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Ensaios de Celso Furtado resumem sua obra
Lucidez incansável
Em Busca de Novo Modelo -
Reflexões Sobre a
Crise Contemporânea
Celso Furtado
Paz e Terra (Tel. 0/xx/ 11/ 3337-8399)
102 págs., R$ 12,00
FRANCISCO DE OLIVEIRA
Na capa deste pequeno grande livro deveria constar: "Leitura obrigatória para
políticos, especialmente presidenciáveis". Em sete pequenos artigos e uma
apresentação, Celso Furtado resume sua
vasta e profícua obra, com uma largueza
de pontos de vista, abrangência e generosidade que confirmam, de forma insofismável, seu lugar na cultura brasileira.
Trata-se de uma espécie de testamento
que, por isso mesmo, torna-se leitura
obrigatória, ainda que continuemos a esperar dele, como de Antonio Candido,
Raymundo Faoro e poucos outros, que
continuem a enriquecer a reflexão sobre
o Brasil e o mundo.
O tema da nação, sua construção em
um mundo desde o começo internacionalizado, nossa capacidade de nos afirmar sem recusar a modernidade, constitui o "leitmotiv" de sua obra, reapresentado nesta nova contribuição. Sua preocupação maior -tal como à época em
que ajudou a forjar, junto com Raúl Prebisch (a quem é dedicado o 6� capítulo do
livro), o conceito de subdesenvolvimento
e a travar as batalhas contra a teoria tradicional do comércio internacional, a âncora ricardiana maior da teoria do crescimento econômico- é rejeitar o "pensamento único", hoje expresso na tese que
apresenta a globalização como inevitabilidade. Tal como ontem, cabe construir
nossa especificidade que, na teoria, deve
corresponder e sustentar a luta da cidadania pelo seu lugar na nação, e desta no
mundo. A atualidade desse esforço teórico não precisa ser exagerada.
Causas da pobreza
Por meio de comparação com a Índia
-cujas dimensões continentais, de pobreza, de desigualdade, cuja industrialização e diversificação produtiva notáveis
autorizam o paralelo conosco-, Furtado
procede a uma dissecação das causas da
pobreza e da desigualdade no Brasil. Encontra-as na baixa taxa de poupança e
sua combinação com a elevadíssima propensão a consumir das elites e classes médias enriquecidas, donde resulta que, se o
nível de pobreza é mais contundente na
Índia, as desigualdades são maiores no
Brasil.
Furtado volta a explorar um tema que
lhe é muito caro, especialmente tratado
nas obras dos anos 70, ou seja, a denúncia
do consumo supérfluo e obscenamente
(o termo é meu) ostentatório das elites
brasileiras, que esteriliza a já baixa poupança nacional. Talvez ele pudesse ter
posto um acento mais grave na nova contradição entre o persistente aumento da
produtividade do trabalho no Brasil, os
baixos coeficientes de investimento e o
alargamento das desigualdades. Mas isso
está implícito todo o tempo: assim é a
globalização na periferia.
O segundo capítulo, "Que Futuro Nos
Aguarda?", é um mergulho vertiginoso
-talvez um dos mais completos e complexos do livro- nos dilemas e perplexidades, contradições e oportunidades de
afirmar a nação em um mundo crescentemente mundializado, ainda que esta seja a característica central da expansão capitalista desde a época das grandes navegações e, subsequentemente, do colonialismo moderno. Repassando as descobertas e invenções teóricas de que foi co-autor junto com a Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe) e com Raúl Prebisch,
vale dizer, a oposição à onipresente e
onisciente teoria do comércio internacional e sua filha fraca, a teoria do desenvolvimento, Furtado introduz uma crítica
quase frankfurtiana, e certamente devedora do marxismo, ao modo autoritário e
passivo (terá frequentado Gramsci agora?) da industrialização brasileira.
Há até mesmo ecos de Walter Benjamin: "Que é o nosso subdesenvolvimento senão o resultado de repetidos soçobros na decadência?". E põe o acento, para tentar corrigir essa espécie de atavismo
do capitalismo na periferia (ele, que é reconhecido como o grande economista
brasileiro de todos os tempos), na... política. O que pode parecer estranho à maioria de seus leitores e seguidores, mas não
é nada surpreendente nesse discípulo de
Max Weber -um dos maiores entre nós,
junto com Sérgio Buarque de Holanda e
Raymundo Faoro. A elaboração de uma
interpretação do Brasil, em que história e
teoria se dão as mãos, aparece aqui como
sua grande vantagem sobre os antigos liberais ("ma non troppo"), Eugênio Gudin e Roberto Campos, e os novos neoliberais, que nem sequer merecem menção
-minha , não da parte de Furtado, que
continua sendo muito elegante-, pois
não têm estatura teórica nem cívica para
medir-se com ele.
"As Raízes da Globalização" é um intermezzo para anunciar um ensaio de maior
fôlego. Aqui, nosso autor repassa brevemente não o processo histórico em termos das ondas da mundialização, mas as
tendências mais profundas da dinâmica
capitalista, a saber, a secularização da
idéia religiosa de progresso. Com mestria, reúne keynesianismo, suas leituras
de Marx e de Weber e, o que não é tão novo nele -vale rever o seu "O Mito do Desenvolvimento Econômico"-, um tom
adorniano de crítica à ilusão iluminista
do progresso.
Chave weberiana
"As Duas Vertentes da Civilização Industrial" talvez seja o capítulo mais luminoso deste livro tão luminoso. Como um
mestre flamengo, Furtado mistura em
sua palheta contribuições de clássicos já
consagrados com novos clássicos (Habermas, entre eles), a fim de decifrar o código da civilização industrial capitalista.
A chave-mestra é, sem dúvida, weberiana.
Trata-se de estabelecer como a modernidade é grávida de racionalidade substantiva e racionalidade instrumental, e de
como esta, se apossando da produção e
reprodução do sistema, termina se impondo sobre a primeira. De como a acumulação de capital abarca e subordina os
valores culturais e os transforma em bens
culturais. De novo, uma sugestão bem
próxima dos frankfurtianos, a velha dialética entre fins e meios. Destaque dado à
periferia, onde a subordinação colonial e
posteriormente imperialista -o termo é
meu- sufocou a criatividade política,
que se reproduz como mimetismo das
elites e mandonismo local.
Em "A Responsabilidade do Economista", Furtado revê seus próprios passos, desde os tempos do doutoramento
na França, no imediato pós-guerra (na
qual esteve como tenente voluntário da
FEB; voluntário, aqui aparece outra vez
uma das faces de sua profissão de fé republicana) até sua entrada na Cepal. É quase
uma etnografia da formação de um economista na periferia: de como inicialmente uma suspeita, um desconforto
com a inadequação dos modelos clássicos e neoclássicos frente ao presente da
América Latina se transforma na produção de uma teoria forjada pela união com
a história, esteio de uma original contribuição à economia política de nosso tempo, a teoria do subdesenvolvimento.
Se ainda há jovens -que são insistentemente presentificados pela indústria
cultural e tornam-se descartáveis em sua
juventude- e se ainda há jovens que
querem ser economistas, e mais, cidadãos, aqui está a lição para o futuro.
"O Centenário de Raúl Prebisch" é nostalgicamente benjaminiano. Furtado rende homenagem àquele que exerceu provavelmente a maior influência em sua vida. Mas discretamente, como é de seu feitio, quase escondendo a emoção. Revê os
dias iniciais da Cepal, em Santiago do
Chile, onde se localizaria até o golpe militar que derrubou Salvador Allende, à
época da empreitada política mais audaciosa da América Latina, juntamente
com Cuba, forjando uma efervescência
cultural que iluminou todo o continente.
Naquela Santiago suave, aos pés do monumento dos Andes, onde o futuro parecia se desenhar, um pequeno grupo -todo o staff da Cepal, em 1948, não passava
de dez funcionários- lutava contra o já
poderoso império norte-americano, legitimado pela vitória na Segunda Guerra
Mundial. A liderança brasileira, com
Vargas, foi decisiva para evitar o sufocamento da Cepal, em seus dias iniciais, pelos EUA, que já controlavam a Organização dos Estados Americanos, verdadeiro
"ministério das colônias" norte-americano. Lição que o novo presidente ou os
ainda presidenciáveis devem aprender.
O economista argentino aparece com a
aura de um refinado cavalheiro, aristocrático -tinha uma das maiores adegas
de Santiago do Chile, num país produtor
de excelentes vinhos-, heterodoxo, rebelde e... republicano. Permito-me reproduzir a lição de ética de Raúl Prebisch, citada por Furtado como resposta à sua indagação sobre por que não conseguira
um bom emprego depois de sua demissão da direção do Banco Central argentino: "Que emprego? Eu havia sido durante
anos diretor-presidente do Banco Central, conhecia a carteira de todos os bancos, pois havia ajudado a saneá-los, a
ponto de poder administrar o redesconto
pelo telefone. Quando me demitiram,
muitos grandes bancos me ofereceram
altas posições, mas como podia colocar
meus conhecimentos a serviço de um se
estava ao corrente dos segredos de todos?
Preferi reduzir meu padrão de vida ao de
um professor, o que não era muito".
Essa também é a ética de Furtado. Ninguém nunca o viu oferecendo seu conhecimento das entranhas do Estado brasileiro ao setor privado, tendo sido ministro de Estado por duas vezes, diretor do
BNDE e superintendente da Sudene. Que
diferença com a promiscuidade de hoje, a
venda de informações, o mapa da mina
das privatizações, a formação de fortunas
repentinas, a geração de novos banqueiros ex-funcionários!
"Os Sertões"
O sétimo e último capítulo é talvez o
mais inesperado. "O Que Devemos a Euclides da Cunha" -celebra o centenário
do livro que Furtado considera a mais
importante contribuição para o conhecimento do Brasil- revela um autor dominando uma vasta paisagem que inclui o
melhor da literatura brasileira. O que ajuda a responder a uma indagação que correu mundo quando Furtado foi ministro
da Cultura no governo Sarney: por que
aceitara aquela função? Por sobre o anacronismo do estilo euclidiano, vazado
num cientificismo positivista e numa antropologia de fatura colonialista, Furtado
recupera o que houve de inovador na
abordagem euclidiana: nasce uma interpretação anti-racista, que aposta nas "raças tristes" como portadoras de futuro.
Essa virada fará escola com os "demiurgos" da geração de 30, Gilberto Freyre,
Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Seu próprio itinerário é euclidiano: do meio da escória da teoria do comércio internacional de extração ricardiana e malbaratamento neoclássico,
Furtado faz sair uma interpretação original, em que se combinam história e teoria.
Resumir este pequeno grande livro teria a desvantagem da mera repetição que
não pode competir com o original. Tratei
apenas de apontar aos leitores seus principais pontos. Não há, propriamente, nada de novo no livro de Furtado. O que ele
mais provoca é espanto, com sua atualidade e com a atualização do autor, que
incorpora novos autores que não estavam em seus textos clássicos, ampliando
seu horizonte de observações e elaborações, trabalhando com mestria as conexões de sentido entre campos aparentemente tão distintos. Quando esta resenha
for publicada, os candidatos ao segundo
turno já estarão se preparando para enfrentar um novo e definitivo julgamento
das urnas. Mas é então que será preciso
ler este livro. A cidadania e a democracia
brasileira precisam dele.
Francisco de Oliveira é professor de sociologia
na USP e coordenador do Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania (CNEDIC).
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