Um homem extremamente solitário que, no ápice do sofrimento, passou a acreditar que fora escolhido por Deus para liderar seu país. É assim que o jornalista portenho Juan Luis González descreve Javier Milei, candidato à Presidência da Argentina que surpreendeu a todos ao sair na dianteira nas primárias do país em "El Loco" (o louco), sua biografia sobre o político.
O livro foi lançado pela editora Planeta na Argentina em julho, às vésperas da votação, e acaba de ter sua primeira reimpressão anunciada —ainda não há planos para publicar a obra em português. A assessoria de imprensa de Milei afirmou à Folha que não comentaria os supostos acontecimentos descritos no livro.
O título da obra vem de uma alcunha que Milei recebeu de seus pares no colégio em Villa Devoto, subúrbio de Buenos Aires onde cresceu. Sem amigos ou namoradas, com um corte de cabelo excêntrico parecido com o que tem hoje, ele só não era alvo de bullying com mais frequência porque brigava com quem quer que implicasse com ele.
Mais do que isso, a palavra "o acompanhou ao longo de toda a vida", diz González, repórter da revista semanal Noticias. Ele conta que o pai de Milei o chamava de louco quando batia nele e, mais tarde, seus companheiros no Chacaritas, time em que atuou como goleiro nos anos 1980, apelidaram-no de "El Loco" em razão de sua agressividade em campo.
O biógrafo diz acreditar que foi justamente essa raiva incontida que fez Milei ganhar fama entre os argentinos. Com seus discursos catárticos contra a "casta política" e acessos de fúria transmitidos ao vivo, ele reflete uma sociedade descrente na política tradicional, fadigada de uma crise econômica que nunca acaba. "Pesquisas realizadas pelo A Liberdade Avança [coligação que Milei lidera] indicam que a característica dele mais valorizada por eleitores é que ele 'diz o que pensa'", afirma.
González acrescenta que a loucura também ronda um dos temas pelos quais seu livro acabou chamando a atenção da imprensa nacional —a suposta crença de Milei no sobrenatural. Segundo o biógrafo, o grande medo de seu perfilado é que algumas das histórias narradas no livro vazem e ele seja encarado como insano. "Quando ele compartilha seus segredos místicos com alguém, finaliza a conversa dizendo 'você está proibido de contar isso, pois vão achar que estou louco'."
O livro conta que a iniciação esotérica do político se deu quando seu cachorro, um mastim inglês chamado Conan, adoeceu. Milei teria ficado tão fragilizado com a descoberta do câncer na coluna daquele que considerava seu "verdadeiro e maior amor" que decidiu contratar os serviços de um médium que compartilhava de sua ideologia anarcocapitalista e alegava ser capaz de traduzir os pensamentos do cachorro para o dono.
As sessões, a princípio encaradas com ceticismo, teriam impressionado Milei de tal maneira que ele acabou se aproximando de Celia Liliana Melamed, autoridade no meio da chamada "comunicação interespécies". Ela se tornaria mentora de Karina, irmã mais nova do candidato que hoje desempenha um papel fundamental na coordenação de sua campanha.
Ainda de acordo com o livro, Milei acredita que, depois de morrer, o cachorro se tornou companheiro de Deus —ou do "número um", como o ultraliberal chama a divindade— e conversava com frequência com ele. Em um desses diálogos, Deus teria afirmado ao cão que Milei tinha uma missão: não só entrar na política, como não parar até chegar à Presidência. Foi assim que, aos 51 anos, depois de uma vida inteira sem participar nem sequer de grêmios estudantis, o economista se candidatou a deputado federal em Buenos Aires e ganhou um assento no Congresso.
A história não acaba aí. Depois da morte de Conan, Milei teria gastado US$ 50 mil (R$ 250 mil na cotação atual) mais impostos para fazer clones do animal nos Estados Unidos. Recebeu os filhotes e batizou quatro em homenagem a seus economistas favoritos: Murray (Rothbard), Milton (Friedman), Robert e Lucas (Robert Lucas). O quinto se tornou o novo Conan —o candidato citou nominalmente seus "filhinhos de quatro patas" em seu discurso de agradecimento após a vitória nas primárias.
Os cães também desempenhariam funções místicas. Enquanto o Conan substituto seria responsável pela estratégia geral de sua campanha, Robert preveria o futuro e aprenderia com possíveis erros, Milton faria análises políticas, e Murray, econômicas. Ainda segundo o livro, Milei não conversa apenas com os animais, mas também com os economistas que inspiraram seus nomes, e mantém diálogos com a escritora e filósofa russo-americana Ayn Rand, morta em 1982.
A biografia não apresenta muitas evidências concretas, como notas fiscais e documentos, que apoiem essas histórias. Também não dá nome às fontes que as teriam revelado —algo que faz em outros momentos, como no trecho em que discute a relação do candidato com criminosos ou em que cita denúncias de corrupção contra o seu partido.
O biógrafo afirma que tampouco confrontou o político em relação a elas, ainda que, segundo ele, tenha tentado. Ele diz que Milei se recusou a atendê-lo depois que ele publicou uma reportagem em que revelava que o economista era acusado de plagiar páginas inteiras em seu livro "Pandenomics".
González diz que as informações que sustentam a biografia vieram de pessoas que circulam em meios políticos frequentados por Milei ou que eram próximas dele no passado. Além disso, completa, o próprio candidato já citou indiretamente "cerca de 80%" dos episódios descritos no livro ao longo de seus anos de exposição na mídia. Seria o caso da clonagem dos cães, que Milei a certa altura teria dito ter "evidências empíricas" de que funcionava.
O jornalista era um dos poucos que, cerca de um mês antes do pleito, dizia ter convicção de que Milei se sairia melhor do que o previsto. Àquela altura, a maioria dos analistas afirmava que o então pré-candidato havia perdido o fôlego na corrida eleitoral, cedendo espaço para o peronismo e para o macrismo, que tinham dado uma guinada à direita, por um lado, e na esteira do fracasso dos candidatos que ele havia apoiado nas eleições locais, por outro.
O jornalista, que nos últimos anos se especializou na cobertura da chamada "nova direita" na Argentina, diz ter uma expectativa semelhante para o primeiro turno, em outubro. Questionado sobre o fato de que alguns especialistas explicaram o bom desempenho de Milei nas primárias —um pleito que, afinal, não serve para eleger ninguém— como um "voto de protesto", limitado às prévias, respondeu que isso "era minimizar o fenômeno". "Acredito que estão acontecendo mais coisas, complicadas de entender."
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