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MARCELO COELHO
Ziguezague político e ideológico
Morrem dois motoboys
por dia em acidentes de
trânsito na cidade de São Paulo.
A informação passa voando pelo
documentário "Motoboys - Vida
Loca", de Caíto Ortiz, que entrou
em cartaz sexta-feira na cidade.
Seria inadequado exigir grande
aprofundamento do assunto,
num filme que tem menos de uma
hora de duração. Pensando bem,
é mais tempo do que a maioria de
nós, automobilistas, já dedicou ao
tema ao longo dos últimos anos.
Isso, se tivermos tido a sorte de
contabilizar apenas alguns sustos
rápidos na hora de mudar de faixa ou trancos sem maior importância no espelhinho lateral. Penso no pesadelo que seria estar envolvido num acidente grave com
motoqueiros -e isso, afinal, não
é difícil de acontecer.
De quem é a culpa? Eis uma
pergunta que, acidentes à parte, o
documentário de Caíto Ortiz tem
a sabedoria de não responder.
Evita-se qualquer vitimização.
Há desde um motoqueiro que se
orgulha da própria temeridade
-seu prazer profissional, diz, está na "adrenalina" produzida-
até o pachorrento chefe de família, pesando bem uns cem quilos,
que se equilibra sobre a moto com
descomunal torpor. Às vezes, trata-se de um trabalho que se aceitou por falta de melhor alternativa; em outros casos, a escolha foi
consciente e -como na dramática história da motogirl Madá-
resulta de um cabal desgosto pela
vida.
Dizer que cada caso é um caso, e
centrar a atenção em personagens concretas, muito diferentes
entre si, não é entretanto dizer toda a verdade. "Motoboys - Vida
Loca" contribui para que tenhamos uma visão mais próxima e
humanizada dessas legiões
ameaçadoras e sem rosto; no filme, cada motoqueiro que tira o
capacete é de uma simpatia
transbordante.
Cumpre, ao mesmo tempo,
mostrar a situação que iguala todos numa estatística terrível; nesse ponto, o documentário não
carrega nas tintas. Apesar das advertências do início (pede-se que
menores de 14 anos não vejam o
filme) e de algumas cenas de acidente, no dia-a-dia paulistano
não seria difícil encontrar imagens bem mais chocantes do que
as selecionadas pelo diretor.
Não vou dizer que o documentário "estetiza" a tragédia dos
motoboys. Creio que, nas discussões da crítica cinematográfica
sobre a "cosmética" da fome, sobre a "espetacularização da violência" etc., há bastante puritanismo em jogo. No filme de Caíto
Ortiz, as imagens que "desindividualizam" a tragédia, que apontam para suas dimensões sociais
mais amplas, são ao mesmo tempo as mais bonitas, silenciosas e
comoventes.
Assim, há mais pudor do que
eufemismo, e mais beleza do que
espetáculo, na longa cena em que
a câmera mostra um desmanche
de motocicletas. Em vez de expor,
de modo macabro, os corpos das
pessoas que sofreram acidentes,
Ortiz apresenta uma quantidade
incalculável de motos destruídas
e amontoadas num terreno baldio.
Mas o que predomina no filme,
apesar da gravidade do assunto, é
uma sensação de euforia. Temos
a impressão de que o diretor se
contagiou -e termina contagiando, por seu turno, o espectador- com a alegria dos próprios
motoboys, ao perceberem que finalmente alguém se resolveu a
entrevistá-los, a mostrar a vida
que levam.
Graças à tecnologia digital, a
câmera monta na garupa da moto -e na tela podemos ver, até ficar com enjôo de estômago, todos
os ziguezagues, acelerações, freadas e loucuras de um trajeto; chega-se ao cúmulo de entrevistar
um motoqueiro em movimento,
em pleno trânsito da avenida 23
de Maio.
O movimento de ziguezague, a
"costura" que as motos fazem entre as fileiras de carros parados no
trânsito, talvez seja o que orienta
a forma do documentário em seu
conjunto. Isso se manifesta não só
no vaivém entre a personalidade
de cada motoqueiro e o destino
coletivo dessa categoria profissional, mas também em outro contraponto, bem desnorteante. É
que o filme alterna entrevistas
com motoqueiros e depoimentos
de pessoas de classe média e alta,
dentro de seus carros de passeio. É
verdade que também motoristas
profissionais -de ônibus, de
Kombi- falam para a câmera.
Mas, quando o filme apresenta o
"nosso lado" -entrevistando
pessoas como Washington Olivetto, Gilberto Dimenstein e Serginho Groisman-, tudo se torna
mais complexo e indecidível.
Os proprietários de carro (que
se enchem e se compadecem dos
motoboys, que os odeiam e que os
entendem, que os desconhecem e
temem) funcionam como o verdadeiro núcleo "dramático" do
filme. Todos nós temos a consciência da loucura que é viver numa cidade como São Paulo, ou
numa sociedade como a brasileira. Já os motoboys sabem e experimentam na própria carne o absurdo dessa condição. A alegria
de se verem como tema de um documentário parece diminuir, ou
tornar indireta, essa sensação de
angústia e de aflição -que nós,
os cidadãos de carro, verbalizamos cotidianamente.
"Esses motoristas burgueses. Esses riquinhos. Esses barbeiros. Esse bando de idiotas." Quem deveria falar desse jeito, claro, são os
motoboys. Mas não. Quem fala
coisas assim é o consagrado arquiteto Paulo Mendes da Rocha.
Certo que não há muita novidade
nisso. Nesse ziguezague político e
ideológico, somos nós os peritos.
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