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RODAPÉ
Hungria tem outros autores tão bons quanto Imre Kertész
NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA, EM PARIS
O romancista húngaro Imre Kertész ganhou esta semana o primeiro Nobel literário
de seu país. Prêmios são prêmios,
ou seja, descontando o cheque de
mais ou menos US$ 1 milhão
(que, aliás, não é um desconto
qualquer), o juízo literário da
Academia Sueca é apenas mais
uma opinião. Não há entre os acadêmicos suecos nenhum crítico
ou literato cujas escolhas, desassociadas do prestígio da "grife",
seriam levadas particularmente a
sério fora da Escandinávia.
Se é verdade que os atuais jurados, bem como seus predecessores, colecionaram mais erros do
que acertos, ainda assim, quando
acertam, o fato é importante. Pois
os erros se corrigem por conta
própria (através do esquecimento), enquanto um prêmio desses
consegue às vezes divulgar seja alguém que corria o risco de ficar
confinado a um público restrito,
como Elias Canetti ou Czeslaw
Milosz, seja a literatura de algum
país menos conhecido, como, no
caso presente, a da Hungria.
Há um longo e provavelmente
ocioso debate no qual se busca determinar se os húngaros e seus vizinhos tchecos e poloneses pertencem, com a Alemanha e a Áustria, à Europa Central, ou à do
Leste, em companhia de romenos, ucranianos e russos.
Seja como for, uma coisa é certa:
as línguas nas quais os povos desconfortavelmente comprimidos
entre Alemanha e Rússia escrevem não são muito conhecidas ou
estudadas fora da região, e suas literaturas tampouco têm sido generosamente apresentadas nos
idiomas mais frequentados.
É uma pena. Seus melhores autores, talvez menos numerosos,
de modo nenhum se eclipsam
diante dos grandes escritores ocidentais. Se a premiação de Kertész contribuir não só para reavivar um pouco a memória (que anda fraca) dos europeus a respeito
de sua história recente, como
também para pôr o trabalho de
seus conterrâneos em circulação,
esta terá sido uma homenagem
útil. E não só para a Hungria.
Os que falam o idioma dos magiares (que é como os húngaros se
chamam na própria língua) sabem que, apesar de alguns bons
pintores, vários excelentes compositores (sobretudo Béla Bartok)
e ótimos romancistas, o que o país
fez de melhor foi sua poesia.
Não adianta alinhavar nomes
difíceis e desacompanhados dos
textos capazes de comprovar seu
nível. Basta dizer que a poesia
húngara se enraíza, por um lado,
na antiquíssima tradição oral e
pagã dos idiomas com os quais
mantém parentesco, já que a língua não pertence à família indo-européia, mas sim à fino-ugriana
dos finlandeses, estonianos e de
vários outros pequenos povos
dispersos pelo norte da Eurásia,
principalmente na Sibéria.
Por outro lado, ela se abriu, desde a Idade Média, à riqueza das
influências européias e, a partir
do século 19, também das universais. O resultado foi a obra de uma
boa dúzia de poetas soberbos, cujo renome só não rivaliza com o
daqueles que escreveram nas línguas (por assim dizer) imperiais
porque boas traduções de poesia
são sempre raras.
Nem por isso são secundários
ou irrelevantes os prosadores do
país. A ficção húngara, que é relativamente recente, alcançou uma
estatura internacional apenas no
século 20. Foram os escritores
agrupados em torno da revista
"Nyugat" ("Ocidente"), que, fundada antes da Primeira Guerra,
sobreviveu até a segunda, aqueles
que produziram os primeiros
grandes romances e contos do
país. Entre os melhores dessa geração encontravam-se Gyula
Krúdy (1878-1933), Zsigmond
Móricz (1879-1942) e Dezsö Kosztolányi (1885-1936), todos bem representados nas duas deliciosas
antologias de contos que Paulo
Rónai traduziu para o português.
Depois deles, as três ou quatro
gerações seguintes se beneficiaram de seu legado de inovações
estilísticas, apetência ou mesmo
voracidade temática, profundidade histórica e percepção psicológica, além de pura e simples competência narrativa.
A Hungria entrou na era moderna como sócia menor da Monarquia Austro-Húngara, saiu
perdedora da Primeira Guerra,
cujo veredicto lhe amputou dois
terços do território e cerca de metade da população, distribuindo-os entre as nações vizinhas, sofreu
o impacto das crises do entreguerras e de uma ditadura fascistizante, aliou-se ao lado errado
durante a Segunda Guerra, foi
ocupada sucessivamente por alemães e russos, amargou meio século de despotismo político e desastre econômico sob o regime
comunista, e não foi antes de 1989
que recomeçou a experimentar o
que, em lugares mais felizes, chamam de normalidade. Assim, se
há algo de que os seus escritores
nunca puderam reclamar, é da
falta de assuntos suficientemente
graves ao alcance da mão e, não
raro, do pescoço.
Ter conseguido dar criativamente conta de tal excesso indigesto de história não é a menor
das qualidades da prosa que escrevem hoje em dia, uma prosa
que, mesmo quando submetida a
coerções variadas, se conservou
esteticamente em forma. Daí ser
Imre Kertész um autor tão bom
quanto, mas não necessariamente
melhor do que alguns outros de
um grupo talentoso cujos participantes, como Péter Esterházy, Péter Nádas, György Konrád e
György Spiró, cada qual acessível
em inglês, francês, espanhol e alemão, merecem, todos, uma atenção pelo menos igual.
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