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Explosão de casos de Covid pode ser mascarada por apagão de dados

Médicos veem pressão em serviços de saúde e reportam subnotificação de infectados

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São Paulo

Apesar de parecer ter dado uma trégua nos indicadores de hospitalizações e óbitos, com a média móvel de mortes abaixo de 150 por 20 dias consecutivos, a pandemia de Covid-19 no Brasil pode estar crescendo de maneira acelerada, segundo afirmam médicos e especialistas.

Isso porque, além da queda no sistema de notificação oficial do Ministério da Saúde desde o início de dezembro, quando sofreu um ataque cibernético, os dados enviados à pasta pelos governos estaduais e municipais, que já sofriam um represamento em outros momentos da pandemia, podem estar consideravelmente subnotificados.

Mulher realiza teste para Covid-19 em Valparaíso, no Chile - Rodrigo Garrido - 3.jan.22/Reuters

Desde o ataque, diversos estados deixaram de reportar novos casos e mortes por Covid, muitos deles justificando falta de acesso aos dados do ministério, extraídos dos portais de notificação, ou dificuldades em inserir os dados no sistema federal.

Em nota, a Secretaria de Saúde do Estado de Roraima disse que ainda não tem sido possível atualizar de forma completa os dados em virtude da dificuldade de acesso aos sistemas do ministério.

A Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins informou que desde o ataque cibernético ficou sem a possibilidade de notificação e acesso à base de dados dos sistemas Sivep-Gripe, e-SUS Notifica e SI-PNI, de vacinação.

Questionado sobre os atrasos, o Ministério da Saúde disse, em nota, que os sistemas Sivep-Gripe, e-SUS Notifica e SI-PNI foram restabelecidos há mais de dez dias e que há previsão de normalização para janeiro.

Outras unidades da Federação, como o Distrito Federal, dizem que não foram impactadas pelo apagão, uma vez que a captação de novos casos ocorre diretamente dos laboratórios da rede pública e privada.

Os principais motivos para a subnotificação reportados por especialistas são dois: a falta de políticas de testagem em massa, o que causa uma subnotificação natural dos casos —só são contabilizados aqueles que são sintomáticos moderados a graves, em geral— e um atraso, ou, muitas vezes, ausência completa do registro dos casos.

Como mostrado em reportagem da Folha de início de dezembro, os registros de casos positivos de infecção pelo Sars-CoV-2 sofrem um apagão desde setembro, após o Ministério da Saúde mudar, em agosto, as regras para notificação de exames do tipo antígeno na plataforma e-SUS Notifica.

Com a alteração, foi verificada, a partir de setembro, uma queda abrupta na taxa de positividade dos testes de antígeno em comparação com os de RT-PCR. Nos meses anteriores, as taxas de positividade dos dois exames caminhavam em conjunto —ou seja, se os testes positivos de RT-PCR subiam, os de antígeno também aumentavam.

Os dois testes buscam o RNA do vírus no organismo por meio do swab nasal (cotonete). A diferença é que o teste de antígeno utiliza um cartão similar aos exames de diabetes e o resultado aparece em 15 minutos. O RT-PCR precisa ser realizado em um laboratório e pode levar de 12 a 72 horas para apresentar um resultado.

Em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, a positividade dos testes de antígeno em farmácias –assim como a procura por eles— explodiram nas duas últimas semanas, reflexo do aumento de casos pós-encontros no Natal e Réveillon.

Porém, os dados colhidos tanto pelas Secretarias Municipais de Saúde quanto pelas Secretarias Estaduais não refletem esse aumento.

No painel do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), houve uma queda no número de casos informados por semana de 5 a 26 de dezembro 2021, período correspondente ao momento em que o sistema do Ministério da Saúde ficou fora do ar, gerando atrasos nas notificações das secretarias.

Já na última semana epidemiológica do ano, de 26 de dezembro a 1˚ de janeiro de 2022, houve um aumento de 155% de casos em relação à semana anterior (de 19 a 25 de dezembro), passando de 22.283 para 56.881. Na última segunda (3), a média móvel de casos sofreu aumento parecido, de 153% em relação ao número de duas semanas atrás, de 3.397 para 8.386.

Segundo Julio Croda, pesquisador da Fiocruz, o sistema do governo federal foi regularizado apenas na semana passada e é esperada uma explosão de casos nos próximos dias devido ao represamento de dados.

"Sabemos que em dezembro houve um aumento expressivo de casos por conta da ômicron, mas está tudo represado desde o dia 10 [de dezembro]. O governo deve regularizar um novo sistema para notificação de dados de saúde no próximo dia 7, e aí veremos uma subida vertiginosa", afirma Croda.

Apesar de o ministério buscar soluções para resolver o sistema para notificação de casos, especialistas relatam que esse é apenas um dos elementos do apagão de dados de Covid no país. O outro, dizem, é que o Brasil nunca adotou uma estratégia ampla de testagem.

"Estamos no escuro quanto aos casos, como estivemos desde o início. Investir em testagem, rastreamento de contatos e isolamento de suspeitos é o bê-á-bá do enfrentamento de qualquer doença transmissível. A ômicron está bombando e só saberemos disso em algumas semanas, exatamente pela insistência em não se testar", diz o epidemiologista Pedro Hallal, colunista da Folha.

Como não há uma política de testagem, mesmo os casos para os quais há notificação representam apenas a ponta do iceberg, afirma o médico sanitarista e ex-diretor da Anvisa Cláudio Maierovitch. "É preciso diferenciar a subnotificação do ‘subdiagnóstico’. Há uma grande quantidade de pessoas com sintomas leves e que não vão ter acesso aos testes mesmo se procurassem os serviços de saúde", diz ele.

Para Maierovitch, estudos sorológicos feitos ao longo da pandemia confirmam esse "subdiagnóstico" dos infectados na pandemia. Os trabalhos indicaram um número na ordem de 6 a 10 vezes maior do que o reportado oficialmente.

Para a epidemiologista e presidente do Instituto Sabin, Denise Garrett, o Brasil sempre esteve muito atrás em termos de testagem em relação a outros países.

"Sempre voamos um pouco às cegas, mas agora estamos voando completamente no escuro. E os indicadores que melhor refletem [a propagação] são a taxa de positividade e de notificação de casos. O que fazemos é usar indicadores muito tardios, como ocupação de leitos e taxa de hospitalização", afirma.

Mesmo o número de internados com Covid voltou a crescer nas últimas semanas em São Paulo, indicando um cenário já avançado da pandemia. "Esses são dados que aparecem de duas a três semanas depois do aumento de casos, então há, sim, uma suspeita de um número muito maior do que está sendo noticiado", completa a epidemiologista.

Pessoas aguardam em fila para fazer teste de Covid-19 na Times Square, em Nova York (EUA) - Timothy A. Clary - 4.jan.22/AFP

Maierovitch defende uma estratégia para detecção de casos de Covid no início. "Nunca teremos em um universo de casos de síndrome gripal o número exato de Covid, mas a falta de testagem nos faz estar em um apagão completo", diz.

Para a pesquisadora do Departamento de Ciência Política da USP Lorena Barberia, nunca houve um estudo adequado para saber os tipos de testes a serem implementados e para qual público-alvo.

"Em diversos países sabemos de estratégias de testagem semanais em alunos nas escolas, profissionais de saúde em hospitais, funcionários e estudantes em universidades. Aqui o governo anuncia a compra de 60 milhões de testes, mas para qual função? Com qual frequência as pessoas serão testadas? É suficiente? Não sabemos, e não sabemos porque não há transparência nem do governo federal, nem dos estados e municípios sobre estratégia e frequência de testagem", diz.

Colaborou Cristiano Martins

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