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FERNANDO BONASSI
O incrível menino preso na fotografia
Eu sou o menino da fotografia. O incrível menino preso
na fotografia. Sentei-me nesta cadeira envernizada no dia 2 de
agosto de 1973, às oito horas e 50
minutos da manhã, conforme me
foi ordenado.
Vocês não podem ver a cadeira,
mas ela está... ou esteve... aí. Fomos, eu e meus colegas, convocados a uma cerimônia cívica, antes
de mais nada. Cantamos hinos e
nos prestamos às homenagens.
No tempo desta fotografia havia
muitas cerimônias cívicas e convocações e homenagens onde
cantávamos hinos...
A bandeira à minha direita pinica meu braço. Com o vento, esta bandeira à minha esquerda
também se agita e me atinge o cotovelo às cócegas. Dizem... disseram que eu ficasse aqui. Imóvel.
Aceitei. No começo porque estava
ansioso pra que o tempo chegasse.
Em seguida porque demorava
que o tempo passasse. Depois porque estava cansado que corresse
depressa...
Disseram que eu ficasse aqui.
Imóvel. Cumpro as minhas obrigações. Essa posição me pareceu
progressivamente confortável.
Não devo... não posso... me mexer.
De todo modo, no tempo desta fotografia, "se mexer" não é recomendável...
Olho adiante, onde há... havia...
a velha câmera-caixão equilibrada num tripé trêmulo. As velhas
câmeras-caixão caíram em desgraça, junto com as convocações e
os hinos... mas isso foi depois. No
instante desta fotografia onde estou isolado, o fotógrafo me manda... mandava... ficar imóvel. A
professora me diz... dizia... pra
cruzar os braços sobre essas folhas
de papel. Obedeci. Obedeço. Desde sempre. A ambos. No tempo
desta fotografia, convém obedecer. Depois... a tudo se acostuma.
É possível que houvesse alguma
inscrição nestas folhas de papel. É
possível que a inscrição tenha sido escolhida cuidadosamente pela professora ou até mesmo pelo
fotógrafo, mas a passagem do
tempo, agora, deve tê-la desgastado. Parecem folhas em branco outra vez. Não posso afirmar com
certeza, pois não posso baixar os
olhos. Estou cumprindo minhas
ordens, mas a passagem do tempo
apaga tudo, como vocês devem
saber...
Não quanto a mim, de todo modo, que olho adiante desde sempre, ainda que este mapa às minhas costas tenha perdido os sentidos da história. Mundos inteiros
se desagregaram e ele nem ali pra
retificações. Neste outro mapa
que forra a mesa (e eu podia jurar
que há... havia... uma mesa aqui
embaixo), ainda há rios monumentais, florestas monumentais,
estradas monumentais, pontes
monumentais... no tempo desta
fotografia tudo era... é... monumental; principalmente o medo.
Há... letras e números. Nunca
houve nomes. Provavelmente
porque não beneficiava a ninguém ser alguém muito específico
na época desta fotografia... daí as
letras e os números. Não deixa de
ser um alívio, supondo que fizesse
diferença. Estou no quarto ano.
Isso é evidente. Era assim que
chamavam nessa época, mas os
nomes das mesmas coisas mudaram muitas vezes. Há este "A" e este 12 incompreensíveis... Porque
era o 12� da lista de chamada da
classe A? Porque éramos 12 classes
de pessoas e eu pertenceria à primeira delas? Porque éramos uma
dúzia de classes especiais? Qual é
o ponto deste ponto que se cola ao
número? Minha memória me
trai. Aliás, já me esqueci da diferença de não estar. Muitos muros
caíram, muitos foram levantados.
Vi pessoas importantes tornarem-se criminosos e criminosos
tornarem-se pessoas importantes...
O fotógrafo manda... mandou...
que eu permanecesse imóvel e que
sorrisse, e frequentemente me
ocorre que pode ter sido por causa
disso; por causa dessa minha dificuldade com esses sorrisos com
que nos afetamos... Esses sorrisos
que podem se despregar de nossas
caras e se espatifar no chão.
Quem sabe por receio daquela...
dessa... queda ridícula... pode
ser... me ative a esta paralisia...
Eles insistem... O fotógrafo e minha professora insistiram, mas é...
era impossível. Meus dentes estão
definitivamente cerrados por baixo das carnes do rosto; meus maxilares estão muito bem prensados um no outro.
Olho sempre em frente, quase
cabisbaixo, como sugeriam as ordens e aqueles que acenam com
promessas. Acenava-se com promessas maravilhosas no momento dessa fotografia, diante das
quais nos mantemos quase cabisbaixos. Acabei resolvendo esperar
por elas... por todas essas promessas... aqui... agora... então...
Daqui posso ver que tudo se
move, ainda que alguns cães insistam em morder o próprio rabo.
Já minha própria aparência não
me diz respeito se meus olhos não
a vêem. Meu coração não sente
bem. Nem mal. As coisas que eu
devia ter feito e as coisas que eu
deixei de fazer empatam em zero
a zero. Não chega a ser um grande resultado. Nem é o pior deles.
Não desperdiço. Não gasto. Não
faço... a última árvore que se abateu por minha causa me deu essa
moldura de papel descolorido.
Me tornei essa paisagem humana. Uma imagem de homem. Não
sei o que foi feito dos meus colegas, mas permaneci. O impasse é
a melhor síntese do meu movimento. Daqui posso ver tudo. Eu
estou de olho em vocês... e adiante... não posso fazer nada.
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