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Mulheres do Marajó perdem bebês e sofrem por dias em jornadas de parto

Relatos de violência obstétrica se multiplicam na região, com percursos que incluem rios, hospital sem equipamentos básicos e espera por vaga

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Sala de parto do Hospital Municipal de Melgaço, que não está preparado para cesáreas, obrigando as mulheres, quando necessário, se deslocarem de barco por horas até o hospital de Breves Lalo de Almeida/Folhapress

BREVES e MELGAÇO (PA)

Na hora do parto, Antônia perdeu o útero e o bebê, Dalva passou por um sofrimento extremo –com consequência para a saúde do filho– e Fabiula se viu dentro de uma sala vazia por uma noite inteira, até o nascimento e morte da filha na tarde do dia seguinte.

Mulheres da parte ocidental do arquipélago do Marajó, em especial de comunidades ribeirinhas da região de Melgaço (PA), a cidade com o pior IDH (índice de desenvolvimento humano) do país, são vítimas de violência obstétrica num momento que já é de vulnerabilidade.

Parece uma epidemia, com casos frequentes de mães que enfrentam jornadas pelos rios do arquipélago, longas esperas por algum atendimento digno em hospitais da região e périplos por unidades de saúde e cidades diante da desassistência na hora do parto.

A Folha conversou com quatro mulheres que relatam ter sido vítimas de violência obstétrica na região de Melgaço e identificou outros casos em unidades de saúde da região. Todas elas afirmam conhecer mulheres –irmãs, primas, vizinhas– que vivenciaram a mesma violência.

O cerne do problema está no hospital municipal de Melgaço. A unidade de saúde tem uma sala para partos, mas apenas partos normais são feitos. Não há instrumentos, aparelhos e equipe necessários para cesáreas e casos mais complexos.

As mulheres ribeirinhas que precisam de atendimento especializado, e que já percorrem longas jornadas pelos rios até o hospital de Melgaço, são encaminhadas, então, ao hospital de Breves, que fica a uma hora de lancha. Se há alto risco envolvido, uma terceira parada se faz obrigatória: o Hospital Regional do Marajó, também em Breves.

Nesse percurso, faltam lanchas que funcionam como ambulância, vagas nos hospitais e equipes disponíveis, segundo os relatos ouvidos pela reportagem. Essa lógica persiste no Marajó, com consequências à saúde de mães e filhos.

Antônia Moura Duarte, 30, nasceu na comunidade São Miguel, no rio Tajapuru, onde sempre viveu. A comunidade está a duas horas de barco da parte urbana de Melgaço. Vive do manejo do açaí, especialmente no verão, além da pesca do camarão, cada vez mais escasso. A grande maioria das 20 famílias recebe o Bolsa Família, fundamental para a subsistência nesse ponto do Marajó.

Há seis anos, Antônia estava grávida do terceiro filho. Aos oito meses de gravidez, teve uma hemorragia, e precisou ser levada à cidade. Uma ambulancha foi mandada à comunidade, e Antônia conseguiu chegar ao hospital em tempo hábil.

A ribeirinha Francidalva Mendes Santos, 37, com seus filhos no interior de sua casa na região do rio Mujirum, em Melgaço. Ela sofreu violência obstétrica durante o parto de Adailson (sentado no chão), 8, que nasceu com paralisia cerebral - Lalo de Almeida/Folhapress

A partir daquele momento, a mulher perdeu a consciência. Acordou oito dias depois, numa UTI no hospital regional em Breves. Ela diz ter ouvido dos familiares que precisou esperar por horas por uma lancha em Melgaço; que o bebê morreu ainda na cidade; e que, em Breves, foi necessário retirar a criança e o útero.

"Precisei tomar 12 bolsas de sangue. Chegaram a dizer para minha família que eu viveria um ou dois dias", afirma Antônia. A violência que sofreu teve impactos psicológicos, hormonais e físicos, diz ela.

Há três anos, Antônia se casou. Queria ter filhos com o atual companheiro e se ressente disso. Ela é mãe de duas meninas, de 9 e 12 anos.

Em outro ponto fluvial de Melgaço, no rio Mujirum, Francidalva Mendes Santos, 37, relata episódios de violência obstétrica em duas de oito gestações.

Na casa dela, é frequente a falta de comida na dispensa, uma realidade comum a outros marajoaras ribeirinhos, como a Folha mostrou na reportagem publicada no dia 28.

Dalva, como é conhecida, precisou de uma cirurgia cesárea há 21 anos, quando nasceu o primeiro filho. "Fui para Breves. Foram dois dias sofrendo", diz.

Ela se viu confrontada com o mesmo sofrimento no nascimento de Adailson, 8. Com muita dor, a mulher foi levada numa rabeta –a embarcação mais comum de uso dos ribeirinhos, com motores de baixa potência– a Melgaço.

Barco do servico de assistência social da prefeitura de Melgaço abandonado no pier municipal. A cidade tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil - Lalo de Almeida/Folhapress

"Recebi três injeções para aguentar a dor, e não consegui ter ele. De lá, eu não me lembro mais", conta Dalva. Foi levada ao hospital de Breves, onde foi feito o parto.

Adailson nasceu com problemas neurológicos, tem crises convulsivas e toma medicação de uso controlado. É um menino ativo, que consegue se virar sozinho na casa de madeira simples da família formada pelos pais e mais sete irmãos. Perde um pouco de sua autonomia quando falta o medicamento.

"O que me disseram é que ele pegou paralisia cerebral", diz Dalva. "Eu me senti maltratada naquele dia."

Os relatos sobre violência obstétrica se repetem. Fabiula Ferreira dos Santos, 30, mora num bairro colado ao rio na área central de Melgaço, onde as famílias vivem em casas simples de madeira, com pavimentos erguidos uns sobre os outros. Em 2021, uma filha nasceu e viveu por apenas dois minutos, diz Fabiula.

"Fui ao hospital municipal à noite, me colocaram numa sala e foram dormir. Fiquei lá a noite inteira, com dor", afirma. "Viram que eu precisaria de cesárea, e me mandaram para Breves pela manhã. Havia cinco partos na frente, e só fui atendida ao meio-dia." A mãe teve alta no dia seguinte. O bebê foi enterrado em Melgaço. Fabiula tem uma filha de 9 anos e outra de sete meses.

Outra mulher de Melgaço, que prefere não ser identificada, diz ter esperado por três dias na hora do parto. Era a primeira gravidez, e faltou combustível para a lancha usada como ambulância. A cesárea foi feita, em Breves. O bebê precisava ser transferido para outro município, em razão de seu delicado estado de saúde. Não houve a transferência em tempo hábil, e a criança morreu.

Profissionais de saúde relatam que o Hospital Regional do Marajó, em Breves, demora até quatro dias para respostas sobre vagas a parturientes de Melgaço que precisam de atendimento mais urgente. Mulheres relatam discriminação e racismo no périplo que enfrentam no momento do parto.

"O hospital regional recebe demandas reguladas pelo município, com atendimento de portas abertas apenas para casos de obstetrícia de alto risco, provenientes do ambulatório do hospital", afirmou o Governo do Pará, em nota. A unidade de saúde é vinculada à Secretaria Estadual de Saúde.

A ribeirinha Antônia Moura Duarte, 30, moradora da comunidade São Miguel, de Melgaço, que foi vítima de violência obstétrica - Lalo de Almeida/Folhapress

"Durante esse atendimento, a gestante recebe acompanhamento durante todo o pré-natal, com a oferta de exames necessários e atendimento médico", prossegue a nota da gestão Helder Barbalho (MDB), que acrescenta que o hospital é "referência na assistência de média e alta complexidade para várias especialidades, incluindo obstetrícia de alto risco, com acompanhamento médico e multiprofissional durante todo o pré-parto, parto e puerpério".

O prefeito de Melgaço, Tico Viegas (União Brasil), disse que o hospital municipal não tem sala cirúrgica e que a prefeitura não consegue bancar um médico cirurgião para partos que não sejam normais. Segundo ele, há convênio com Breves e Macapá para encaminhamento de pacientes.

"A gente nunca usa, pelas distâncias", afirmou o prefeito.

Um relatório do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, concluído em setembro de 2023 após visita de uma equipe técnica ao arquipélago, cita a ocorrência de violência obstétrica na região de Melgaço.

"No município há relato de muitas ocorrências de violência obstétrica, e essa violação dos direitos das mulheres é muito comum", afirmam os técnicos no documento. "A maioria dos partos é feita em Breves, e já houve muitas situações em que as mulheres gestantes acabaram por perder os bebês devido a não ter lancha ou combustível para levar a gestante a Breves."

O ministério lançou um programa, Cidadania Marajó, com previsão de ações para enfrentar realidades de violação de direitos no arquipélago do Marajó, como o abuso e a exploração sexual infantil.

Reportagem publicada pela Folha em 21 de abril mostrou que uma rotina de violência sexual e gravidez superprecoce no Marajó é alimentada pela ausência do Estado e por desassistência nas comunidades ribeirinhas. A rede de atendimento está voltada às áreas urbanas, numa região onde mais da metade da população está em comunidades nas margens de rios.

O Ministério dos Direitos Humanos, em nota, disse que houve validação, junto ao fórum permanente da sociedade civil do Marajó, de um plano de trabalho para articulação de rede de proteção integrada a meninas e mulheres da região.

"Para o fortalecimento das ações de enfrentamento à violência de gênero, destaca-se a implementação de um Centro de Referência da Mulher Brasileira em Breves", afirmou.

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