S�o Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Pensando o impens�vel: um mundo sem armas nucleares

CELSO AMORIM

A� por meados dos anos sessenta Herman Kahn, uma esp�cie de "Doctor Strangelove" do pensamento estrat�gico americano, escreveu uma obra cujo t�tulo convidava o leitor a imaginar como as armas nucleares poderiam ser utilizadas de forma "racional".
Tratava-se, numa invoca��o certamente involunt�ria da constata��o hamletiana, de provar que a loucura inerente ao uso das armas at�micas era suscept�vel de ser submetida aos rigores do m�todo. A destrui��o n�o teria de ser total. Uma sucess�o de Hiroximas poderia obedecer a uma escalada logicamente encadeada, culminando numa vit�ria militar.
Embora Kahn representasse uma vers�o extremada entre os apologistas da utilidade t�tica e estrat�gica das armas nucleares, o del�rio l�gico embutido em seu pensamento n�o estava longe das teorias que predominaram no per�odo da Guerra Fria e que, infelizmente, n�o foram abandonadas. Nos �ltimos 50 anos a humanidade vive entre duas esp�cies de terror: o pesadelo do "uso racional" das armas at�micas e o risco de uma conflagra��o global, que as teorias de dissuas�o nunca conseguiram afastar de todo.
Hoje, finda a Guerra Fria, que fornecia a "rationale" para o equil�brio do terror, e quando a arma nuclear se vai tornando perigosamente acess�vel, os respons�veis pelas doutrinas militares das principais pot�ncias continuam a buscar justificativas para sua reten��o.
Mesmo com a entrada em vigor do tratado Start 2, cuja ratifica��o pelo parlamento russo ainda � duvidosa, a previs�o � de que, ao final das redu��es, em 2003, cada uma das duas pot�ncias conserve cerca de 3.500 ogivas estrat�gicas (sem contar as armas nucleares "t�ticas" e as ogivas de reserva), com potencial de destrui��o muitas vezes superior ao necess�rio para fazer desaparecer a civiliza��o.
As outras tr�s pot�ncias nucleares "menores" disp�em, entre si, de cerca de 1.200 ogivas, e outros Estados (pot�ncias nucleares n�o-declaradas) ou j� det�m estoques de armas at�micas ou est�o em condi��es de produzi-las rapidamente.
Do ponto de vista dos recursos, os n�meros s�o igualmente estarrecedores. Estima-se que somente os EUA tenham gasto, desde 1945, US$ 4 trilh�es na produ��o de armas at�micas, o equivalente ao total de bens e servi�os gerados durante oito anos num pa�s como o Brasil. A mera manuten��o da capacidade estrat�gico-nuclear americana custa mais de US$ 20 bilh�es por ano, ou quase 15 vezes o or�amento regular das Na��es Unidas, o que constituiria, na melhor das hip�teses, uma forma extrema de levar � pr�tica o preceito romano: "Si vis pacem para bellum".
A rec�m-conclu�da reuni�o da Comiss�o de Camberra sobre elimina��o de armas nucleares contribuiu para lan�ar luz sobre alguns desses aspectos.
As discuss�es acentuaram tamb�m o risco que representa a continuada exist�ncia dessas armas. Personalidades de destaque dos meios acad�mico e cient�fico, da pol�tica e da diplomacia, bem como militares que exerceram altas posi��es de comando, concordaram que um mundo livre de armas nucleares � n�o s� intrinsecamente desej�vel como poss�vel.
Houve amplo consenso entre os participantes no sentido de que a nova realidade pol�tica e estrat�gica torna perigosamente obsoletas as teorias de dissuas�o m�tua que prevaleceram no auge da confronta��o americano-sovi�tica. Na realidade v�rios membros da Comiss�o -justamente os que tinham maior conhecimento espec�fico sobre esse aspecto- foram de opini�o de que os riscos embutidos nessa estrat�gia n�o compensam a fr�gil seguran�a oferecida pela amea�a de destrui��o rec�proca. Em suas pr�ximas reuni�es a Comiss�o dever� desenvolver um programa que possa conduzir, ao fim, � total elimina��o das armas nucleares. Alguns passos j� est�o sendo dados, como a negocia��o de um tratado de proibi��o completa de testes nucleares, as discuss�es sobre a proibi��o de produ��o de material f�ssil com finalidade de fabrica��o de bombas e as iniciativas com vistas a ampliar as �reas do globo consideradas como livres de armas nucleares.
� preciso consolidar esses avan�os. Mas a atual conjuntura internacional oferece uma oportunidade qui�� �nica de se trabalhar com vistas ao objetivo ambicioso, mas n�o irrealista, de banir totalmente n�o s� o uso, mas tamb�m a pr�pria posse de armas at�micas.
Com a Conven��o sobre Armas Qu�micas (assinada h� cerca de tr�s anos e meio em Paris), pela primeira vez toda uma categoria de armamento de destrui��o de massa foi proscrita, em condi��es em que a verifica��o dos compromissos assumidos � parte integrante das obriga��es impostas.
N�o h�, ao menos teoricamente, raz�o por que o mesmo n�o possa ser tentado e obtido em rela��o �s armas at�micas. Muita coisa que parecia impens�vel h� dez anos � hoje parte da nossa realidade. Um mundo em que a cat�strofe de uma guerra nuclear deixe de fazer parte das hip�teses e cen�rios dos analistas e, sobretudo, da estrutura ps�quica da humanidade como um todo, j� n�o � uma utopia. A pr�pria id�ia clausewitziana de que a guerra (e, por extens�o, a guerra nuclear) � um prolongamento da pol�tica por outros meios poder�, enfim, considerar-se superada.

CELSO LUIZ NUNES AMORIM, 53, embaixador, � representante permanente do Brasil junto �s Na��es Unidas. Foi ministro das Rela��es Exteriores (governo Itamar Franco) e embaixador do Brasil em Genebra (1991-92).

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