feita de menino para menino, a Casa Grande tem o ideal de "criar um lugar com a l�ngua da qualidade, tendo a mitologia como pontencializador social".
� com um olhar pueril, eternamente infantil, que seu mentor escava um lema, parafraseado de um verso do poeta Patativa do Assar�: "Pra onde eu olho, vejo um verso se bulir".
"Quando olho para a natureza, vejo uma cachoeira de rimas caindo por cima de mim. Quero desenvolver uma condi��o de a gente poder ver sempre os versos se bulirem. Por mais que a vida seja dura, por onde passa, a gente pode ver esses versos", sonha o vision�rio Alemberg, ou, como descreve Rosiane, o verdadeiro homem de cariri.
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Conhe�a mais sobre a Funda��o Casa Grande
Jovens comunicadores em prol da cidadania
A base do trabalho da Funda��o Casa Grande est� na constru��o da identidade a partir da cultura de origem, estabelecendo uma rela��o entre as ra�zes da cultura local e os canais de comunica��o dessa cultura com o mundo.
Assim, antes de aprender as t�cnicas de r�dio ou TV, procura-se entender como era a comunica��o na pr�-hist�ria da regi�o.
O r�dio, um dos meios de comunica��o pioneiros na Casa Grande, mostra-se um meio particularmente inclusivo. � f�cil fazer r�dio.
Se o jornal impresso exige o dom�nio da escrita e a produ��o de v�deo envolve um processo complexo e custoso, o r�dio, por sua simplicidade, favorece a autonomia dos adolescentes.
A simplicidade da tecnologia permite que a crian�a opere equipamentos e apresente programas. Aprende-se "no ar", e os erros inerentes ao processo de aprendizagem n�o ficam registrados, assumindo um peso menor sobre a autoestima.
Desde cedo, os adolescentes sentem-se radialistas profissionais na Casa Grande FM, pois fazem sozinhos programas que t�m grande impacto na cidade.
Mas, mais que lidar com equipamentos de r�dio, operar uma c�mera de v�deo, fazer um jornal ou escrever um roteiro, as crian�as da Escola de Comunica��o Meninada do Sert�o realizam um exerc�cio de cidadania.
Aliando o jeito do sert�o com as novas tecnologias de comunica��o, essa gera��o de comunicadores � respons�vel ainda pela TV Casa Grande, com programas di�rios, e tamb�m uma editora de jornais e quadrinhos.
O m�todo utilizado baseia-se no acesso e na internaliza��o de novos saberes de qualidade em assuntos como mem�ria, patrim�nio, cultura, ambiente, arte, arqueologia, mitologia e cidadania.
Anualmente, s�o produzidos 72 programas de TV (para os canais Futura e 100 Canal); cerca de 40 espet�culos (incluindo dos grupos musicais nascidos ali, Abanda e Os Cabinhas, que, em 2008, produziram dois CDs); 3.285 programas de r�dio; 96 exibi��es de cinema; 48 aulas de campo de educa��o patrimonial; 12 cursos de gest�o cultural; e 21 blogs pessoais.
Sele��o
N�o h� sele��o para ingressar na Casa Grande, que est� aberta a qualquer crian�a que queira participar do projeto.
Mas os diretores da ONG definiram, em conjunto com os jovens, que deve haver um per�odo de adapta��o no qual se cobra const�ncia e qualidade.
� f�cil perceber quais os meninos que se encontram neste per�odo: s�o aqueles que circulam pela Casa Grande sem o uniforme da funda��o.
Para ganhar o uniforme (ou a "farda", como dizem no Cear�), os meninos rec�m-chegados precisam demonstrar vontade de aprender e preocupa��o com qualidade, aspectos valorizados no projeto.
A crian�a que chega pequena pode passar at� dois anos frequentando a "escolinha". A partir dos oito ou nove anos, j� participa de outras atividades e laborat�rios da escola de comunica��o.
Todos t�m que passar, mais cedo ou mais tarde, pela fun��o de recepcionista do museu, considerada fundamental para a forma��o pelos l�deres da ONG.
N�o h� um per�odo de tempo predefinido entre a entrada no projeto e o recebimento do uniforme e as decis�es a esse respeito dependem do desenvolvimento de cada menino e s�o sempre tomadas coletivamente, por diretores e adolescentes.
Conhe�a alguns dos projetos desenvolvidos pela Funda��o Casa Grande
Mem�ria, artes, comunica��o e turismo s�o as quatro linhas principais que regem as a��es da Funda��o Casa Grande. Este ano, por�m, dois novos focos foram inclu�dos: ambiente e esporte.
� a partir desses eixos-tem�ticos que a institui��o define sua programa��o, que tem em suas bases os laborat�rios de conte�do e produ��o.
Na gibiteca, na biblioteca e na DVDteca, os garotos t�m acesso a um acervo escolhido a dedo por eles e por Alemberg com cl�ssicos e contempor�neos, nacionais e internacionais.
No museu, exploram e difundem o universo dos antepassados. No laborat�rio de internet, criam e atualizam os blogs pessoais.
Colocam a m�o na massa na r�dio FM, que tem programa��o di�ria das 5 da manh� �s 10 da noite planejada e executada por eles, e no est�dio de TV, onde produzem programas em parceria com o canal Futura.
No est�dio de grava��o, os grupos Abanda e Os Cabinhas gravam CDs e se aprimoram musicalmente e, na editora, desenvolvem pe�as gr�ficas e gibis.
Nos s�tios-escolas de educa��o ambiental e no laborat�rio arqueol�gico, pela primeira vez no Brasil, jovens participam dos trabalhos de escava��o, resgate e preserva��o de seu pr�prio patrim�nio hist�rico.
Podem-se mencionar ainda a brinquedoteca, o parquinho e o teatro Violeta Arraes - Engenho de Artes C�nicas, voltado � produ��o de espet�culos e forma��o de plateia, reunindo processos e ferramentas tecnol�gicas � gest�o do patrim�nio cultural.
O objetivo desses laborat�rios � a forma��o interdisciplinar das crian�as e jovens gestores culturais na sensibiliza��o e no desenvolvimento do ser, do ver, do ouvir e do aprender a fazer e a conviver.
Veja em que se baseia o trabalho da Funda��o Casa Grande
A Casa Grande tem como alicerce inovador de seu trabalho tr�s filosofias estrat�gicas de atua��o: a valoriza��o da qualidade integral, a redescoberta do passado como instrumento de defini��o do presente e do futuro e o incentivo ao protagonismo.
Qualidade integral
Mais do que complementa��o escolar, a funda��o oferece �s crian�as e aos jovens atendidos diretamente uma s�lida forma��o generalista de qualidade, que permite incurs�es no campo da hist�ria, da arqueologia, da cultura, da educa��o ambiental, da cidadania, da comunica��o e das artes, entre outros.
Assim, as obras que preenchem o acervo da biblioteca, da gibiteca, da DVDteca e da discoteca, por exemplo, s�o selecionadas de acordo com par�metros como a contribui��o para o desenvolvimento da aprendizagem e para o crescimento emocional, intelectual, �tico e social das crian�as e a utiliza��o das ferramentas de tecnologia da comunica��o, entre outros.
Na Funda��o Casa Grande, o desempenho dos jovens � medido pelos produtos gerados nos laborat�rios de produ��o e que foram inspirados nas refer�ncias adquiridas nos laborat�rios de conte�do.
Semanalmente, os meninos e meninas escrevem em blogs sobre a semana de aprendizado. A avalia��o � interna e externa. No ato de escrever e organizar ideias, s�o observados.
O trabalho, agora, � o de criar o h�bito da leitura, do estudo, do �cio criativo. E, nesse observar, descobrem-se tamb�m a agilidade de pensamento e criatividade de muitos. Gostos e aptid�es s�o revelados ao mundo.
Na TV Casa Grande, os jovens n�o fazem uma c�pia de programas populares: desenvolvem uma t�cnica e uma linguagem pr�prias pela riqueza que o contato com essas refer�ncias de qualidade proporcionam.
"A funda��o n�o forma fot�grafos, editores ou locutores de r�dio. A m�dia aqui � uma ferramenta de transforma��o. Ela amplia a imagina��o, a capacidade de express�o e a vis�o sobre a realidade da comunidade", diz Alemberg.
Passado x presente
O trabalho desenvolvido pela Casa Grande parte sempre do resgate da cultura de origem, ou seja, dos mitos e lendas do ancestral homem cariri, o primeiro a habitar a regi�o na Pr�-Hist�ria.
Por meio de um processo inclusivo e participativo, estudam-se na pr�tica os s�tios arqueol�gicos e mitol�gicos do sert�o do Cariri.
Ao escavarem as cavernas em que viveram seus ancestrais, apoiados por profissionais tecnicamente qualificados, jovens e crian�as fazem uma viagem para dentro de si, numa reveladora jornada de autoconhecimento em plena chapada do Araripe.
J� no local onde atualmente est� sendo constru�do pela funda��o um parque esportivo e cultural, a popula��o de Nova Olinda poder� conhecer o ponto em que as aldeias ind�genas se fixaram antes da coloniza��o, bem como a forma como viviam seus ascendentes diretos.
� uma segunda etapa da ocupa��o humana, cujo ciclo se encerra com o pr�prio edif�cio sede da Casa Grande, o primeiro a ser constru�do na cidade, com a chegada dos portugueses.
Protagonismo
A lideran�a exercida pelos adolescentes tem um papel importante no projeto.
Como os criadores da organiza��o moram em uma cidade vizinha, lideran�as entre os jovens emergem quase que espontaneamente e passam a estruturar o trabalho e o dia a dia da funda��o.
Eles ficam respons�veis integralmente pelo cotidiano da Casa Grande. Por�m, o conceito de autonomia n�o se aplica apenas � participa��o nos programas e produtos.
Ele se estende � pr�pria gest�o, aos cuidados com a limpeza e a organiza��o do museu e da escola de comunica��o, al�m da forma��o das crian�as menores rec�m-chegadas ao projeto.
Um aspecto interessante dessa autonomia � que n�o h� uma separa��o entre trabalho manual e intelectual. Todas as atividades s�o vistas com o mesmo grau de seriedade e responsabilidade. � uma concep��o que vai na contram�o do mundo dos especialistas.
Na Casa Grande, todos participam de atividades que v�o desde um programa de v�deo at� a obra de constru��o do teatro.
Para refor�ar o protagonismo das crian�as e jovens que participam da funda��o, buscou-se posteriormente e de forma estrat�gica envolver seus pais, por meio da gera��o de renda.
Foi, assim, criada a Cooperativa de Pais e Amigos da Casa Grande, para atender a demanda de turistas que visitam a institui��o e a regi�o com a instala��o de pousadas domiciliares, lojinha, traslados e restaurante.
DEPOIMENTOS
A vis�o de um dos benefici�rios do projeto"Cheguei � Casa Grande quando tinha 12 anos. A gente come�ou a vir e, quando a recepcionista sa�a, a gente tomava conta.
Era um lugar para se autoconhecer.
Alemberg abriu as portas de Nova Olinda para o mundo. E, gra�as a Deus, tive o prazer de entrar por aquela porta.
Minha vida mudou depois disso. Vim a conhecer cinema, m�sica, a vida. Vim a ser cidad�o.
De repente, sa� da agricultura e passei a ter conhecimento do que � um bom cineasta, um bom fot�grafo, uma boa m�sica. A ser cr�tico.
Quando entrei na Casa Grande, cuidava do jardim. Depois, me interessei pela parte t�cnica. Foi onde me encontrei.
Fui diretor "das plantas", de manuten��o, de esportes; fui pra r�dio, virei coordenador do projeto, monitor e gerente.
A gente come�ou a fazer gest�o sem saber o que era gest�o. Cheguei ao conselho cultural e me tornei coordenador t�cnico.
Hoje, trabalho no Sesc como t�cnico no teatro, com ilumina��o. Vou fazer vestibular para eletromec�nica ou eletroeletr�nica. Mas sempre que tenho folga corro para c�, ensino os meninos.
Tenho certeza de que o retorno de jogar uma ferramenta de qualidade no jovem � bem prazeroso, vale a pena.
Quero que minha fam�lia cres�a aqui dentro, que meu filho tenha essa oportunidade que eu tive.
Acho que, se o mundo hoje ou cada cidade do interior do Brasil tivesse uma Casa Grande, a mentalidade do jovem melhoraria. N�o vemos Nova Olinda pra fora, mas de fora pra dentro.
A Casa Grande n�o � para os meninos de Nova Olinda. � para o mundo. E mostra na pr�tica.
O guri tem acesso ao que h� de melhor. O importante � dar oportunidade para o jovem para mostrar que ele tem capacidade.
Alemberg, no meu ponto de vista, � um pai que tem essa miss�o na Terra, de ter um bando de meninos como filho. Dar uma inf�ncia que ele nunca teve e hoje depois de certa idade tem o prazer de degustar junto com um bando de meninos.
� um cara que tem uma vis�o espetacular, uma vis�o de mundo grande, um cara cr�tico. Para ajudar n�o mede esfor�os. Resumindo, � um pai.
Se n�o tivesse cruzado meu caminho, acho que eu n�o seria nada n�o.
� o pai que nunca tive."
C�CERO FERREIRA ALEXANDRE, 27, um dos primeiros diretores da Funda��o Casa Grande