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"OBSCENO ABANDONO"
Sofrimento claustrofóbico está na medida certa
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Nada do que se escreve
sobre o amor já não foi
sentido." A frase abre o texto de
orelha do livro de Marilene Felinto, colunista da Folha, para a coleção "Amores Extremos", da editora Record, inaugurada recentemente com "Obsceno Abandono", dela, e "Solo Feminino", de
Lívia García-Roza.
Talvez seja o contrário. Talvez,
como pensavam Flaubert e Stendhal, tudo o que se sente como
amor foi antes literatura. Cada experiência amorosa, seja anônima,
insignificante, trágica ou grandiosa, não passa de mais uma nota de
rodapé na grande saga romântica
da modernidade. Somos personagens de nossas fantasias literárias.
Mas sobram sempre restos (de
texto? de vida?) pedindo para ser
escritos. Grandes são os escritores
capazes de ainda inventar palavras novas para as histórias de
amor. Palavras como estas: "E eu
resolvi passar o dia seguinte sozinha, só para me preservar e poder
me entregar a você (...) como se eu
fosse um nascimento".
O grifo, meu, talvez seja dispensável. Quis garantir que o leitor
fosse atraído rapidamente para a
idéia do nascimento, da inauguração de um corpo em um primeiro encontro de amor. E da fragilidade, como não. Da fragilidade deste ser recém-nascido, parido a partir do toque do amante e
lançado na inevitável, na dolorosa
dependência de continuar sendo
amado para não morrer.
Só que não é da inauguração do
amor que este livro trata. É do
abandono. Para isso, Marilene Felinto lança mão de uma voz feminina característica de sua literatura, desde o belíssimo (e precoce)
"Mulheres de Tijucopapo" (1982).
Como as outras mulheres criadas por Marilene, esta daqui (que
chamarei de Madalena) traz a
marca da violência verbal. "Pois
eu quero que você vá para o inferno, Charles. De todas as pessoas
que não me quiseram, você foi a
pior. Ora, uma pessoa não pode
viver a outra com tanta profundidade, com tanta intensidade, e depois não viver mais, de uma hora
para a outra!" Violência de mulher que vira bicho, que vira fera,
que se volta toda contra o outro
para ainda estar na jogada do
amor, para não sucumbir por
efeito do (obsceno) abandono.
Violência que é o avesso da ternura, o "avesso de um sentimento".
Ressentimento? É possível. A
queixa insistente de Madalena,
versão moderna das cartas de Soror Mariana Alconforado (traduzidas e prefaciadas por Marilene
Felinto para a coleção "Lázuli", da
Imago, em 1991), resvala perigosamente no que costumo chamar
de estética do ressentimento
-são textos em que a autopiedade de um personagem atrai as
simpatias do leitor e fornece um
ponto de vista único, sem ambiguidades, para a narrativa.
Mas a personagem de "Obsceno
Abandono" é construída com
mais inteligência. Ela não se ressente: se arrepende. Seu sofrimento é agravado pelo fato de que
ela sabia, sempre soube, do risco
que estava correndo. Sua dor é
agravada pelo arrependimento.
"Meu único caminho teria sido
aprender isto: que na vida tem
gente que não quer a gente." Mas
aprender como? Com a perda?
Como aprender com quem nos
fala em uma língua incompreensível? Em um dos melhores contos de "Postcard" (92), a personagem narradora explica: "Pois
quando alguém diz de você, por
acaso, que não te quer mais, soa
como língua estrangeira".
Parida e criada pelo amante na
língua do amor, Madalena não
consegue entender o dialeto do
abandono. "Uma pessoa não pode fazer isso com a outra -deveria haver uma lei, um decreto
cheio de artigos (...) que proibissem esse tipo de usurpação das
ilusões, de fraudes amorosas."
"Obsceno Abandono" é um texto breve, como que escrito com
pressa, com precipitação. Efeito
dos prazos contratados com a editora? Ou não: efeito do mal-estar
em que a autora lança a personagem -e o leitor- sem dó. Felinto escreve sem dó. "Doendo". Se
ele soubesse o que é dor. Crateras
e rombos e vazios e fisgadas de
dores profundas era o que não me
faltava, é o que não me falta."
Falta distanciamento, falta ironia, falta qualquer mínima fresta
por onde entre ar no sofrimento
claustrofóbico de Madalena. Se o
texto se alongasse, seria insuportável -daí a brevidade, a pressa
em concluir. E ela conclui sem refresco: "O que nasceu e morreu
fui eu -eu sozinha, eu sem ninguém". Então aquela que nasceu
no amor morre no fim do amor.
Resta uma voz, uma falação insistente, dolorida, dirigida a quem
não está mais lá para escutar.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise"
(Companhia das Letras), entre outros.
Obsceno Abandono
Autora: Marilene Felinto
Editora: Record
Quanto: R$ 17 (84 págs.)
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