A quem costumeiramente lê nossos textos pode parecer estranho que dois advogados e professores de disciplina instrumental, como é o processo civil, decidam escrever, ainda que o façam em poucas linhas, a respeito de tema que, aparentemente, foge de seu universo de interesse acadêmico. Esperamos que o artigo seja autoexplicativo.
A saúde é assunto que interessa a todos quando pretendemos alcançar vida longa e saudável. Esse tema povoa o nosso imaginário e nos engaja na busca constante por fórmulas que nos garantam saúde e, consequentemente, longevidade.
Essa busca abrange, por exemplo, a identificação dos alimentos que nos fazem bem ou dos que ao menos não nos façam tão mal; a luta contra a ansiedade e outros flagelos que comprometem o sono; o esforço destinado a obtermos a disciplina férrea que é necessária para a prática regular de exercícios físicos etc.
Mas saúde não depende apenas de fatores óbvios como nutrição balanceada, sono adequado e atividades físicas regulares. Embora de início essa possa parecer uma associação remota e improvável, não há dúvida de que saúde depende de saneamento, isto é, do acesso à água limpa e a serviços efetivos de coleta de esgoto.
Em resumo: sem água, é impossível haver vida saudável.
Do ponto de vista jurídico, esse tema está evidentemente ligado à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da Constituição). Por se tratar de desdobramento do direito à saúde, consiste, ainda, em direito que deve ser prestado em regime de universalidade (art. 196 da Constituição).
É certo que a reflexão a respeito desse assunto acaba sempre sendo orientada —quando não capturada— por critérios ideológicos, instaurando-se debate entre dois polos: os que veem o Estado como um ente onipresente e capaz de, sozinho, dar respostas a todas as grandes questões sociais; e os que, ao contrário, consideram necessário que empresas privadas possam, sob especial regime jurídico, prestar serviços à sociedade. Mas é preciso cuidado com a politização do debate, pois, relembre-se, o tema está ligado a nada menos que a dignidade humana.
E aqui chegamos ao tema do saneamento de nossas cidades, com o conhecido e perturbador dado de que, em 2020, apenas 84% da população brasileira teve acesso à água tratada. Em números fica mais fácil: por esse indicador, algo próximo a 35 milhões de brasileiros estão fora desse serviço e, portanto, com a sua dignidade humana violada.
Por outro lado, o Estado brasileiro não consegue, por absoluta falta de condições orçamentárias, prestar adequadamente serviços essenciais ligados à necessária e imprescindível garantia de higidez dos direitos fundamentais, como são os que dizem respeito à educação e à saúde, dentre outros de igual relevância para a sociedade.
Essa incapacidade é evidente nos mais de 5.000 municípios do país, aos quais a Constituição Federal incumbiu de prestar serviços essenciais, a despeito de baixa arrecadação tributária e constante dependência de recursos dos estados e da União. E foi a esses municípios que o Marco Legal do Saneamento atribuiu primordialmente a titularidade para a prestação do serviço de saneamento básico.
Em razão dessa incapacidade econômico-financeira do Estado e do caráter deficitário da prestação pública de serviços essenciais, passou-se a permitir e até a incentivar a prestação de alguns desses serviços pela iniciativa privada. A ideia que está na base disso é bem simples: onde o Estado não consegue prestar serviço essencial adequado à sociedade, o próprio Estado chama, por meio de mecanismos legais apropriados, aqueles que, com capital privado, possam implementar ou manter tais serviços.
Nesse contexto e por fim, fica a seguinte questão, também provocativa: quem presta o serviço de tratamento de água e saneamento "mais e melhor", o Estado ou as empresas privadas? É conveniente e recomendável que os números resultantes da imensa aplicação de investimentos privados no setor sejam adequadamente analisados, a fim de que tomadas de posição de natureza meramente ideológica não prevaleçam sobre a necessidade de dar atendimento à garantia da dignidade da pessoa humana.
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