Três episódios recentes concentraram as discussões em torno de dois temas que precisam ser encarados com urgência: racismo e liberdade de expressão.
A reação ao primeiro fez com que manifestantes derrubassem e jogassem em um rio uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos no século 17, no domingo (7), em Bristol.
Dois dias depois, a plataforma de streaming HBO Max retirou de seu cardápio o filme "E o Vento Levou", clássico de 1939 em que a vida de escravos durante a Guerra Civil dos EUA é retratada de maneira romântica e idealizada.
O terceiro episódio é o texto assinado por Tom Cotton e publicado no New York Times no início de junho.
Senador trumpista, Cotton pede que os EUA utilizem força militar para refrear os protestos que tomaram o país desde o assassinato de George Floyd. "Envie as tropas", defendeu.
Profissionais de diversas Redações –especialmente da do New York Times– protestaram contra o artigo.
Como consequência, o editor da seção de opinião deixou o cargo, e o jornal se retratou, admitindo que a publicação foi uma falha.
Sobre o caso, esta Folha publicou o editorial "O erro do New York Times". O texto concorda que as ideias de Cotton são "horríveis e afrontam valores básicos de uma sociedade democrática e pacífica", mas que, ainda assim, "são apenas ideias".
A ideia central do editorial é a de que a publicação do texto está amparada pela liberdade de expressão e que "a maioria dos profissionais hoje em atuação se formou num período em que a liberdade de expressão jamais esteve ameaçada".
"Não tem em sua memória coletiva, pois, quão difícil foi assegurar que todos tenham o direito de dizer o que pensam, qualquer que seja o conteúdo de tais pensamentos."
O editorial está equivocado na essência. A questão em discussão não é a liberdade de expressão. O ponto é: por que o mais prestigioso jornal do mundo abre espaço para um senador divulgar ideias que, como diz a própria Folha, são horríveis e afrontam valores básicos de uma sociedade democrática?
Cotton é senador. Tem à disposição o poder da máquina política dos EUA. Se quisesse, poderia ter publicado o artigo em dezenas de veículos (Breitbart, Fox News etc.). Poderia ter postado o texto nas redes sociais.
Mas suas ideias "horríveis" foram amplificadas e, para usar uma expressão atual, legitimadas pelo New York Times.
Dois dos mais sóbrios e inteligentes colunistas desta Folha escreveram sobre os casos da estátua e de "E o Vento Levou". A respeito da derrubada do monumento, Hélio Schwartsman lembra que "não dá para olhar o passado com os olhos de hoje".
Ele escreve: "Aposto que, em cem anos, o tratamento que dispensamos a animais e prisioneiros fará parte do rol de crimes do passado".
No texto "Derrubando estátuas, regredimos às guerras religiosas do século 16", João Pereira Coutinho cita os três episódios e argumenta: "Estamos a regredir no tempo e a retornar às guerras religiosas do passado. Para os novos fanáticos, a paz social não depende da tolerância perante ideias contrárias e até ofensivas para a nossa pureza mental. Depende da destruição do herege e da entronização da Verdade (com maiúscula)".
Mas ninguém está regredindo ao século 16. A HBO Max não "censurou" o filme; vai recolocá-lo em seu cardápio com explicações sobre o contexto em que foi feito. "E o Vento Levou" não está sendo banido do cânone cinematográfico.
Os manifestantes que derrubaram a estátua de Colston fizeram apenas isso –derrubaram uma estátua.
Ninguém quer que livros sejam queimados nem que a história de Colston (ou de qualquer outro) seja apagada.
O gesto pede apenas que deixemos de homenagear com monumentos em espaços públicos quem não merece ser homenageado. Deixemos isso para museus e locais privados.
Claro que não devemos olhar o passado com os olhos do presente. Mas o entendimento do passado é construído a partir de nossa visão de mundo.
O tratamento que dispensamos hoje a animais e prisioneiros é moralmente repugnante.
Se algum estúpido construir amanhã uma estátua que glorifica o tratamento que os detentos recebem nas prisões brasileiras, e ela for colocada em uma praça pública, torço para que, no futuro (e não precisa nem chegar a cem anos), ela seja devidamente derrubada.
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