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    Quem deu o golpe, e contra quem?

    JESS� SOUZA

    24/04/2016 02h04

    RESUMO Para o autor, decis�o da C�mara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma amea�a a democracia. Em texto que retoma ideias j� expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipula��o, mediada pela imprensa, da classe m�dia pela "elite de dinheiro".

    *

    O golpe foi contra a democracia como princ�pio de organiza��o da vida social. Esse foi um golpe comandado pela �nfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.

    O ponto de inflex�o da hist�ria recente do Brasil contra a heran�a escravocrata foi a revolu��o comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.

    A vis�o pessoal de Get�lio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinven��o nacional.

    O sonho era a transforma��o do Brasil em pot�ncia industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer "compreendeu" esse sonho, posto que "afetivamente" nunca sentiu compromisso com os destinos do pa�s.

    Desde ent�o o Brasil � palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um pa�s grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do pa�s para o bolso de meia d�zia.

    A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder "comprar" todas as outras elites.

    � essa elite, cujo s�mbolo maior � a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prest�gio da ci�ncia, a lorota da corrup��o apenas do Estado, tornando invis�vel a corrup��o legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a pol�tica via financiamento privado de elei��es; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos pr�prios donos fazem parte da mesma elite da rapina.

    De acordo com a conjuntura hist�rica, sempre que o Executivo est� nas m�os do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que � o que suja as m�os de fato no golpe: as For�as Armadas antes, e o complexo jur�dico-policial do Estado hoje em dia.

    A hist�ria do Brasil desde 1930 � um movimento pendular entre esses dois polos. Get�lio caiu, como o desafeto hist�rico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e For�as Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.

    O suic�dio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articula��o de interesses. O curioso, no entanto, � que dentro das For�as Armadas existia a mesma polariza��o que existia na sociedade.

    INFRAESTRUTURA

    O nacionalismo autorit�rio das For�as Armadas articula, por meio do 2� PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma vers�o ambiciosa do sonho getulista: investimento maci�o em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnol�gica com a dissemina��o de universidades e centros de pesquisa em todo o pa�s.

    Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condu��o do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lan�assem em uma batalha ideol�gica contra a "rep�blica socialista do Brasil" e os empres�rios descobrissem, de uma hora para outra, sua inabal�vel "voca��o democr�tica".

    O processo de redemocratiza��o comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-J�, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um "Brasil grande".

    Aqui j� poderia ter ocorrido a conscientiza��o de que a rapina selvagem � o fio condutor, e que a forma autorit�ria ou democr�tica que ela assume � mera conveni�ncia. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O p�blico ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do "esquecimento" no mesmo sentido da queima dos pap�is da escravid�o por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.

    Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, n�o apenas no mercado mas tamb�m, com todas as m�os, no Estado e no Executivo.

    A festa da privatiza��o para o bolso da meia d�zia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gera��es, se deu a c�u aberto. A maior efici�ncia dos servi�os, prometida � sociedade e alardeada pela imprensa, sempre sol�cita e s�cia de todo saque, se deixa esperar at� hoje.

    Como uma imprensa a servi�o do saque e do dinheiro n�o pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro n�o pode comprar, o Executivo mudou de m�os em 2002.

    O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio � ind�stria e � intelig�ncia nacional. Mas seu crime maior foi a ascens�o dos setores populares via, antes de tudo, a valoriza��o real do sal�rio m�nimo.

    Os mais pobres passaram a ocupar espa�os antes exclusivos �s classes do privil�gio.

    Parte da classe m�dia sofria profundo inc�modo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas "pegava mal" expressar o descontentamento em p�blico. Pior, a classe m�dia temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privil�gios e os seus empregos.

    O discurso da "corrup��o seletiva" manipulado pela m�dia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso "campe�o da moralidade". O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Est� criada a "base popular", produto da m�dia servil � elite da rapina.

    A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna cren�a da esquerda nacionalista brasileira na exist�ncia de uma "boa burguesia", ou seja, a fra��o industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.

    Mas todas as fra��es da elite j� mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invis�vel, funcionando como uma "taxa" que encarece todos os pre�os e transfere parte de tudo o que � produzido para os rentistas –inclusive da classe m�dia feita de tola pela imprensa comprada.

    Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite est� armada e unida contra a presidente. As "jornadas de junho" daquele ano v�m bem a calhar e, por for�a de bem urdida campanha midi�tica, transformam protestos localizados em uma rec�m-formada coaliz�o entre a elite endinheirada e a classe m�dia "campe� da moralidade e da dec�ncia" contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.

    Como os votos dos pobres rec�m-inclu�dos s�o mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a alian�a entre endinheirados e moralistas de ocasi�o se mant�m e se fortalece com um novo aliado: o aparato jur�dico-policial do Estado.

    Constru�do pela Constitui��o de 1988 para funcionar como controle rec�proco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudan�as expressivas desde ent�o. Altos sal�rios e demanda crescente por privil�gios de todo tipo associados ao "sentimento de casta" que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privil�gio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas n�o s�o controlados por ningu�m, em verdadeiros "partidos corporativos" lutando por interesses pr�prios dentro do aparelho de Estado.

    A manipula��o da "corrup��o seletiva" pela imprensa � o discurso ideal para travestir, tamb�m aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto "bem comum". O trof�u de "campe�o da moralidade p�blica" passa a ser disputado por todas as corpora��es e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam t�o bem.

    Esse � o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palha�ada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho pr�vio dos justiceiros da "justi�a seletiva" ele n�o teria acontecido.

    O Estado policial a cargo da "casta jur�dica" j� est� sendo testado h� meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma "seletividade midi�tica", o princ�pio: para os inimigos a lei, e para os amigos a "grande pizza".

    A "pizza" para os amigos j� est� em todos os jornais e acontece � luz do dia. O acirramento da criminaliza��o da esquerda � o pr�ximo passo. Esse � o maior perigo. Muita injusti�a ser� cometida em nome da Justi�a.

    Mas existe tamb�m a oportunidade. Nem toda classe m�dia � o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em �dio contra os mais fracos, travestindo-o de "coragem c�vica".

    Ainda que nossa classe m�dia esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio di�rio de veneno midi�tico com dois neur�nios intactos n�o deixar� de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladr�es na pol�tica, uma justi�a de "justiceiros" que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada � mis�ria material e � pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele � o espelho do que nos tornamos.

    JESS� SOUZA, 56, autor de "A Tolice da Intelig�ncia Brasileira" (Leya), presidente do Ipea, � professor titular de ci�ncia pol�tica da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.

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