|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Filme faz retrato cruel e humano de David Bowie
do enviado ao Rio
Declarada ficção, "Velvet Goldmine" é produto descaradamente
inspirado na figura de David Bowie, ali eleito, não sem razão, homem-símbolo do glitter. Mais: é
uma reflexão aguda sobre aquela
mesma pessoa, possível homem-símbolo da cultura pop dos 70.
Brian Slade, o personagem, passa
por todas as etapas por que Bowie
passou até 84, quando o ciclo do
filme se encerra. Trata-se de referência ao "1984" de George Orwell
e a "Diamond Dogs" (74), LP com
que Bowie, sob total inspiração de
"1984", encerrou a fase glitter.
Ele começa de terninho, adolescente "mod" moldado pelas bandas da "swinging London" dos 60
(Who, Kinks) -é o Bowie semi-anônimo de "The Laughing Gnome" (67) e "Space Oddity" (69).
Daí a pouco, já canta ostentando
longos e escorridos cabelos louros
e um vestido longo -é o Bowie rebento dos abortos do "mod" e do
"flower power", o de "Changes"
(71), bomba-relógio acionadora da
revolução de gêneros sexuais que
viria a se chamar glitter.
Aqui ainda há algo de ocultação.
Pois a figura de Marc Bolan, amigo, rival e detonador do "ChangesBowie" -talvez iniciador factual
do glitter, lado a lado com os longos cílios postiços de Malcolm
McDowell em "Laranja Mecânica"
(71), de Stanley Kubrick- é simplificado numa drag queen que
inicia a vida sexual gay de Slade.
Em seguida, ele aparece caracterizado tal qual o ET Ziggy Stardust
-plumas, tinturas azuis e aquele
corte de cabelo que, anos à frente,
só foi encontrar seguidores em
gente como Chitãozinho e Xororó.
A partir dessa passagem, a ficção
alucinada alça vôo. Slade/Bowie se
apaixona por Curt Wild -um liquidificado de Iggy Pop com Lou
Reed, mais fartas pitadas do mocinho dos 90 Kurt Cobain, favorecidas pela caracterização desta vez
deficiente de Ewan McGregor.
Quando Slade e Wild consumam
sua paixão, a trilha de fundo é "Satellite of Love", a canção mais rasgada de "Transformer" (72), disco
que salvou Lou Reed das teias de
aranha. Quem produziu? Bowie.
Quem geme feito gata no cio nos
backing vocals? Bowie.
A partir de tal encontro, "Velvet
Goldmine" vira novelão romântico -gay. Tudo pode bem se resumir às fantasias do diretor, mas na
mesma medida tudo cabe como
pura expressão dos fatos.
A dúvida permanecerá -ao alcance do público, astros pop não
sofrem, não são felizes/infelizes,
não amam-, mas "Velvet Goldmine" avança alguns quilômetros
na história da cinematografia pop,
por não temer a hipérbole. Dado
incomum em filmes americanos
candidatos ao mainstream, não se
dilui em sugestões ou suavizações.
No decorrer do filme, McGregor
interpretará nudez frontal; Slade
beijará, apaixonado, a boca de
Wild; este fará sexo com Arthur
Stuart (Christian Bale), terceiro
vértice da história, do qual é melhor nem falar antes do filme.
O glitter, pela ótica do militante
Todd Haynes, terá sido, menos
que uma convulsão de ambivalência sexual na história do século 20,
o momento em que a conduta gay
tomou a frente da cena e não teve
qualquer pudor de dizer seu nome.
Com o tempo, até seus protagonistas -como Bowie e os essenciais e em princípio extra-glitter
Bryan Ferry e Brian Eno- jogaram fumaça sobre a crueza da história. Fantasioso ou realista, Haynes restabelece até onde pode a
crueza, construindo um retrato
muito cruel -e humano- de David Bowie, logo do homem dos 70,
logo de qualquer homem.
(PAS)
�
Filme: Velvet Goldmine
Onde: Estação Botafogo (r. Voluntários da
Pátria, 97, Botafogo, Rio, tel. 021/286-0893)
Quando: hoje, às 21h30
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|