S�o Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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O desfecho do masoquismo hist�rico

O capitalismo come�a a libertar o homem do trabalho

ROBERT KURZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na hist�ria do pensamento ocidental, sobretudo na era moderna, a linguagem da filosofia e da ci�ncia afastou-se cada vez mais da linguagem do homem comum e tornou-se o linguajar secreto de uma casta sacerdotal do saber apartada do restante da sociedade. S�o poucos os conceitos que pertencem simultaneamente � esfera da reflex�o te�rica e � vida do dia-a-dia. "Trabalho" � um tal conceito. De um lado, ele representa uma categoria filos�fica, econ�mica e sociol�gica; de outro, ele � utilizado tamb�m com uma const�ncia desconcertante no cotidiano de todos os homens. Este car�ter peculiar do significado social de "trabalho" indica uma correla��o universal no mundo moderno. Palavra alguma �, � primeira vista, mais cristalina e, � segunda vista, mais turva do que esta.
Na filosofia e na teoria social, Karl Marx foi quem mais se valeu do conceito de "trabalho" como base de seu pensamento. E foi o marxismo que adotou com firmeza o ponto de vista do "trabalho", a fim de legitimar o grande movimento social dos assalariados na hist�ria moderna. Em termos filos�ficos, o "trabalho" �, para o marxismo, uma condi��o supra-hist�rica de exist�ncia do homem em sua rela��o com a natureza. Do prisma econ�mico, sob as lentes desta doutrina, o "trabalho" como forma universal de atividade humana � degradado a um estratagema de explora��o por meio do dom�nio da propriedade capitalista.
No aspecto sociol�gico, � a classe oper�ria que deve constituir-se politicamente como "partido do trabalho" para dar cabo da rela��o social de "explora��o do homem pelo homem" e lograr a "liberta��o no trabalho". Hoje, tal teoria da sociedade e da hist�ria, supostamente coesa e inabal�vel, perdeu seu conte�do de verdade; ela se afigura, por assim dizer, arcaica e empoeirada. Entretanto, o conceito de "trabalho" manteve sua validade e seu car�ter incontest�vel. Como se explica esta curiosa circunst�ncia?
O marxismo tentou sempre reivindicar para si o "trabalho" como ideal positivo e afastar-se do suposto "n�o-trabalho" do mundo burgu�s e seus representantes. Nas caricaturas da imprensa socialista do s�culo 19, os capitalistas eram representados, de prefer�ncia, como parasitas pan�udos ou como d�ndis e "fl�neurs" que gozavam uma vida agrad�vel e "sem trabalho", �s custas da classe trabalhadora. "Afastai os ociosos", diz a c�lebre "Internacional", o hino do movimento oper�rio. S�o antes os antigos senhores feudais e os "rentiers" de vultosos patrim�nios monet�rios que se tornam patentes nessa imagem grosseira do inimigo, e n�o os administradores modernos. De fato, os rica�os industriais s�o esbeltos, fazem o seu "jogging" di�rio, disp�em de menos tempo livre que um escravo nas monoculturas e t�m de gastar seus n�queis na terapia, pois se tornaram "viciados em trabalho".
Na verdade, o "trabalho" foi desde sempre um ideal burgu�s e capitalista, muito antes que o socialismo descobrisse para si este conceito. O elogio do "trabalho" � cantado a plenos pulm�es pela doutrina social crist�. O liberalismo tamb�m canoniza o "trabalho" e promete, � semelhan�a do marxismo, sua "liberta��o". Al�m deles, todas as ideologias conservadoras e da direita radical veneram o "trabalho" como um deus secularizado. "O trabalho liberta", lia-se sobre o portal de Auschwitz. Como fica claro, a religi�o do "trabalho" � o sistema de coordenadas comum a todas as teorias modernas e a todos sistemas pol�ticos e grupos sociais. Elas concorrem entre si para ver quem d� provas de maior beatice e suscita o melhor desempenho produtivo nos homens.
O homem moderno de n�vel m�dio talvez se irrite com tais id�ias. O que se quer, afinal? "� preciso trabalhar." Quem h� de negar que os homens sempre trabalharam? De outra forma, n�o haveria alimentos, roupas, moradia, cultura. Nada surge do nada. � por isso, como se sabe, que o etos do "trabalho" pontifica: "Quem n�o trabalha, n�o come". Os homens, n�o h� d�vida, sempre produziram objetos e id�ias para viver, desfrutar, investigar e divertir-se. Mas ser� que "trabalho" � o conceito universal correto e supra-hist�rico para tanto? "Trabalho" � uma abstra��o, um termo gen�rico de v�rios significados. Karl Marx defendeu essa indetermina��o gen�rica e fez notar que se tratava de uma "abstra��o racional", conhecida desde tempos imemoriais. Mas ser� mesmo?
Uma abstra��o racional seria um conceito universal coerente para coisas qualitativamente diversas, embora correlatas numa determinada esfera. Assim, por exemplo, ma��, p�ra, p�ssego, laranja etc. s�o reunidos sob o conceito geral de "fruta". Mas, justamente nesse sentido, o "trabalho", como conceito geral das atividades humanas, n�o � uma abstra��o racional. Sonhar, passear, jogar xadrez ou ler romances tamb�m s�o atividades humanas, sem que sejam tidas normalmente como "trabalho".
Muitas culturas camponesas, pastoris ou de ca�a jamais conheceram a no��o abstrata de "trabalho". Para elas seria extremamente irracional e insensato reunir sob um �nico conceito abstrato atividades como ca�ar e plantar, cozinhar e educar os filhos, cuidar dos idosos e proceder a a��es rituais. Muitas vezes, nessas sociedades arcaicas (na medida em que s�o reconstitu�veis ou deixaram vest�gios) existiam diferentes conceitos universais de atividade para as diversas esferas da vida, para homens e mulheres e para diversos grupos sociais ou habilidades (campon�s, artista, guerreiro etc.) -atividades estas que de modo algum correspondem ao conceito geral moderno de "trabalho".
Quando e em que contexto nasceu, portanto, em termos hist�ricos, este conceito abstrato e geral da atividade social e econ�mica? Em muitas l�nguas, a raiz da palavra "trabalho" remonta a um significado que caracteriza o homem menor de idade, o dependente ou o escravo. Em sua origem, portanto, o "trabalho" n�o � uma abstra��o neutra e racional, mas, antes, social: � a atividade daqueles que perderam a liberdade. N�o importa o que fa�am estes homens, se eles d�o duro na minera��o ou na lavoura, se, como empregados dom�sticos, arrumam a mesa, acompanham as crian�as � escola ou abanam a patroa: � sempre a atividade de um homem definido como servo. A condi��o de servo � o conte�do da abstra��o "trabalho".
N�o admira, pois, que este conceito abstrato tenha adquirido, na Antiguidade, o significado metaf�rico de sofrimento e infort�nio (como no latim, por exemplo). O homem, ativo somente no sentido negativo do termo, sofre ao "vacilar sob um fardo". Este fardo pode ser invis�vel, pois, na verdade, ele � o fardo social da falta de independ�ncia. Isso j� est� expl�cito, em �ltima inst�ncia, no Velho Testamento da B�blia, quando o "trabalho" � definido como uma maldi��o lan�ada aos homens. A equipara��o entre "trabalho" e sofrimento n�o tem em mente o simples cansa�o. Um homem livre pode cansar-se em certas circunst�ncias e, ainda assim, tirar prazer da situa��o.
Por isso � um erro crasso considerar o "n�o-trabalho" dos homens livres e independentes na Antiguidade como indol�ncia e puro "dolce far niente", como muitas vezes ocorre na literatura do marxismo vulgar. Em Homero, o her�i Ulisses orgulha-se de ter constru�do sua pr�pria cama. Desonrosa n�o era a atividade em si ou o trabalho manual, mas, antes, a submiss�o do homem ao outro homem ou a uma "profiss�o". Um homem livre podia casualmente construir uma cama ou um arm�rio, mas n�o devia adotar a profiss�o de marceneiro; podia comerciar esporadicamente, mas n�o devia ser comerciante; podia ocasionalmente escrever poemas, mas n�o devia ser poeta (muito menos como forma de ganha-p�o).
O homem formalmente livre, embora submetido de forma vital�cia a um trabalho remunerado num dos ramos da produ��o, era "menor" em rela��o a essa atividade e recebia um tratamento pouco superior ao dos escravos. � por isso que a atividade do diletante livre n�o era menos considerada ou de menor qualidade que a do "profissional" sem liberdade. Exercitar-se em diversas artes e adquirir conhecimentos era algo perfeitamente digno. Dos contos de fada de diferentes c�rculos culturais pode-se constatar que, nas sociedades antigas, os pr�ncipes, por vezes, tinham de aprender um of�cio -mas, novamente, n�o "para ser" art�fice- e, assim, padecer os sofrimentos do "trabalho".
O cristianismo foi o primeiro a definir positivamente o significado negativo de "trabalho" como sofrimento e infort�nio. Como o sofrimento de Cristo na cruz redimira a humanidade, a f� exige a "imita��o de Cristo" -e isso significa assimilar jovialmente o sofrimento.
Numa esp�cie de masoquismo da f�, o cristianismo ergueu o sofrimento (e, portanto, o "trabalho") � posi��o de objetivo nobre do empenho humano. Os monges e as freiras nos monast�rios submetiam-se, de maneira consciente e volunt�ria, � abstra��o do "trabalho", para, como "servos de Deus", levarem uma vida an�loga aos sofrimentos de Cristo. No horizonte da hist�ria das id�ias, a disciplina e a ordem mon�sticas, a estrita divis�o das jornadas e a ascese monacal s�o precursoras da ulterior disciplina fabril e da contabilidade temporal abstrata e linear da racionalidade das empresas. Essa miss�o do "trabalho", por�m, referiu-se apenas ao sentido metaf�rico do conceito, como aceita��o religiosa do sofrimento com vistas ao al�m futuro, sem perseguir um objetivo terreno positivo.
S� o protestantismo, sobretudo em sua forma calvinista, converteu o masoquismo crist�o do sofrimento em assunto terreno: na condi��o de "servo de Deus", o fiel devia assimilar as dores do "trabalho" n�o no isolamento mon�stico, mas, antes, us�-las como meio de sucesso no mundo terreno, a fim de provar-se como eleito de Deus. Obviamente, n�o lhe era absolutamente permitido saborear os frutos do sucesso, sob pena de malbaratar a gra�a divina em sua imita��o de Cristo. A ele cabia, com cara sofrida e azeda, transformar o resultado do "trabalho" em ponto de partida de novo "trabalho" e acumular incessantemente as riquezas abstratas sem desfrut�-las.
Tal mentalidade protestante conjugou-se � sede de dinheiro dos Estados absolutistas pr�-modernos e sua militariza��o da economia. Se, na sua origem, o calv�rio do "trabalho" crist�o fora volunt�rio, o Estado, por sua vez, tornou-o uma lei social comum e imperiosa. O motivo religioso do sofrimento transformou-se em objetivo em si mesmo do "trabalho", mascarado de "racionalidade econ�mica". Desse modo, todos os homens formalmente livres da modernidade foram subsumidos �quela forma menor de atividade, considerada pelos antigos como a ess�ncia da servid�o e, por isso, como sofrimento.
A atividade livre e aut�noma reduzia-se aos limites do chamado "tempo livre". A esfera central do "trabalho", purificada como �mbito funcional do fim em si mesmo abstrato, separou-se das esferas da habita��o, da cultura, da educa��o, da divers�o e da vida em geral. "Ir ao trabalho" passou, aos poucos, a significar o mesmo que o antigo "ir � missa", embora a sociedade moderna tenha logo esquecido a origem hist�rica e religiosa do "trabalho". Restou o car�ter -definido em termos positivos- de um fato na verdade negativo e calamitoso. Os homens habituaram-se a imolar suas vidas no altar do "trabalho" e a tomar como felicidade submeter-se a um "emprego" determinado por outrem.
O liberalismo e o marxismo herdaram do protestantismo e dos regimes absolutistas essa religi�o do "trabalho" e aperfei�oaram a sua seculariza��o. Na totalidade global de uma atividade incessante, a servid�o tornou-se liberdade, e a liberdade, servid�o, ou seja, aceita��o volunt�ria de um sofrimento sem outro sentido sen�o ele pr�prio. O "trabalho" substituiu-se a Deus, e, neste sentido, todos s�o hoje "servos de Deus". O pr�prio "management" � parte do "trabalho" e carrega a cruz terrena do sofrimento, para nela encontrar seu poder masoquista. Ulisses, o her�i de Homero, desdenharia como m�seros servos os atuais dominantes, pois eles se curvam ao jugo do "trabalho" e prestam-se � forma social da menoridade.
O escasso "tempo livre" � hoje um mero prolongamento do "trabalho" por outros meios, como d� prova a ind�stria da divers�o. Nesse meio tempo, a l�gica do "trabalho" apoderou-se das esferas cindidas e insinuou-se na cultura, no esporte e at� mesmo na intimidade. Por outro lado, o desenvolvimento das for�as produtivas cientificizadas leva ao absurdo a metaf�sica do "trabalho" de cunho liberal ou marxista. O princ�pio positivo do sofrimento n�o pode mais sustentar-se, pois o capitalismo come�ou a libertar o homem do "trabalho".
Desse modo, ele n�o desmente apenas a antropologia marxista, mas tamb�m sua pr�pria antropologia. No futuro, a emancipa��o social n�o poder� mais fundar-se num conceito positivo de "trabalho". N�o restar� ao homem sen�o inverter o resultado do capitalismo e libertar-se do "trabalho". Este fim hist�rico do sofrimento n�o seria o fim da atividade humana em sua troca com a natureza, mas somente o da menoridade irrefletida. Por mais que os servos volunt�rios queiram incondicionalmente preservar a forma do sofrimento, esgotou-se o tempo do masoquismo hist�rico.

Tradu��o de Jos� Marcos Macedo.

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