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+ cultura
A introspecção de Evaldo Coutinho
O filósofo e crítico de arte
completa amanhã 90 anos
Marcos Enrique Lopes
especial para a Folha
Nasceu no dia 23 de julho de
1911, no Pátio do Terço, bairro
de São José, no Recife, um dos
mais importantes pensadores
brasileiros. Evaldo Bezerra Coutinho é
autor de nove livros sobre filosofia, estética da arte, arquitetura e cinema, todos
publicados pela editora Perspectiva. Segundo acostumou-se a dizer, "minha
obra são como nove capítulos de um livro só, por causa da coerência interna
que preside a todos". Fundada na ética,
sua exegese não faz nenhuma concessão:
é hermética, perfeita no uso da norma
culta da língua portuguesa, repleta de
neologismos, manuscrita.
Desde jovem, Evaldo Coutinho conviveu com algumas personalidades pernambucanas do início do século. Quando cursou o primário, no colégio Americano Batista, foi contemporâneo de Gilberto Freyre, a quem viria a substituir
anos depois na Academia Pernambucana de Letras, após a morte do sociólogo.
Estudou o secundário no ginásio Pernambucano, instituição reconhecida por
formar ilustres alunos. Substituiu o amigo Joaquim Cardozo na cadeira de estética da Escola de Belas Artes (1932), seis
anos após a sua fundação. Convidou
Ariano Suassuna a substituí-lo. Antes de
viajar ao Rio de Janeiro, onde trabalhou
no final dos anos 40 na mesma seção de
Sábato Magaldi, Lêdo Ivo, Paulo Mendes
Campos e Rubem Braga, conviveu com
Paulo Freire e, a pedido dele, teve, como
assistente, o ensaísta e crítico literário
Luiz Costa Lima.
Para a filósofa Marilena Chaui, ele teve
importante participação no desenvolvimento de estudos acerca da obra espinosista no Brasil, na medida em que, aos 22
anos, ainda estudante da Faculdade de
Direito de Recife, em 1932, escreve um
longo artigo (influenciado pela leitura de
"A Ética") sobre o tricentenário do nascimento do filósofo holandês de origem
judaica. Há, portanto, um paralelo entre
Coutinho e o cearense Farias Brito, autor
de escritos sobre Baruch Espinosa. Apesar da admiração profunda por Espinosa, efetivamente Evaldo o citou apenas
em "A Artisticidade do Ser", prevalecendo nas suas demais obras o desenvolvimento de uma filosofia própria, centrada
na idéia da morte e do solipsismo.
Essas idéias estão dispostas nos cinco
volumes de "A Ordem Fisionômica", a
base de sua ontologia. O professor e escritor paraense Benedito Nunes encontra nela o que chama de tanatologia, ressaltando que, em sua essência, "alcançou
um ritmo sintático, um fraseado aliciante, que seduz o leitor por sua clareza e riqueza vocabular, de cunho metafórico".
Lembra, ainda, a leitura "esplêndida"
que nos traz de "O Sofista", de Platão, ou
o paralelo que Wittgenstein lança sobre
o solipsismo como tese. "Ele é correto, só
que mostra o que não pode ser visto, o
que não pode ser dito". Quer dizer, faz
diferença entre o dizer e o mostrar, porque "as coisas que não podemos dizer é
melhor calar, pois quando a linguagem
filosófica ou poética se cala, ela está mostrando algo que não pode dizer inteiramente". E é isso que a arte e a literatura
fazem. Para Nunes, não se trata de um
simples esteta, um mero professor de filosofia, "mas de um verdadeiro filósofo".
Só para ter uma idéia da dimensão de
sua obra, basta dizer que a teoria crítica
de cinema, escrita de forma autodidata
com o nome de "A Imagem Autônoma",
expõe pensamentos pioneiros, antecipando determinados posicionamentos
defendidos por André Bazin em seus
"Cahiers du Cinéma" e com profundidade suficiente a ponto de chamar a atenção de Paulo Emílio Salles Gomes (na
época, editor do suplemento cultural de
"O Estado de S. Paulo"), que o indicou
para Jacó Guinsburg, o editor da Perspectiva. Evaldo Coutinho também atuou
como crítico de filmes do cinema mudo;
primeiro em 1929, no "Jornal do Commercio" de Recife, e, posteriormente, no
"Diário Carioca", entre 1946 e 1950.
Apesar de ter tido contato com inúmeros intelectuais, é pouco comentado, conhecido, respeitado. Curiosamente, a
imprensa brasileira, em 1951, antecipou a
sua morte quando "O Globo" publicou
uma nota sobre a queda, em Sergipe, de
um avião que ia do Rio para o Recife, ignorando o fato de ser um quase homônimo, Ivaldo Coutinho, uma das vítimas
do desastre aéreo. O incidente provocou
telegramas de pêsames para a família do
filósofo, porém, desfeita a gafe, Mendes
Campos e Rubem Braga trataram de escrever nos jornais locais, com bastante
comoção, sobre o engano.
Outros dois fatos relevantes são exemplos da peculiaridade da vida desse esquecido escritor. Fundador e primeiro
diretor da Escola de Arquitetura de Pernambuco, Coutinho recebeu, em 1960, o
filósofo francês Jean-Paul Sartre e sua
mulher, Simone de Beauvoir, para uma
palestra, mediada e traduzida pelo então
superintendente da Sudene, Celso Furtado. Sartre veio ao Brasil por meio da Difusão Européia do Livro, então dirigida
por Jacó Guinsburg. Do Recife, foi a Belém, onde foi recebido por Benedito Nunes, seguindo, depois, para Cuba. Detalhe: Jacó, Benedito e Evaldo ainda não se
conheciam. Anos depois, em 1970, seria
publicado o excelente ensaio crítico "O
Espaço da Arquitetura", de profundidade poucas vezes encontrada na literatura
de arquitetura do Brasil.
Essa obra foi quase integralmente copiada na tese de doutorado apresentada
à Universidade de Madri, em 1979, por
seu ex-aluno Max Luterman, hoje professor da Universidade Federal de Alagoas. Na época, a notícia foi um escândalo, obrigando o Ministério da Educação a
estabelecer um grupo, chefiado pelo professor Zildo Sena, para investigar o caso.
Ao fim das investigações, foi confirmado
o plágio, amplamente noticiado no "Jornal do Brasil", na revista "Veja" e no
"Diário de Pernambuco", já no início
dos anos 80.
De lá para cá, pouco se tem falado sobre ele, a não ser por uma ou outra data
especial. A reclusão de Evaldo Coutinho
justifica-se por ser dele próprio a opção
pelo isolamento ("já estou habituado a
isso, a aceitar o silêncio em torno de minha obra"). As referências inexistentes
representam, para ele, uma simbologia
de sua morte ("o meu sistema já está
morrendo comigo...").
Para evitar que isso aconteça de forma
mais contundente, hoje existe o Projeto
Evaldo 90, produzindo um site
(www.acomposicaodovazio.com.br),
fórum de debates (percorrendo universidades e fundações culturais brasileiras) e
um livro com artigos críticos à sua obra.
Discutindo e disseminando o seu pensamento, criamos pontes com o contemporâneo. Recluso, completa amanhã 90
anos. Embora abuse da introspecção,
sua vida ainda não é uma ilha de solidão.
Marcos Enrique Lopes é diretor, roteirista e produtor do documentário "A Composição do Vazio"
(2001), cinebiografia de Evaldo Coutinho.
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