A renúncia do arcebispo de Santiago, Ricardo Ezzati, 77, no último sábado (23), após ser acusado de encobrir casos de pedofilia, e a decisão da Justiça chilena na quinta (28) de indenizar três vítimas de abusos sexuais por parte de sacerdotes voltam a jogar luz em uma novela que parece não ter fim.
A cada ano, mais e mais religiosos chilenos são acusados de terem praticado abusos sexuais. Outros, de terem encoberto os delitos desse tipo cometidos por colegas. Há suspeitas de casos de distintas épocas, e os mais antigos remontam aos anos 1960.
Os episódios ganharam espaço na mídia e projeção internacional após a visita do papa Francisco a Santiago, em janeiro de 2018. Como se trata de um país de longa tradição católica, o Vaticano não esperava tamanha reação negativa.
Porém, antes mesmo de o argentino chegar ao Chile, os distúrbios começaram. Igrejas foram queimadas, e manifestantes acusaram o acobertamento de abusos. Durante todo o tempo em que o papa esteve no país, grupos de vítimas pressionaram, sem sucesso, por uma reunião para levar a ele denúncias que tinham sido desprezadas pela igreja e pela Justiça locais.
Num primeiro momento, o papa reagiu com cautela e protegeu os religiosos. Entre eles, o sacerdote Juan Barros Madrid, que acompanhava a comitiva. O religioso era o braço direito do temido Fernando Karadima, principal símbolo dos abusos da igreja chilena.
Karadima foi afastado em 2011 após uma investigação interna ter confirmado que ele havia abusado de dezenas de adolescentes da elite de Santiago na década de 1980.
Expulso da igreja, o padre passou a responder judicialmente pelas acusações. Devido à idade avançada, 89 anos, porém, a família conseguiu afastá-lo do foco midiático e o internou num asilo, onde espera o desenlace de seu caso.
Como a pressão sobre o papa aumentou, este enviou ao Chile uma comissão de religiosos para colher denúncias. A missão voltou com a conclusão de que a igreja local havia cometido "graves abusos de consciência e de poder".
O papa então exigiu que os religiosos do Chile deveriam ajudar a "sanar o mal causado aportando informações à Justiça" ao mesmo tempo em que começou a afastar e expulsar vários deles da igreja.
Desde então, há 148 ações penais sendo tratadas na Justiça contra religiosos que teriam cometido abusos. Outros 73 são investigados a partir de depoimentos de vítimas, e 38 já receberam condenações.
Houve ainda uma debandada de 34 bispos, que renunciaram ao saber dos abusos de Karadima. O escândalo, estrondoso, virou o filme "El Bosque de Karadima" (2015).
Por enquanto, apresentaram-se formalmente como vítimas 104 pessoas, que eram crianças quando os abusos ocorreram. Esse número vem crescendo.
Os casos mais recentes mostram que o caso está longe do fim. A renúncia de Ezzati foi apoiada pelo presidente do Chile, Sebastián Piñera, que disse: "Quando há um ato dessa gravidade que se repete por tanto tempo, abusos tão sérios, a pessoa que está a cargo da igreja tem uma responsabilidade".
Ezzati havia tentado permanecer no cargo porque apelava na Justiça pela derrubada das acusações contra ele. Quando o recurso foi negado, decidiu renunciar.
Assim, o agora ex-arcebispo continuará a ser investigado por abusos supostamente cometidos por quatro sacerdotes que respondiam a ele. Ele afirma não ter conhecimento dos atos, mas as vítimas negam e apontam Ezzati como testemunha de que os abusadores tinham sua aprovação para usar salas e aposentos da Catedral Metropolitana de Santiago para estuprá-los.
Além de Ezatti, estão na mira da Justiça o também ex-arcebispo Óscar Muñoz --já preso por ter abusado de sete menores--, o sacerdote Jorge Laplagne e o já citado Karadima.
No caso das indenizações concedidas nesta semana, no valor de US$ 146 mil (cerca de R$ 573 mil) cada uma, elas se referem ao pedido de três vítimas: Juan Carlos Cruz, José Andrés Murillo e James Hamilton, abusados por Karadima e seus subordinados. É a primeira vez que a Igreja Católica chilena é obrigada a fazer reparações materiais.
Do círculo próximo a Karadima, há outros sob os olhos da Justiça, como o sacerdote Tito Rivera, acusado de ter abusado de menores no interior da Catedral Metropolitana de Santiago em 2015.
Nesta sexta (29), um tribunal chileno ordenou a prisão domiciliar do religioso, que está proibido de sair do país enquanto durar a investigação. Rivera já havia sido inabilitado pela igreja e, recentemente, deu declarações sobre os bastidores da instituição, dizendo que "se trata de ambiente favorável para relações homossexuais". "Muitos buscam essa satisfação nos garotos."
A Procuradoria chilena acaba de receber do Vaticano permissão para confiscar computadores e documentos de igrejas e demais instituições religiosas, numa tentativa de ampliar o espectro das investigações.
O catolicismo anda em baixa no Chile, segundo pesquisa de 2017 da Latinobarómetro, que aponta os casos de pedofilia como uma das principais razões para a queda repentina.
O Paraguai lidera como país mais católico da região, com 89% dos cidadãos afirmando professarem a religião. O México vem em segundo, com 80%, seguindo de Colômbia e Peru, com 73%. No Chile, a cifra foi de 46% em 2015 para 38% em 2017. Em 1996, 80% se diziam católicos no país.
Números da Igreja Católica no Chile
2.415
sacerdotes
1.029
diáconos permanentes
4.303
religiosas
1.552
missionários laicos
46.282
catequistas
Fonte: Conferência Episcopal do Chile
Filmes sobre pedofilia
El Bosque de Karadima (2015) Narra a história do padre chileno Fernando Karadima, que cometeu abuso de menores entre as décadas de 1980 e 2000;
O Clube (2015) O Clube’ é uma casa isolada na costa chilena para onde vão padres e freiras acusados de pedofilia e de roubo de bebês.
Spotlight (2015) Repórteres do jornal Boston Globe revelam casos de abuso sexual de menores por padres católicos da arquidiocese de Boston.
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