Descrição de chapéu Banco Central

Aumento da autonomia de bancos centrais ajudou a combater hiperinflação, apontam estudos

Especialistas veem contribuição de maior poder de BCs a controle dos preços, mas hesitam em apontar relação de causa e efeito

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São Paulo

Nos anos 1980, o Brasil e vários países enfrentaram ondas fortes de inflação. No começo da década de 1990, os preços chegaram a aumentar mais de 50% em um só mês.

No entanto, esses picos se tornaram mais raros e a inflação, mais controlada, a partir de meados dos anos 1990. Segundo estudos, uma das principais razões para essa estabilização foi o ganho de autonomia dos bancos centrais no combate à alta de preços.

Fachada da sede do Banco Central do Brasil, em Brasília - Leonardo Sá - 7.nov.21/Agência Senado

Nesses estudos, a autonomia é entendida em sentido amplo (não necessariamente o arcabouço aprovado no Brasil em 2021, que definiu, entre outras coisas, mandatos para a presidência do Banco Central). As gradações variam desde a liberdade para definir as taxas de juros até o poder de apontar quais serão os objetivos que a própria autarquia buscará atingir.

A partir desses índices de autonomia, os estudos comparam as taxas de inflação de diferentes países ao longo dos anos. Um levantamento feito pelo Fed (Federal Reserve, o banco central americano) de St. Louis, aponta que, nos anos 1980, havia ao menos 13 economias desenvolvidas cujos bancos centrais tinham baixa autonomia, e nenhum com independência forte. Em 2003, a situação tinha se invertido: havia 13 países com autarquias com grande autonomia.

Ao mesmo tempo, a média da inflação mundial, medida pelo FMI, não teve mais picos acima de 20% depois de 1994, e se manteve por muitos anos ao redor dos 5% anuais.

"Uma maior independência levou a um declínio firme na inflação tanto no período pré e pós anos 1970 (quando os EUA abandonaram o padrão ouro) e antes e depois da onda de reformas dos bancos centrais, nos anos 1990", aponta o estudo "Central Bank Independence and Inflation in Latin America—Through the Lens of History" [Independência do Banco Central e Inflação na América Latina pelas Lentes da História], dos pesquisadores Luis Ignacio Jácome e Samuel Pienknagura, do FMI, divulgado em setembro de 2022.

No entanto, não há uma relação de causalidade clara entre a autonomia dos bancos centrais e o controle da inflação, ponderam economistas, destacando que outros fatores, como aumento da produtividade e integração comercial, também afetam as economias e os índices de preços.

"As evidências são favoráveis, mas tenho a impressão de que não são contundentes. É muito difícil identificar o efeito específico da independência do banco central de outras dinâmicas que estejam ocorrendo simultaneamente naquela mesma sociedade", diz Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV e colunista da Folha.

"As evidências são robustas, mas um teste clássico de causalidade é mais complicado", avalia Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central do Brasil (1999-2002).

Fraga pondera que em vários casos recentes de descontrole inflacionário, os bancos centrais locais não tinham autonomia. "Na Argentina, na Venezuela e na Turquia havia sistemas autocráticos, sem independência de nada, mesmo que tivesse algo no papel", diz.

"Fica sempre uma indagação de quanto a autonomia [do banco central] propiciou uma melhora, por gerar mais credibilidade à política monetária, e quanto veio de outras características do país, como ter maior responsabilidade fiscal ou não ter um histórico de indexação como o nosso", questiona Orlando Assunção, professor de economia da Faap.

Como medir a autonomia de um banco central

Outro ponto complexo é como medir a autonomia dos bancos centrais. Para quantificar isso, os pesquisadores costumam considerar aspectos como uma autorização legal para que as instituições possam combater a inflação e blindagens que protejam seus diretores de demissões e pressões políticas.

"É difícil bater o martelo sobre o nível de independência. Há várias condições que podem estar no papel, mas não na prática, e vice-versa", considera Alexandre Andrada, professor de economia na UnB (Universidade de Brasília).

Ele cita como exemplo o caso do Brasil: o BC só obteve autonomia oficial em 2021, mas vários governos anteriores, como o de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e de Lula (2003-2010) deram liberdade para que a entidade tocasse a política monetária, mesmo que os presidentes fizessem críticas públicas do patamar de juros.

Bancos centrais surgiram na década de 1920 na América Latina

O debate sobre a autonomia das autoridades monetárias dura mais de um século. Na América Latina, os primeiros bancos centrais foram criados a partir da década de 1920.

Na época, eles possuíam certa independência e tinham como principal missão emitir moeda e manter o padrão ouro: garantir que o dinheiro em circulação tivesse lastro em reservas do metal ou em outras moedas estrangeiras fortes. Um dos lemas da época era "temos ouro porque não podemos confiar em governos".

No entanto, com a Grande Depressão da década de 1930, o padrão ouro foi sendo abandonado e os bancos centrais perderam a autonomia. Governos em crise queriam imprimir mais dinheiro para pagar as contas ou usar a estrutura bancária oficial para obter empréstimos, em um movimento que aumenta a inflação mais à frente, criando um ciclo vicioso.

Assim, a partir dos anos 1940, muitos bancos centrais da região se tornaram uma espécie de banco de desenvolvimento, para financiar projetos dos governos. Só que fazer isso ao mesmo tempo em que precisavam controlar a estabilidade das moedas nacionais gerou desequilíbrios e crises em países como Argentina e Chile nas décadas seguintes, aponta estudo do FMI. Ambos sofreram golpes de Estado nos anos 1970.

"Nos anos 1960 e 1970, com a inflação crescendo, muitos bancos centrais faziam uma política voluntarista, mudando de rumo toda hora. Isso começou a gerar um desconforto entre os economistas", aponta Andrada.

Nesta época, trabalhos de pesquisadores como Milton Friedman (1912-2006) analisaram se os bancos centrais deveriam agir de modo mais preciso. A partir daí, começou a surgir uma literatura que recomendava dar mais poder a eles.

"Há uma tentação dos políticos para gerar inflação e aquecer a economia a curto prazo. Isso gera algum crescimento econômico, mas é insustentável, pois estoura lá na frente", diz Andrada.

Nos anos 1980, os bancos centrais dos EUA e do Reino Unido aumentaram as taxas de juros, o que levou à uma fuga de capitais da América Latina, que piorou a situação no continente. Em resposta à crise, os governos locais passaram a dar maior independência aos bancos centrais a partir dos anos 1990, repetindo algo que foi feito nos países ricos na década anterior.

BC brasileiro foi criado em 1965

No Brasil, o Banco Central foi criado apenas em 1965. Antes, desde o tempo do Império, a emissão de moeda e outras ações de política monetária ficavam a cargo do Banco do Brasil.

O BC teve seus poderes ampliados com a Constituição de 1988, que o proibiu de fazer empréstimos para financiar gastos públicos. A partir de 1999, o Brasil adotou um regime de metas de inflação, e a missão de fazer estas metas serem atingidas ficou com o BC.

O BC brasileiro teve autonomia garantida por lei em 2021. A entidade tem liberdade para usar os mecanismos como a taxa de juros para tentar levar a inflação para a meta. No entanto, a decisão sobre qual será o objetivo a atingir vem do CMN (Conselho Monetário Nacional), formado pelos ministros da Fazenda e do Planejamento, além do presidente do BC.


Cronologia - Bancos Centrais na América Latina

Anos 1920
Países da América Latina começam a criar Bancos Centrais, para manter a estabilidade das moedas locais, cujo valor era garantido geralmente por reservas de ouro

Anos 1930
Grande Depressão nos EUA gera forte crise no continente e vários países abandonam o padrão ouro. Governos retiram autonomia dos BCs para que possam imprimir dinheiro sem lastro, o que piora crise a longo prazo

Anos 1960
Com alta da inflação no mundo, economistas passam a defender mais poder aos BCs para atacar o problema

Anos 1970 e 1980
EUA abandonam o padrão ouro como fiador do dólar, crise do petróleo aumenta preços e países desenvolvidos, em resposta, começam a testar modelo de BCs com mais autonomia

Anos 1990
Países da América Latina começam a dar mais autonomia aos BCs. No Brasil, o Plano Real consegue domar a inflação a partir de 1994. Em 1999, país adota regime de metas de inflação, ainda em vigor


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