São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2004

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NELSON ASCHER

As dificuldades de Tony Blair

Há muito tempo não se assiste a algo tão estranho quanto o desenlace da batalha do Iraque.
Convém enfatizar que a ocupação não foi uma guerra, ou seja, uma operação completa que se explica por si mesma, mas sim um lance tático que só pode ser interpretado no horizonte estratégico de um jogo planetário. Quem ignore tal contextualização tampouco entenderia por que, após serem atacados pelos japoneses no Havaí em 1941, os EUA contra-atacaram no ano seguinte tomando possessões francesas no norte da África.
Os desdobramentos em questão nada têm a ver com a campanha assassina conduzida no próprio Iraque por mercenários e fanáticos religiosos geralmente estrangeiros e voltada cada vez mais contra a população local. Campanhas semelhantes não são raras, prolongam-se sob a forma de conflitos de baixa intensidade e quase sempre malogram.
O que há de novo é que muitos dos que conspiraram para salvar Saddam Hussein não se conformaram com o resultado do confronto e seguem tentando revertê-lo ou, pelo menos, fazer os responsáveis pela vitória relâmpago pagarem por ela um alto preço político. A querela em torno das armas de destruição em massa, que nunca foram o motivo fundamental da invasão, converteu-se em tópico proeminente na atual disputa presidencial norte-americana, com os democratas valendo-se de sua misteriosa ausência para encenarem uma imensa indignação. O eleitorado, contudo, vem dando uma atenção decrescente ao tema que, quando chegar a hora do voto, terá provavelmente se esgotado.
A situação na Inglaterra é diferente. Como esta não sofreu um ataque direto de forças convergentes do nacionalismo árabe e do fundamentalismo islâmico, sua população, ou parte dela, não se considera envolvida numa guerra mundial. Daí que a presente administração, sem poder contar, como a dos EUA, com a compreensão tácita dos eleitores, se visse obrigada a apresentar um "casus belli" ostensivamente vinculado a Bagdá. Há boas razões para os membros da coalizão anglo-americano-australiana, definindo o inimigo pudicamente como o terrorismo, não se declararem em guerra com uma parcela significativa e militante do mundo árabe-islâmico. No Reino Unido, com seu governo liberal, uma das principais provém da correção política.
O primeiro-ministro teve, no semestre anterior à invasão, de enfrentar, além da oposição encastelada em seu partido, uma tentativa de desestabilização possivelmente orquestrada pelo casal franco-germânico, tentativa cujo fracasso decorreu do "faux pas" de Jacques Chirac, que, brandindo a ameaça de veto no Conselho de Segurança da ONU, trouxe à memória dos britânicos desavenças seculares e aglutinou o parlamento em torno de seu líder. Mas nem a facilidade, nem o baixo custo humano da invasão o salvaram de dificuldades subsequentes. Levou meses para que se patenteasse a má-fé da BBC, epicentro do clima antiguerra, e, semana passada, após constatar que Katharine Gun, uma funcionária dos serviços de inteligência, não seria punida por acusar seus chefes de monitorarem as conversas de diplomatas do Conselho de Segurança, Clare Short, ex-ministra de Desenvolvimento Internacional, que havia se demitido em protesto contra a invasão (embora apenas depois desta), aproveitou para declarar que o governo ao qual pertencera havia espionado o secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
Ninguém acima da idade do chocalho ignora que essa é a função dos serviços secretos, que na comunidade internacional todos monitoram ou espionam todos, inimigos e amigos. Daí que a denúncia de Short fosse repudiada à esquerda, à direita e, o que é pior no seu caso, pelo grande rival de Blair, o ministro da Fazenda, Gordon Brown, para cuja ascensão ela pensava contribuir. O efeito cumulativo desses episódios acabou, no entanto, desgastando a atual administração, tornando-a, afinal, incapaz de se aliar efetivamente com seu parceiro estratégico americano nas próximas batalhas. E, se existe um culpado, ele se chama Tony Blair.
De quanto se possa depreender, os atentados binladenistas dividiram, no ato, a administração Bush em duas facções: de um lado, o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, queria ação e, do outro, o secretário de Estado, Colin Powell, pedia tempo para negociar com aliados reais ou imaginários. O primeiro pretendia usar a "janela de oportunidade" para invadir logo o Iraque, enquanto o segundo julgava mais justificável, diante da opinião pública internacional, começar pelo Afeganistão. Se bem que Powell tenha ganhado pontos importantes torcendo o braço do ditador paquistanês Pervez Musharraf, parece que foi Blair que fez a balança pender decisivamente para seu lado. Por quê?
A aliança de um primeiro-ministro inglês socialista, internacionalista e desejoso de "colocar seu país no âmago da Europa" com um presidente americano conservador e nacionalista não está, a rigor, entre as mais óbvias. Bill Clinton, o anti-Bush, fora o parceiro natural de Blair e ambos criaram juntos a "terceira via" que caracterizou os anos 90. Se este, a partir de 11 de Setembro de 2001, apoiou os planos de George W. Bush, foi por ter intuído que somente assim seria capaz de resgatar o que se edificara ou se consolidara na década anterior, da ONU à Corte Penal Internacional, da União Européia ao protocolo de Kyoto. Blair que, ao contrário de seus vizinhos continentais, acredita sinceramente nessas organizações, tratados e causas, assumiu os riscos que supunha necessários para salvar um sistema inteiro tornado subitamente obsoleto. Ele talvez ainda tenha de pagar por isso.



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