São Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2004

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MARCELO COELHO

Ziguezague político e ideológico

Morrem dois motoboys por dia em acidentes de trânsito na cidade de São Paulo. A informação passa voando pelo documentário "Motoboys - Vida Loca", de Caíto Ortiz, que entrou em cartaz sexta-feira na cidade.
Seria inadequado exigir grande aprofundamento do assunto, num filme que tem menos de uma hora de duração. Pensando bem, é mais tempo do que a maioria de nós, automobilistas, já dedicou ao tema ao longo dos últimos anos. Isso, se tivermos tido a sorte de contabilizar apenas alguns sustos rápidos na hora de mudar de faixa ou trancos sem maior importância no espelhinho lateral. Penso no pesadelo que seria estar envolvido num acidente grave com motoqueiros -e isso, afinal, não é difícil de acontecer.
De quem é a culpa? Eis uma pergunta que, acidentes à parte, o documentário de Caíto Ortiz tem a sabedoria de não responder. Evita-se qualquer vitimização. Há desde um motoqueiro que se orgulha da própria temeridade -seu prazer profissional, diz, está na "adrenalina" produzida- até o pachorrento chefe de família, pesando bem uns cem quilos, que se equilibra sobre a moto com descomunal torpor. Às vezes, trata-se de um trabalho que se aceitou por falta de melhor alternativa; em outros casos, a escolha foi consciente e -como na dramática história da motogirl Madá- resulta de um cabal desgosto pela vida.
Dizer que cada caso é um caso, e centrar a atenção em personagens concretas, muito diferentes entre si, não é entretanto dizer toda a verdade. "Motoboys - Vida Loca" contribui para que tenhamos uma visão mais próxima e humanizada dessas legiões ameaçadoras e sem rosto; no filme, cada motoqueiro que tira o capacete é de uma simpatia transbordante.
Cumpre, ao mesmo tempo, mostrar a situação que iguala todos numa estatística terrível; nesse ponto, o documentário não carrega nas tintas. Apesar das advertências do início (pede-se que menores de 14 anos não vejam o filme) e de algumas cenas de acidente, no dia-a-dia paulistano não seria difícil encontrar imagens bem mais chocantes do que as selecionadas pelo diretor.
Não vou dizer que o documentário "estetiza" a tragédia dos motoboys. Creio que, nas discussões da crítica cinematográfica sobre a "cosmética" da fome, sobre a "espetacularização da violência" etc., há bastante puritanismo em jogo. No filme de Caíto Ortiz, as imagens que "desindividualizam" a tragédia, que apontam para suas dimensões sociais mais amplas, são ao mesmo tempo as mais bonitas, silenciosas e comoventes.
Assim, há mais pudor do que eufemismo, e mais beleza do que espetáculo, na longa cena em que a câmera mostra um desmanche de motocicletas. Em vez de expor, de modo macabro, os corpos das pessoas que sofreram acidentes, Ortiz apresenta uma quantidade incalculável de motos destruídas e amontoadas num terreno baldio.
Mas o que predomina no filme, apesar da gravidade do assunto, é uma sensação de euforia. Temos a impressão de que o diretor se contagiou -e termina contagiando, por seu turno, o espectador- com a alegria dos próprios motoboys, ao perceberem que finalmente alguém se resolveu a entrevistá-los, a mostrar a vida que levam.
Graças à tecnologia digital, a câmera monta na garupa da moto -e na tela podemos ver, até ficar com enjôo de estômago, todos os ziguezagues, acelerações, freadas e loucuras de um trajeto; chega-se ao cúmulo de entrevistar um motoqueiro em movimento, em pleno trânsito da avenida 23 de Maio.
O movimento de ziguezague, a "costura" que as motos fazem entre as fileiras de carros parados no trânsito, talvez seja o que orienta a forma do documentário em seu conjunto. Isso se manifesta não só no vaivém entre a personalidade de cada motoqueiro e o destino coletivo dessa categoria profissional, mas também em outro contraponto, bem desnorteante. É que o filme alterna entrevistas com motoqueiros e depoimentos de pessoas de classe média e alta, dentro de seus carros de passeio. É verdade que também motoristas profissionais -de ônibus, de Kombi- falam para a câmera. Mas, quando o filme apresenta o "nosso lado" -entrevistando pessoas como Washington Olivetto, Gilberto Dimenstein e Serginho Groisman-, tudo se torna mais complexo e indecidível.
Os proprietários de carro (que se enchem e se compadecem dos motoboys, que os odeiam e que os entendem, que os desconhecem e temem) funcionam como o verdadeiro núcleo "dramático" do filme. Todos nós temos a consciência da loucura que é viver numa cidade como São Paulo, ou numa sociedade como a brasileira. Já os motoboys sabem e experimentam na própria carne o absurdo dessa condição. A alegria de se verem como tema de um documentário parece diminuir, ou tornar indireta, essa sensação de angústia e de aflição -que nós, os cidadãos de carro, verbalizamos cotidianamente.
"Esses motoristas burgueses. Esses riquinhos. Esses barbeiros. Esse bando de idiotas." Quem deveria falar desse jeito, claro, são os motoboys. Mas não. Quem fala coisas assim é o consagrado arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Certo que não há muita novidade nisso. Nesse ziguezague político e ideológico, somos nós os peritos.


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