S�o Paulo, domingo, 20 de julho de 1997
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A sedu��o da teologia negativa

JEAN-CLAUDE BERNARDET
ESPECIAL PARA A FOLHA

"The gentleman in the carriage was not handsome but neither was he particularly bad-looking; he was neither too fat nor too thin; he could not be said to be old, but he was not too young either." (*)
Gogol, "Almas Mortas"

1. Por volta de 1991, estivemos em S�o Tom� das Letras, procuramos um senhor de uns 50 anos que, se estou bem lembrado, chamava-se Tat�. Era dono de dois restaurantes. Eu n�o o conhecia, mas ele ainda gozava de certa fama, tinha aparecido em revistas como "O Cruzeiro" ou "Manchete", talvez at� mesmo na televis�o. Era c�lebre por ter visto e entrado em contato com extraterrestres.
A expectativa era de um encontro ex�tico. Ap�s ter afirmado que n�o queria mais falar do assunto (e, de fato, durante a nossa conversa, apareceu um jornalista a quem recusou a entrevista solicitada), provavelmente por nos achar simp�ticos e porque juramos que n�o �ramos jornalistas, conversou conosco. Relatou muito brevemente suas experi�ncias, sobretudo o fato de ter visto um disco voador cujas partes inferior e superior lhe apareceram simultaneamente, o que seria imposs�vel no quadro de uma percep��o humana normal, j� que estava na Terra e o disco estava acima dele. Mas o sr. Tat� deteve-se principalmente sobre a raz�o pela qual n�o mais queria falar do assunto. N�o era tanto que estivesse cansado de dar entrevistas, era que ele n�o podia falar. Ent�o, nos explicou que os extraterrestres n�o s�o humanos, enquanto ele s� podia falar uma linguagem humana; sendo assim, suas palavras n�o podiam se referir aos extraterrestres. Um extraterrestre, por n�o ser humano, seu espa�o, seu tempo n�o podem ser designados ou comentados por uma linguagem que � exclusivamente humana. Sa� dessa conversa transtornado, com a impress�o de que S�o Tom� das Letras era, de fato, um importante centro de teologia e filosofia.
Para o sr. Tat�, h� um ponto em que a nossa linguagem p�ra.
2. A teologia negativa postula que Deus � invis�vel, incognosc�vel e n�o pode ser nomeado. Apenas algumas cita��es apoiar�o esta afirma��o:
O Pseudo-Dion�sio, o Areopagita (1), um dos principais representantes da teologia negativa, fala d' "Aquele que est� al�m de qualquer ess�ncia e qualquer saber", d' "Aquele que escapa a qualquer conhecimento" (2). Referindo-se � "vis�o" de Mois�s, escreve que "Mois�s penetra na Treva verdadeiramente m�stica do desconhecimento, � a� que ele faz calar qualquer conhecimento positivo".
Nicolau de Cusa (1400-1464), um dos �ltimos grandes te�logos negativos, afirma que "� claro que tudo o que n�s sabemos do verdadeiro (isto �, de Deus) � que sabemos que � imposs�vel compreend�-lo tal como ele � exatamente" (3).
O poeta barroco (?) alem�o Angelus Silesius (1624-1677) n�o inova em nada na mat�ria, mas seus curtos poemas colocam em termos densos, concisos e afetivos o essencial (ou o que me parece tal) da teologia negativa, pelo menos tal como foi praticada num de seus momentos �ureos por te�logos e m�sticos renanos do fim da Idade M�dia, particularmente por Mestre Eckhart (c. 1260-1328), de que Angelus Silesius foi um grande leitor:
"O que Deus �, ningu�m sabe". "O �nico objeto do meu amor, ignoro o que ele �." (4)
3. A teologia negativa n�o pode falar de Deus, no entanto ela fala. Inclusive, para n�s, a teologia o que � sen�o um corpus de textos? E ela n�o tem outro objeto de fala, a n�o ser Deus. Est� presa nesta morsa. O que est� extraordinariamente expresso pela "Cantata da Nudez", de Tauler, disc�pulo de Mestre Eckhart: o m�stico se reduziu a nada, para desaparecer e encontrar sua noite, isto �, Deus. E Tauler escreve:
"Or, je n'ai pu le taire et j'ai d� l'avouer:
Je suis r�duit � rien".
Sendo reduzido a nada, ele n�o poderia evidentemente diz�-lo. E exatamente na estrofe seguinte, Tauler escreve:
"Depuis que me voil� perdu dans cet ab�me,
J'ai cess� de parler, je suis muet..." (5).
4. A incognoscibilidade de Deus tem profundas repercuss�es na linguagem. A come�ar pelo fato de que Deus n�o pode ser nomeado, sendo, por defini��o, acima da linguagem. No entanto, os textos t�m como finalidade, na medida do poss�vel, falar de Deus, o que � imposs�vel. A essa impossibilidade de falar e de designar o seu objeto, a linguagem reage.
4.1. Uma primeira rea��o consiste em tentar elevar-se tanto quanto poss�vel em dire��o ao objeto inating�vel. Ent�o, a linguagem se incha, ela se hipertrofia, trabalha o superlativo e o ox�moro.
O primeiro cap�tulo da "Teologia M�stica" do Pseudo-Dion�sio, que ele apresenta como uma prece, � um magn�fico exemplo desse esfor�o da linguagem: "Trindade supra-essencial e mais que divina e mais que boa (...), conduza-nos n�o apenas al�m de qualquer luz, mas inclusive al�m do desconhecimento at� o cimo mais elevado das Escrituras m�sticas. (...) A Treva (isto �, Deus) mais que luminosa do Sil�ncio (...) (esta Treva) brilha da luz mais brilhante no seio da mais negra escurid�o, (...) (ela) enche de esplendores mais belos que a beleza as intelig�ncias que sabem fechar os olhos (...)".
O pr�prio nome de Deus v�-se atingido. Cham�-lo de Deus � encontrar um substantivo que o designe, � se apropriar dele com uma palavra, fech�-lo numa palavra. E Deus est� acima desta como de qualquer outra palavra. Talvez escolher um nome impronunci�vel, como a Tor�, mas esta n�o � a op��o de teologia negativa. O Pseudo-Dion�sio prefere criar um neologismo significando que Deus est� acima da palavra Deus, que Deus � mais que Deus: "Hypertheos".
O car�ter hiperb�lico e contradit�rio desta linguagem foi apontado por Leonardo Boff: "O m�stico experimenta o todo. Como vai express�-lo? � imposs�vel com o vocabul�rio humano. Da� se entenda o porqu� dos superlativos, das hip�rboles, das combina��es de termos contradit�rios. (...) Assim, se l� express�es como supra-essencial, supra-eminente, superinfinito, hiperc�smico, superdivino. Ou, ent�o, paradoxos como douta ignor�ncia, s�bria ebriedade e outros deste jaez" (6).
O car�ter hiperb�lico pode provocar engulhos em tradutores. Maurice de Gandillac justifica sua tradu��o francesa do Pseudo-Dion�sio: o franc�s suporta mal os neologismos, alguns deles levariam o leitor a uma "gin�stica cansativa", enquanto outros, como supermundano ou arquipaternidade "o fariam sorrir". Assim, Gandillac aceitou uma parte do vocabul�rio, como supra-essencial e, "mais raramente", supraceleste, mas rejeitou "deliberadamente tanto supramundano (7) como hiperc�smico" e preferiu "alongar o texto e falar do que n�o � deste mundo ou do que n�o � daqui da Terra. S�o igualmente per�frases que correspondem em nossa tradu��o a adjetivos tais como suprabom ou supraluminoso; dizemos, em geral: '� pouco demais cham�-lo de bom ou de luminoso'. Que tenhamos raz�o ou n�o, basta que o leitor conhe�a o procedimento". Em realidade, n�o basta, porque, perdendo suas hip�rboles, o texto perde seu tensionamento. Essa mat�ria textual, por assim dizer, abarrocada, expressa simultaneamente o esfor�o desmedido da linguagem para falar de Deus, a sua impossibilidade e o seu fracasso.
N�o � na hip�rbole que o texto se expressa, ele se expressa � no fracasso da hip�rbole.
4.2. Essa impossibilidade de alcan�ar Deus combinada com o esfor�o constantemente reiterado para alcan��-lo leva a linguagem a um mecanismo de repeti��o, como ar�ete batendo contra uma porta que n�o se abre. O Pseudo-Dion�sio: "Dizemos agora que esta Causa (Deus) n�o tem nem alma nem intelig�ncia; que ela n�o possui nem imagina��o, nem opini�o, nem raz�o, nem intelig�ncia; que ela n�o pode se expressar nem conceber, que ela n�o tem nem n�mero, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem desigualdade, nem similitude, nem dissimilitude; que ela n�o fica im�vel nem se move; que ela n�o fica calma nem possui pot�ncia; que ela n�o � nem pot�ncia, nem luz; que ela n�o vive nem � vida; que ela n�o � nem ess�ncia, nem perpetuidade, nem tempo; que n�o se pode apreend�-la pela intelig�ncia; que ela n�o � nem ci�ncia, nem verdade, nem realeza, nem sabedoria, nem um, nem unidade, nem deidade, nem bem, nem esp�rito no sentido em que podemos compreend�-lo; nem filia��o, nem paternidade, nem nada do que � acess�vel ao nosso conhecimento nem ao conhecimento de ser algum; que ela n�o � nada que perten�a ao n�o-ser, mas tamb�m nada que perten�a ao ser (...)". Numa certa altura, o texto p�ra, mas poderia continuar ou ter parado antes.
Essa mec�nica repetitiva durar� s�culos. Angelus Silesius, embora busque a concis�o, a ela n�o escapou:
"O que Deus �, ningu�m sabe. Ele n�o � nem luz, nem esp�rito,
Nem beatitude, nem unidade, nem o que chamamos de deidade,
Nem sabedoria, nem intelig�ncia, nem amor, nem vontade, nem bondade.
Nem coisa, nem, ali�s, n�o-coisa, nem ess�ncia, nem afeto (...)".
� belo e tr�gico, porque, por mais que este texto (e quantos outros!) se tensione em dire��o a Deus, ele n�o deu um passo para frente, pois Deus continua inef�vel e inating�vel pela linguagem.
J� que Deus � inef�vel e inating�vel pela linguagem, n�o h� o que dizer -para diz�-lo de forma curta e grossa.
5. A teologia negativa vivencia intensamente os limites da linguagem. Isto n�o � uma percep��o atual, os pr�prios te�logos tiveram consci�ncia desse fen�meno.
5.1. Uma forma de rea��o a esta impossibilidade da linguagem em alcan�ar Deus pode consistir na cria��o do que chamaria de linguagem paralela. Penso, mas n�o estou certo, devido � extrema dificuldade de compreens�o de alguns textos (pelo menos, para mim), que esta � uma das opera��es feitas por Nicolau de Cusa em "A Douta Ignor�ncia". Valendo-se de Pit�goras, De Cusa afirma "j� que nenhum caminho est� aberto para aceder �s coisas divinas, que poderemos agora escolher os signos matem�ticos por causa de sua incorrupt�vel certeza", propondo-se a "explorar" o "m�ximo simples" (Deus) "por meio dos s�mbolos".
A partir da�, De Cusa constr�i um sistema geom�trico baseado na reta infinita, no tri�ngulo, no c�rculo e na esfera, em que a linha � um tri�ngulo, o tri�ngulo, um c�rculo. Deixo a demonstra��o geom�trica bastante simples, e passo � conclus�o: "Agora que � manifesto que a reta infinita �, em ato, todas estas figuras (isto �, o tri�ngulo, o c�rculo e a esfera) a um grau infinito, vemos por transposi��o, do mesmo modo, como o m�ximo ele-mesmo (isto �, Deus) �, em ato, no ponto mais alto de tudo o que est� em pot�ncia na simplicidade absoluta" (grifo meu). As palavras que destaquei me parecem manifestar que o sistema assim constru�do � anal�gico e funciona por um mecanismo do tipo: assim como. Assim, elaborou-se uma linguagem paralela, e a conex�o do sistema geom�trico com o m�ximo � feita n�o por uma qualidade intr�nseca quer do sistema quer do m�ximo, mas por uma afirma��o do te�logo. N�o vejo a "corda" que relaciona os dois termos, afora a afirma��o "� manifesto".
O esfor�o empreendido por Nicolau de Cusa para superar a debilidade da linguagem esbarra numa similitude afirmada, mas que n�o manifesta uma necessidade de nenhum dos termos s�meis. Penso que o sistema geom�trico de Nicolau de Cusa n�o lhe permite ultrapassar afirma��es feitas em "A Vis�o de Deus": "Bendito seja, Senhor (...), que me apascentas e alimentas com o leite das compara��es at� me concederes um alimento mais forte (...), �s o Deus escondido, infinito. A infinidade, por�m, � incompreens�vel, seja qual for o modo de compreens�o" (8).
5.2. Por n�o poder falar do que ela fala, a linguagem da teologia negativa tende a ser pobre e repetitiva. Ela aponta para a impossibilidade de falar. Isto, o Pseudo-Dion�sio, que percebe as consequ�ncias da inefabilidade e incompreensibilidade de Deus sobre seus textos, o expressa claramente quando relaciona a "Teologia M�stica" com outras obras de sua autoria. A "Teologia Simb�lica" "era necessariamente mais volumosa que 'Esbo�os Teol�gicos' ou que os 'Nomes Divinos'�", pois os "s�mbolos exigem mais palavras do que o resto". "De fato, mais alto nos elevamos e mais nossas palavras tornam-se concisas, pois os intelig�veis apresentam-se de forma mais e mais sin�tica. Agora, ent�o, que vamos penetrar na Treva que est� al�m do intelig�vel, n�o vai se tratar nem mais de concis�o, mas antes de uma cessa��o total da palavra e do pensamento (...), na �ltima etapa da ascens�o estaremos totalmente mudos e plenamente unidos ao inef�vel".
Ou bem se tem um duplo, cuja conex�o com Deus pode ser afirmada, mas n�o verificada, � o que penso ocorrer com Nicolau de Cusa. Ou bem se tem o sil�ncio.
6. O que se destaca da linguagem da teologia negativa � a sua impot�ncia diante do incognosc�vel, a sua tarefa negativa, isto �, n�o conseguir falar do que ela quer falar. Mas a leitura dos textos permite encontrar uma for�a nos tra�os mesmos desta impot�ncia.
A hipertrofia pode nos transmitir uma sensa��o de resist�ncia da linguagem. Diante da sua impossibilidade de atingir o objeto a que ela se prop�e, ao inv�s de silenciar, ela duplica os seus esfor�os. Como tais esfor�os permanecem v�os, o que ela acaba exibindo s�o os seus esfor�os. Neste sentido, ela se apresenta como em luta constante contra os seus limites.
Nas cita��es acima do Pseudo-Dion�sio e de Angelus Silesius, encontramos uma prociss�o de nega��es que sugerem um movimento inverso ao da hipertrofia. Enquanto essa gera um excesso, as nega��es -menos, sempre menos- acabam criando um territ�rio (? -n�o num sentido espacial) ou um tempo (?) que n�o � preench�vel.
Ficando no n�vel dos textos (e n�o da experi�ncia m�stica), � para n�s quase imposs�vel conceber... nada. Da Vinci: a natureza tem horror ao vazio. E n�s tamb�m. Mesmo o nada, a nossa tend�ncia � tentar nome�-lo (nada), defini-lo, conceitu�-lo, isto �, transform�-lo num objeto lingu�stico, num objeto de pensamento, vale dizer, transform�-lo em alguma coisa. Acontece que essas sequ�ncias negativas descartam qualquer objeto que queiramos p�r no lugar, porque lhe ser� aposta a nega��o "nem". Esse territ�rio (?), donde a linguagem recha�a qualquer coisa que queiramos colocar, propicia, pelo menos poeticamente falando, intui��es -que n�o s�o coment�veis, j� que o simples fato de tentar coment�-las implicaria, de alguma forma, em preench�-lo, enquanto a linguagem se desmancha para esvazi�-lo. Textos como estes do Pseudo-Dion�sio ou de Angelus Silesius, lidos com concentra��o, lentamente e em voz baixa, provocam uma esp�cie de vertigem que nos encaminha para a intui��o do nada.
Afirma��es como Deus � nada foram, �s vezes, interpretadas como matizadas de ate�smo, e consideradas com m�xima desconfian�a pelo pensamento dogm�tico. Nada mais err�neo, pois o tensionamento da linguagem contra os seus limites � a manifesta��o de seu desejo de Deus, e esse nada, que ela nos leva a intuir, nos oferece a possibilidade de intuir a possibilidade de uma via, n�o mediatizada (sem linguagem), em dire��o a Deus.
A linguagem nos encaminha para Deus ou para o sil�ncio (o que, no quadro da teologia negativa, d� na mesma), n�o tanto pelas suas afirma��es neste sentido, mas pelo seu pr�prio mecanismo.
7. Como vimos no in�cio deste texto, seria err�neo pensar que essa linguagem, que esbarra nos seus limites e manifesta sua impot�ncia diante do inomin�vel e do indiz�vel, seja um tra�o exclusivo da teologia negativa, que teria se esgotado ap�s a eclos�o da teologia renana do fim da Idade M�dia e in�cio do Renascimento, com ecos tardios, como � o caso de Angelus Silesius. Possivelmente seja o nosso s�culo o mais apto desde o Renascimento a perceber, ou mesmo a vivenciar, a beleza e a tragicidade desse esbarro.
Falei da beleza e tragicidade dessa linguagem. Beleza fica por conta da intensa emo��o que sinto ao ler esses textos radicais, e por causa de sua radicalidade. Tragicidade, que remete ao impasse da linguagem diante do incognosc�vel, vai na esteira de Cl�ment Rosset.

Continua � p�g. 5-9

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