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LIVRO/LANÇAMENTO
"CONVERSA NA SICÍLIA"
Romance traz personagem que volta à cidade da infância para o aniversário da mãe solitária
Elio Vittorini converte recordação em invenção
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Seria improvável que Elio
Vittorini (1908-1966) qualificasse sua obra-prima "Conversa
na Sicília" (1937) de maravilhosa.
Na verdade, seria improvável que
o escritor italiano, considerado
um dos precursores do neo-realismo, empregasse qualquer tipo
de adjetivo para qualificá-la: sua
linguagem é precisa, seca, substantiva, agreste.
E, no entanto, "Conversa na Sicília" é exatamente isto: um livro
maravilhoso como poucos.
O neo-realismo de Vittorini é
muito peculiar, se é que se pode
falar em neo-realismo nessa narrativa de um homem que volta às
montanhas da Sicília de sua infância, para o aniversário da mãe solitária.
A linguagem substantiva, ligada
a uma realidade social precária,
reduzida ao mínimo, se coaduna
com uma espécie de acontecimento feito da falta de acontecimentos.
A literatura passa a ser o próprio
acontecimento ao transformar a
falta de fatos e de esperança, o desespero da calmaria em que vive
essa gente, numa nova forma, numa nova possibilidade de narrar,
que aponta mais para a possibilidade da criação do que para o fato
narrado ou para a ausência de fato narrado, e assim o redime, dá a
ele "dignidade na miséria".
Em sua viagem até a pequena cidade da mãe, o narrador é só ouvidos, um sujeito de passagem
por uma realidade de vozes desesperadas ou fantasmagóricas (e
muitas vezes tremendamente engraçadas no seu desespero e na
sua resignação), como alguém
que ouve conversas ao redor sem
saber se ainda sonha ou se já está
acordado.
Sob o véu da nostalgia da infância e da volta à terra natal ("a crença dos sete anos" que todo mundo
procura no fundo da memória
para se refugiar quando se sente
cansado do presente), Vittorini
acaba por converter a recordação
em invenção.
Voltar se transforma num ato
de criação no presente. A mãe é
agora, ao mesmo tempo, "uma
aparição e a lembrança dela, duas
vezes real".
A Sicília de que fala o autor "só
porventura é a Sicília", porque
passa a fazer parte de uma "quarta dimensão", um lugar que é todos os lugares e para onde tudo
conflui, o passado e o presente, os
vivos e os mortos.
De todas essas conversas, nenhuma pode ser mais engraçada e
comovente do que a que o narrador tem com a mãe, que ele acompanha de casa em casa, quando
ela vai aplicar injeções nos doentes da cidade.
Falam do passado e da família,
do marido que a abandonou, do
filho morto na guerra, do desejo,
do sexo e de um amante que ela
nunca mais viu.
As coisas mais espantosas vão
sendo ditas casualmente e com
uma brutalidade cômica de sentimentos, no desespero da calmaria.
Assim também, muitas vezes o
que ela diz tem menos importância do que o que revela ao se contradizer em permanência e que
acaba permitindo uma chave analógica para o tipo de neo-realismo
que propõe Vittorini: não o retrato sociológico de uma realidade,
mas a idéia de que a riqueza dessa
realidade para a literatura depende da subjetividade do olhar lançado sobre ela.
A literatura aqui é antes de mais
nada uma forma de perguntar,
para colher respostas estranhas:
"Pois era isso que eu queria, as
respostas estranhas".
As conversas vão se tornando
mais e mais absurdas e oníricas
em sua realidade paradoxalmente
bruta e seca, a ponto de deixar no
leitor a impressão de uma parábola cuja moral não será nunca
totalmente compreensível.
Os sicilianos de "Conversa na
Sicília" lembram, nas últimas páginas do livro, os dublinenses de
Joyce, a discorrer sobre os vivos e
os mortos, sem nos deixar saber
de qual lado estão.
Conversa na Sicília
Autor: Elio Vittorini
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 39
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