As imagens de abertura de "O Livro dos Prazeres", livre adaptação da obra homônima da escritora Clarice Lispector que marca a estreia em longas-metragens da roteirista e diretora Marcela Lordy, são uma abstração da trama que se desenrola dali por diante.
Nelas, um jogo de espelhos em caleidoscópio faz os corpos nus do casal protagonista se interpenetrarem, soltos no espaço, mergulhando cada um em si próprio e no outro.
É uma transposição visual arrojada e plástica da trajetória de formação e autoconhecimento da professora primária Lóri, uma mulher na faixa dos 30 anos, misteriosa, solteira, sedutora e solitária, encarnada de maneira brilhante por Simone Spoladore.
A protagonista mergulha em seus desejos, medos e desajustes de onde emerge, inteira, e assim finalmente se relaciona, de igual para igual, com Ulisses, um professor de filosofia vivido pelo argentino Javier Drolas, de "Medianeras". É um dos raros desfechos felizes da obra clariciana.
"No filme, é uma personagem que se reintegra à própria natureza na frente das câmeras", afirma Spoladore, que classifica como um alento viver uma mulher que se constitui ao longo da obra "depois de interpretar tantas mulheres em lugares terríveis e em cenas nas quais o feminino se despedaça diante das câmeras".
O desafio de traduzir para a linguagem cinematográfica a poesia em prosa de Clarice Lispector a partir de um romance que começa, literalmente, com uma vírgula, foi enfrentado por Lordy por mais mais de uma década e em muitas versões do roteiro.
Ao longo dos anos, esse exercício ganhou a parceria de outras mulheres, como a roteirista argentina Josefina Trotta e a produtora-executiva Débora Osborn, da BigBonsai, e adquiriu cada vez mais liberdade, se descolando do texto original.
"Clarice é tão ousada na linguagem e instiga tanto a imaginação que não tinha como pensar em uma adaptação que não fosse completamente livre", diz a diretora, que trouxe a história para os dias atuais e deu contornos políticos ao enredo.
"Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" foi lançado em 1969, durante os anos de chumbo da ditadura militar, enquanto o filme sugere algum lugar do pós-2018, quando Lóri comenta com o irmão que nunca perdoará o pai "por ter votado nesse cara", ilustrando as brigas familiares que correram o país com a polarização dos anos recentes.
Lordy também subverteu algumas características de Lóri e Ulisses para dar a eles a mesma atualidade. "Deixamos os dois personagens mais livres em relação ao corpo e à própria sexualidade. E as questões abordadas sobre a posição feminina dentro e fora da gente numa sociedade patriarcal seguem mais fortes do que nunca", afirma ela, que dirigiu "A Musa Impassível", de 2010.
Segundo a diretora, Clarice Lispector estava discutindo gênero quando criou um Ulisses que espera a mulher amada. Na mitologia grega, é Penélope quem aguarda o retorno do marido, Ulisses, da Guerra de Troia, na viagem que é tema da "Odisseia", de Homero.
O resultado é um filme sensorial, permeado por longos silêncios e muitos vazios, em especial no cenário principal da história —um apartamento à beira-mar, no Rio de Janeiro, que é quase personagem também. Endereço da família fluminense de Lóri na capital, é para lá que ela se muda depois da morte da mãe.
Imersa nas memórias maternas e em muita melancolia, Lóri vive entre as aulas da escola primária, nas quais investe intensidade e complexidade demais para crianças tão pequenas, e os encontros furtivos, de sexo casual e satisfação momentânea.
O mar diante da janela do apartamento onde Lóri se posta tantas vezes ao longo do filme parece fazer, ao mesmo tempo, o contraponto da superficialidade descartável desses encontros passados e um chamamento.
Quando conhece Ulisses, Lóri confessa a ele nunca ter tido coragem de entrar no mar. O medo do mar aqui se confunde com o medo de amar. A insegurança das ondas e a ausência de garantias da entrega amorosa juntas, ambas subvertidas por um processo de aprendizagem que privilegia o olhar feminino e os sentidos.
Ao se encontrar consigo mesma, Lóri pode finalmente ter um encontro de dois inteiros com Ulisses, com quem entende que "amar não é morrer". Como o livro, que começa com uma vírgula e termina com dois pontos, "O Livro dos Prazeres" inspira o recomeço.
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