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Guita Grin Debert e Jorge Félix

Adesão à vacina mostra resistência de idosos a negacionismo

Coletivo cívico francês deixa boa lição diante dos ataques aos mais velhos na pandemia

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Jorge Félix

Doutor em ciências sociais, é professor de gerontologia da USP, pesquisador da Fapesp e autor de ‘Economia da Longevidade’ (ed. 106 Ideias)

Guita Grin Debert

Professora do Departamento de Antropologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, é autora de ‘Reinvenção da Velhice’ (Prêmio Jabuti de Ciências Sociais; ed. Edusp)

[resumo] Diante dos ataques contra a vida das pessoas idosas durante a pandemia, um coletivo cívico francês deixa a lição de que a associação convencional entre o avanço da idade e a sensatez acaba por criar barreiras para a mobilização social e política na velhice. Maior sabedoria que os mais velhos podem legar aos jovens, defende o texto abaixo, é a resistência, jamais a resiliência.

A pandemia da Covid-19 fomentou várias reflexões sobre a velhice, ora com visões preconceituosas, ora com um certo paternalismo complacente. Dentre essas visões, sem dúvida, uma das mais desafiadoras foi a antecipada, na França, pelo coletivo Vieilles et pas Sages (velhas, mas não submissas, em tradução livre), que teve origem em um caso de idosismo (“ageism”) que se transformou em um fato político internacional.

Na manhã de 23 de março de 2019, a aposentada Geneviève Legay, então vivendo a total independência e autonomia aos seus 73 anos, deixou seu apartamento no subúrbio de Nice, onde mora sozinha, para seu principal compromisso do dia. Colocou no banco de trás de seu carro uma bandeira pintada com as cores de um arco-íris, onde se lia bem grande a palavra paz. Dirigiu até a praça Garibaldi, no centro da cidade, para se juntar aos conhecidos coletes amarelos.

As manifestações estavam proibidas naquele momento, mas, vestidos com o colete usado pelos profissionais que precisam sair da invisibilidade por questão de segurança, eles continuavam a peitar o presidente Emmanuel Macron.

Geneviève não estava fazendo nada de mais. Militante da Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (Attac) e ativista feminista há 45 anos, estava apenas indo para mais uma de tantas manifestações que engrossara em sua vida.

Logo no início do ato, Geneviève foi abordada pelo canal de televisão CNews. O repórter lembra que as manifestações estão proibidas e que os policiais ameaçavam usar a força. “Eles são seres humanos como todos nós, eu vou tocá-los pelo coração”, respondeu Geneviève. “Eu trago uma bandeira onde está escrito paz.”

O repórter questionou se ela não tinha medo, pois àquela altura do 19º sábado de manifestações, os atos já haviam se tornado bastante violentos. “Medo? Não. Eu tenho 73 anos! O que pode me acontecer?” E completou que tinha compromisso ético com os filhos e netos.

Minutos depois, Geneviève estava cheia de sangue na cabeça e caída no chão. Um cassetete alcançou-lhe na altura da orelha direita. Outro policial bateu com o escudo em seu corpo, ainda forte à época. Um enxame de fotógrafos e cinegrafistas procurava captar sua dor por entre as pernas do cerco de soldados em torno daquela senhora de cabelos brancos ainda agarrada a sua bandeira colorida.

“Eu tinha uma bandeira da paz e acordei no pronto-socorro”, disse mais tarde, quando já havia descoberto que perdera boa parte da audição, tivera a visão do olho direito prejudicada, fraturara o osso occipital e quebrara o cóccix.

Diante da imensa repercussão, uma prova do uso desproporcional das “forças de ordem”, Macron foi questionado pelo jornal Nice Matin e respondeu com uma frase reveladora da imagem que se tem da velhice. Negou que Geneviève tenha estado em confronto com a polícia e procurou atribuir os ferimentos a uma queda.

“Quando somos frágeis, quando podemos ser empurrados, não vamos a locais que se definem como proibidos e não nos colocamos em situações como esta.” E completou: “Desejo seu pronto reestabelecimento e, talvez, alguma sabedoria”. Ele acreditou que havia colocado Geneviève em seu devido lugar e encerrado a “história da velhinha ferida em Nice”, mas o caso estava apenas no começo.

A reação de Geneviève foi imediata e deu origem ao Vieilles et pas Sages. Enquanto Macron apelou para uma velhice com mais sabedoria e mais sensata, Geneviève surpreendeu com uma insurgência para continuar sendo quem ela sempre foi —talvez, a principal luta do ser humano conforme passam os anos.

O objetivo do Vieilles et pas Sages, com 1,8 milhão de seguidores em uma rede social, pode ser resumido nos atos de sua fundadora depois do episódio. O idosismo de Macron transformou Geneviève em uma forte voz crítica da oposição ao presidente, hoje conhecida internacionalmente devido a ampla cobertura da imprensa estrangeira.

Sua primeira reação foi ler para uma horda de repórteres, ainda em cadeira de rodas, uma carta aberta a Macron denunciando o projeto “neoliberal” do governo, a favor dos mais ricos, e a destruição da seguridade social.

Muitos eleitores de Macron recomendaram a ela um pouco mais de tricô na calma de seu lar. “É chocante, porque isso quer dizer que uma pessoa de 73 anos deve ficar em casa fazendo tricô, tarefas domésticas. Eu sou uma cidadã. Eu sou uma militante há 45 anos. Eu reivindico. Eu posso fazer minhas tarefas domésticas e estar nas ruas para manifestar por meus direitos e pelos direitos de outros.”

Ainda de muletas, Geneviève se deixou acompanhar por uma equipe de TV em um ato que revela bem o espírito do coletivo Vieilles et pas Sages. Ela tricotou a miniatura de uma bandeira como a que empunhava no dia em que foi atacada e foi até a agência de correios enviar o “presente” a Macron.

O constrangimento foi maior quando os relatórios da investigação desmentiram o presidente e provaram os ataques dos policiais pelas costas. “Nós não estamos mais em um Estado democrático de Direito. A resposta do senhor Macron foi autoritária”, disse ela.

O ativismo do tricô, como poderíamos chamar a militância dessa velhice insubmissa, é uma novidade louvável. Neste momento da pandemia, quando vozes políticas e até jornalistas defendem o genocídio de idosos diante do colapso do sistema de saúde, o idosismo inibe uma reação mais efetiva e limita até mesmo o impacto dos protestos de associações civis de defesa dos direitos da pessoa idosa. Portanto, é importante analisá-lo com mais profundidade.

Apesar de o Brasil assistir a uma campanha antivacina por parte do presidente da República, tão logo a injeção contra o Sars-Cov-2 começou a ser aplicada, viralizaram imagens de idosos felizes agradecendo o imunizante ou saldando o SUS (Sistema Único de Saúde). Essa atitude suscitou comentários de locutores e âncoras de TV: “É isso aí, seu Fulano”, “muito bom, dona sicrana”, versões de um paternalista “força, vovô!”.

Embora em tom de apoio, essas reações demonstram, mesmo que de maneira subjacente, uma certa surpresa por esses idosos reagirem com resistência ao negacionismo oficial. O ato de se deixar vacinar, em última análise, foi interpretado como uma insubmissão extranatural.

Essas reações revelam uma visão de parte da sociedade de que os idosos seriam sempre obedientes. O Vieilles et pas Sages desafia a noção de que a vulnerabilidade se opõe à resistência.

Essas convenções são assombrosas quando, por exemplo, a velhice feminina tem como foco uma geração que foi ativa em denunciar discriminações, proclamar “meu corpo me pertence”, separar a sexualidade da reprodução e colocar em questão a hegemonia da heterossexualidade.

As imagens do envelhecimento bem-sucedido presentes no senso comum e na gerontologia (ciência que estuda a velhice), assim como a associação convencional feita entre o avanço da idade e a sabedoria, criam barreiras difíceis de serem transpostas para que a velhice possa entrar no rol das questões centrais que demandam mobilização política.

O dever de um envelhecimento bem-sucedido impede que a retórica da indignação ganhe o conteúdo emocional próprio das críticas às formas de opressão.

Até que ponto essas convenções impedem uma reação como a de Geneviève quando idosos brasileiros ouvem do próprio presidente que eles irão morrer de Covid e isso é aceitável? Ou que idosos ouçam de maneira passiva uma deputada defender uma “solução final” em nome da sabedoria de abrirem mão de suas vidas para salvar netos em caso de recursos escassos em meio ao colapso de saúde?

Os primeiros estudos que fundaram a gerontologia tendiam a representar o avanço da idade como um processo de perdas, e essa representação constituiu a velhice como uma preocupação social e política.

Essa visão legitimou a conquista de direitos sociais que levaram à universalização da aposentadoria, ao conjunto de leis protetivas e à inclusão do envelhecimento na agenda da ONU. No Brasil, o marco legal de proteção social foi acatado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003).

A partir dessa regulação, a visão da velhice como uma experiência marcada pelo abandono e pela solidão foi substituída pela imagem dos idosos ativos, capazes de oferecer respostas criativas que redefinam a experiência do envelhecimento. Novas formas de sociabilidade e de lazer desenhariam essa etapa da vida, reciclando identidades anteriores.

O conceito de um envelhecimento ativo passa a marcar as políticas sociais. A ideia, entretanto, tem recebido outros significados quando a sabedoria se combina com a resiliência, que se torna algo amplamente receitado no mundo de hoje.

A socióloga Sarah Bracke mostra que o interesse contemporâneo pela resiliência é um efeito do neoliberalismo, não apenas em termos de economia política, mas também como um código moral. A combinação da resiliência com a sabedoria torna difícil, se não impossível, a luta contra a discriminação dos velhos, porque a fúria e a raiva tendem a ser malvistas a partir de uma determinada idade.

Isso foi o que ocorreu no início da pandemia, quando idosos foram atacados nas ruas e em supermercados, sob o argumento de que, vistos como “grupo de risco”, só eles deveriam adotar um comportamento “sábio” de ficar em casa.

A sabedoria combinada com a resiliência é associada às virtudes do domínio dos sentimentos e emoções. Como argumenta a socióloga Kathleen Woodward, as emoções são elementos importantes na produção de significados e valores e na definição e implementação de políticas sociais. Como pensar nos movimentos de protesto sem levar em conta o sentimento de raiva contra as formas de opressão e injustiças?

Em outro artigo, destacamos que “a indignação necessária às lutas políticas certamente requer a dose de raiva que marca e que marcou cada uma das diferentes expressões do movimento feminista e de outros movimentos libertários. A energia política e o engajamento envolvem fervor, o que é o oposto aos significados convencionalmente associados à sabedoria”. Ou, como diria Woodward, envolvem uma “raiva sábia” capaz de criar uma retórica promotora do convencimento.

A indignação vocalizada pelos velhos nem sempre é percebida como indicador de insubmissão e incentivo à luta. Muitas vezes é vista como uma irritabilidade pelo avanço da idade. Outras vezes, é atribuída a uma vida mal-administrada —um sintoma do consumidor que falhou porque não soube se envolver em atividades motivadoras, não soube adotar estilos de vida adequados e agora lamuria oportunidades perdidas.

A crítica social passa a ser vista como um sinal da depressão e, portanto, só remédios podem restabelecer o equilíbrio que se imagina próprio da velhice idealizada. A “raiva sábia”, capaz de promover articulações políticas, é tolhida.

Em combate ao pronunciamento do presidente francês, é bom lembrar, como destacou Judith Butler, que a vulnerabilidade, a sensatez e a sabedoria não podem ser o oposto de resistência, como o Vieilles et pas Sages vem mostrando à sociedade. Como elegantemente nos disse Woodward, é urgente darmos uma “moratória contra a sabedoria” na luta por políticas sociais para uma velhice (ainda bem!) insubmissa.

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