S�o Paulo, domingo, 24 de mar�o de 1996
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Cientista aponta erros de Descartes

C�SSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

A fama do neurobi�logo Antonio Damasio, 51, extrapolou os limites da comunidade cient�fica com a publica��o de "O Erro de Descartes", em 1994. J� traduzida em 12 l�nguas, a obra transformou-se em best seller onde foi lan�ada.
O t�tulo provocativo pode incomodar os fil�sofos, mas conquistou o p�blico leigo. N�o porque exista um grande interesse popular sobre Descartes, mas porque o autor desvenda mist�rios -como os segredos do funcionamento do c�rebro e o papel das emo��es-, utilizando-se de uma linguagem f�cil e narrando casos m�dicos que beiram o extraordin�rio.
Damasio evita a pol�mica filos�fica, mas n�o poupa Descartes como "s�mbolo de um conjunto de id�ias acerca do corpo, do c�rebro e da mente". Sua inten��o � refutar, sob a luz da neurobiologia, a id�ia filos�fica que proclama a separa��o entre o corpo e o pensamento e que defende uma raz�o pura, estritamente l�gica, como �nico fundamento confi�vel para as decis�es humanas. E conclui: "Se Descartes vivesse hoje, possivelmente pensaria da forma que temos que pensar, e n�o da forma que pensou naquele momento".
Nascido em Portugal, Damasio mudou-se para os EUA em 1976, junto com a mulher, Hannah, com quem criou um importante laborat�rio de ci�ncia cognitiva no departamento de neurologia da Universidade de Iowa, do qual � diretor. Ele tamb�m leciona no Instituto Salk, fundado pelo criador da vacina antip�lio, Jonas Salk, na Calif�rnia, e � membro das principais sociedades m�dicas americanas.
Damasio falou � Folha, por telefone, de Iowa City, sobre o livro, que ser� lan�ado no pr�ximo m�s pela Companhia das Letras.
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Folha - Em "O Erro de Descartes" o sr. critica o conceito cartesiano de raz�o. O sr. poderia explicar o que entende por raz�o?
Antonio Damasio - Raz�o � um processo de utiliza��o de imagens que representam conhecimento, de forma a permitir uma resposta adaptativa, uma escolha que permita ao organismo continuar a viver de uma forma eficaz. Esta � uma defini��o muito geral de raz�o que utilizo no livro.
� em torno desta escolha de respostas em determinadas situa��es que julgo que os processos chamados de raz�o se desenvolveram. O que � curioso � que, tal como defendo em "O Erro de Descartes", este processo possivelmente come�ou na evolu��o natural, de uma forma que n�o foi necessariamente deliberada e tal como a pensamos hoje.
Folha - Esta escolha estaria orientada pela emo��o?
Damasio - Na evolu��o, muitas dessas respostas, que t�m a ver com a forma como um organismo funciona no seu estado interno, t�m sido transmitidas, t�m sido em parte escudadas, por processos que s�o processos de emo��o. O que eu pretendo chamar a aten��o � para a id�ia de que as emo��es, e toda a maquinaria que est� por tr�s delas, n�o s�o um luxo, uma experi�ncia curiosa que est� ao lado dos grandes processos da raz�o.
A id�ia principal por tr�s de "O Erro de Descartes" � que h� uma continuidade nos organismos, que come�a na maquinaria de regula��o dos processos de vida e se exprime depois na emo��o, e que em indiv�duos muito complexos como n�s, com grande conhecimento dos fatos, vai utilizar n�o s� estes fatos, mas tamb�m a manipula��o l�gica dos fatos. Quando decidimos o que vamos fazer, h� uma mistura muito humana de fatos e processos de racioc�nio l�gico, mas tamb�m de processos de sinais emocionais que v�m da regula��o biol�gica e auxiliam a l�gica.
Folha - Descartes errou ao isolar a emo��o da raz�o, separando mat�ria e pensamento?
Damasio - O t�tulo do livro � um pouco ir�nico. Claro que eu tenho uma imensa admira��o por Descartes. N�o gostaria de atac�-lo com a id�ia de que ele tenha sido inferior em suas capacidades. Mas, se Descartes vivesse hoje, possivelmente pensaria da forma que temos que pensar, e n�o da forma que pensou naquele momento.
Creio que temos que chamar a aten��o para uma id�ia que tem influenciado o pensamento dos fil�sofos e tamb�m o senso comum. As grandes divis�es que est�o impl�citas nesta id�ia cartesiana, entre aspas, s�o n�o s� a separa��o entre o que chamo de mente e o c�rebro, mas tamb�m a separa��o dos dois em rela��o ao corpo.
A� � que est�o os problemas das pesquisas relativas � intelig�ncia artificial. A concep��o por tr�s delas � de que a mente � algo separado do corpo. N�o h� de fato apelo � id�ia de corpo ou de corpo modific�vel em certas circunst�ncias que chamamos de emo��es. Esta separa��o parece-me extremamente errada e � algo que teremos que modificar se compreendermos o que somos biologicamente.
Folha - Na sua opini�o, as pesquisas sobre intelig�ncia artificial seriam uma quimera?
Damasio - Tenho imenso apre�o e respeito por aqueles que est�o tentando criar sistemas de intelig�ncia artificial. Estes sistemas n�o s� podem ser extremamente �teis para os seres humanos, ajudando a resolver certas tarefas de uma forma eficiente, como tamb�m podem nos ajudar a fazer experi�ncias, por exemplo, sobre processos de racioc�nio e sistemas l�gicos.
Mas � preciso pensar que todas estas medidas n�o devem ser vistas como uma tentativa de criar alguma coisa igual ou superior a um ser humano, porque simplesmente n�o vai ser poss�vel. Nossa mentalidade, nossa humanidade e at� nossa espiritualidade assentam de fato sobre um organismo. Este organismo � muito complexo e, pelas circunst�ncias em que emerge na natureza, est� sob constante risco de perder a vida, sob constante necessidade de manter a vida. � essa condi��o, que n�o � estritamente humana, mas biol�gica, que nos torna automaticamente diferentes de um rob� que se pode construir com pe�as de engenharia.
Folha - Como o sr. concebe os processos de cogni��o?
Damasio - Quando falo em cogni��o ou em mente refiro-me a uma cole��o de imagens em diversas formas sensoriais -visuais, auditivas, olfativas. Todas estas imagens, em constante manipula��o, em constantes inter-rela��es e sequ�ncias sincr�nicas, s�o o que chamo de mente. A maioria das pessoas considera a emo��o e os sentimentos separados da raz�o. Eu argumento que, quando temos uma emo��o, temos inevitavelmente e ao mesmo tempo a aprecia��o do estado do nosso corpo e do estado de nossa mente durante esta emo��o. � esta aprecia��o que chamo de sentimentos.
Folha - Emo��es e sentimentos seriam modos de conhecer?
Damasio - Quando voc� tem a aprecia��o do estado de seu corpo e do estado de sua mente, � medida que o corpo se modifica sob uma emo��o, como o pavor, a tristeza
ou a alegria, esta aprecia��o � tamb�m cognitiva, � tamb�m uma imagem. S� que � uma imagem ligada ao estado do corpo, em vez de ser uma imagem ligada ao estado do mundo exterior.
E � esta talvez a id�ia principal do livro. Quando temos uma emo��o, o c�rebro tem a possibilidade de criar uma imagem do estado do organismo durante esta emo��o. Portanto, as emo��es e os sentimentos s�o t�o cognitivos quanto todo o resto.
Folha - Que diferen�a h� ent�o entre emo��o e raz�o?
Damasio - Eu penso que emo��es e sentimentos apareceram primeiro e que s�o o fundamento para todo o edif�cio mental, que veio depois na evolu��o e que est� constantemente sob sua influ�ncia. Meus argumentos sobre os mecanismos de decis�o s�o o resultado dessa maneira de pensar.
O que tento apresentar no livro � o seguinte: em vez de pensarmos tal como queriam n�o s� Descartes, mas tamb�m Kant, que nosso racioc�nio l�gico � o melhor e que o racioc�nio deve ser feito de uma forma pura, totalmente divorciada das emo��es, temos que verificar que o mecanismo do racioc�nio tal como qualquer outro mecanismo mental est� constantemente sob a influ�ncia das emo��es.
Folha - Mas o argumento dos fil�sofos derivava do temor �s paix�es como perturba��es da alma. Tomar decis�es, na sua opini�o, n�o requer "cabe�a fria"?
Damasio - Claro que, em certos casos, se uma sintoniza��o entre as emo��es e as id�ias � eficiente, as emo��es v�o ter um efeito extremamente positivo. Por outro lado, podem ter tamb�m efeitos negativos, por exemplo, se voc� quer chegar a uma decis�o razo�vel sobre sua carreira e est� no meio de uma enorme depress�o, ou de um enorme terror sobre o que vai acontecer. � muito poss�vel que sua decis�o seja influenciada negativamente por estas emo��es.
Folha - H� uma justa medida da emo��o?
Damasio - De certo modo, existe. A emo��o excessiva, de modo geral, � capaz de ser negativa para as decis�es. Do mesmo modo que a falta completa das emo��es vai ser negativa. O que estamos fazendo � modificar a vis�o tradicional. Para esta, as emo��es s�o sempre negativas e devemos raciocinar sem emo��o. A minha vis�o � de que, sem emo��o, estamos perdidos. Mas com emo��o exagerada tamb�m estamos perdidos.
Folha - A hip�tese do fundamento emocional da raz�o n�o conduziria a uma relativiza��o absoluta? O sr. acredita em alguma universalidade da raz�o?
Damasio -Claro que as conting�ncias s�o inevit�veis. Mas elas s�o controladas por certos par�metros de varia��o. Gostaria de explicar com um exemplo: se considerarmos seu rosto e meu rosto, concluiremos que temos faces diferentes. Mas, no entanto, essas faces e os nossos corpos variam unicamente dentro de par�metros extremamente limitados. � muito improv�vel que qualquer um de n�s tenha um rosto com 50 cm de altura ou um corpo com 10 cm. H� uma varia��o que limita a possibilidade de certas coisas existirem para al�m de certos valores.
� exatamente isso que acontece em rela��o �s emo��es e � raz�o. As varia��es humanas s�o relacionadas com as experi�ncias pessoais, mas a maior parte das varia��es vai estar contida dentro de certos par�metros. Portanto, apesar de termos enormes diferen�as individuais, na maior parte dos casos elas cabem numa varia��o que poder�amos chamar de universal. � por isso que n�s, humanos, temos a possibilidade de comunica��o.
� quase uma diferen�a entre forma e estilo. A maior parte das conting�ncias humanas acabam por ser conting�ncias de estilo, e n�o de forma. Exceto, evidentemente, quando temos criaturas que est�o fora das varia��es-padr�o, como Pol Pot ou Hitler.
Folha - O sr. aponta tamb�m um equ�voco na c�lebre f�rmula de Descartes, "penso, logo existo". O que h� de err�neo nela?
Damasio - A id�ia � que n�o se trata s� do erro impl�cito nessa afirma��o, mas tamb�m de um erro que temos feito durante v�rios s�culos ao utilizar essa afirma��o. Eu tenho afirmado que o livro n�o � s� sobre o erro de Descartes, mas sobre o erro daqueles que pensam da forma atribu�da a Descartes.
Descartes tinha v�rias inten��es quando fez esta afirma��o, e h� fortes aspectos da sua afirma��o que podem ser interpretados do ponto de vista filos�fico. Mas a maneira como tem sido interpretada esta frase lapidar de Descartes � de que todo o nosso ser � uma consequ�ncia do aparecimento do pensamento e de um pensamento que necessariamente tem linguagem.
Em "eu penso, logo existo" a exist�ncia passa a ser secund�ria em rela��o ao pensamento. Ora, o ser, de fato, come�ou a existir bem antes de haver um pensamento. H� indiv�duos que n�o t�m, por exemplo, linguagem, que n�o t�m acesso ao grande pensamento l�gico, e t�m, no entanto, um ser e uma consci�ncia.
Trata-se portanto de uma discuss�o relativa � proced�ncia. O que vem primeiro: o ser, com sua biologia, suas emo��es, seus processos simples de resposta, ou o pensamento? Para mim, o que vem primeiro � o ser biol�gico.
Folha - Um dos princ�pios do pensamento de Descartes � a identidade permanente do "eu" como uma unidade � qual se atribuem as id�ias. Em seu livro o sr. questiona tamb�m essa identidade permanente. O que � afinal o "eu"?
Damasio - Esta � uma das id�ias mais complexas do livro. Ali�s, � a id�ia que estou no momento desenvolvendo para meu pr�ximo livro, que examinar� a maneira como constru�mos a identidade, a id�ia da constru��o do "self".
O que acontece � um pouco como o mito de S�sifo. Aquilo que temos como identidade, os sentidos do "self" e a tradu��o do "self" em linguagem, por exemplo, na palavra "eu", � de fato uma constru��o, n�o � alguma coisa que existe num determinado lugar. A identidade � constru�da como nosso conceito de qualquer outra coisa.
A cada instante de nossas experi�ncias mentais temos que reconstruir o "eu". Talvez a coisa mais cansativa para o organismo seja essa constru��o incessante do "eu". Mas esta reconstru��o n�o precisa partir do nada. Existe uma imensa estabilidade do corpo, e existe tamb�m a estabilidade de certos aspectos de nossa biografia.
Folha - A cr�tica de Espinosa ao dualismo cartesiano parece ter influ�ncia sobre seu trabalho. O sr. reconhece esta ascend�ncia?
Damasio - � curiosa essa observa��o, pois devo confessar que meu conhecimento de Espinosa � extremamente limitado. Estudei Espinosa no liceu em Portugal e nunca mais li suas obras. Um fil�sofo me disse que h� em meu trabalho v�rias concep��es coincidentes com as de Espinosa, mas digo com toda honestidade que n�o posso assumir a influ�ncia.

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