São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2004

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GRAMPO NA ONU

As relações internacionais parecem representar o estado de natureza hobbesiano, no qual o logro e a força, impulsionados unicamente pelo interesse próprio, prevalecem sobre leis, tratados e princípios. Sendo assim, não chegam a surpreender as revelações, inicialmente feitas pela ex-ministra britânica Clare Short, de que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e outros importantes funcionários da organização tiveram seus telefones grampeados às vésperas da invasão do Iraque pela coalizão anglo-americana.
Travava-se, como se sabe, uma batalha diplomática. De um lado, norte-americanos e britânicos tentavam convencer o mundo de que Saddam Hussein representava uma ameaça iminente. De outro, vários países, capitaneados pela França e pela Alemanha, pediam mais tempo para as inspeções. O campo mais belicista não hesitou em utilizar-se de informações falsas para tentar provar suas teses -que depois se revelariam improcedentes- nem em empregar métodos pouco ortodoxos para conquistar o apoio das nações indecisas com voto no Conselho de Segurança. Nesse contexto, grampos podem até parecer violações menores.
Mesmo considerando isso tudo, preocupa a forma como os principais envolvidos reagiram à notícia. Os protestos dos grampeados foram de uma mansidão inquietante. E foi sintomática a atitude do premiê britânico, Tony Blair. Ele não negou que seu país fosse o responsável pelos grampos, mas, em vez de pedir desculpas a Annan e à comunidade internacional, sugeriu que a ex-ministra deveria ser punida pelo partido por ter feito a revelação.
Não se espera, é claro, que a arena das relações internacionais se torne, do dia para a noite, um convento. Mas um pouco mais de indignação e apego a princípios -ainda que afetados- seriam bem-vindos. A finalidade mesma do multilateralismo é tornar as relações entre Estados menos "naturais" e mais jurídicas.


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