A maior parte da população brasileira é parda, uma categoria que desde sua primeira menção no país sofreu mudanças. Ora dizia respeito sobre a origem, ora sobre o tom da pele.
Com mais da metade da população negra (preta e parda), o Brasil ainda tem dificuldade de se definir racialmente. A categoria “pardo” do sistema de autodeclaração racial adotado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é, para muitos, um ponto de interrogação.
“Venho de uma família com origens indígena e europeia, segundo relatos de minha avó materna. Quando adolescente, considerava-me morena, depois branca, mas sempre tive vontade de buscar a minha ancestralidade indígena. Não é muito fácil definir-se dentro de um panorama de tantas misturas”, diz a enfermeira Daniela Lopes Siqueira Campos Klein, 46.
Daniela, moradora de Belo Horizonte (MG), está entre os leitores da Folha que enviaram relatos sobre suas declarações raciais ao jornal para a série de reportagens especiais A Cor da Desigualdade no Brasil. A enfermeira, que diz ter dúvidas sobre se é parda ou indígena, e não é a única.
Felipe Ramon Silva Chagas, 27, por exemplo, declara-se branco, mas sua experiência com a própria identidade não pode ser resumida tão facilmente. Filho de uma mulher negra, Felipe nasceu mais branco que o resto de sua família, que ainda conta com ascendência indígena. “Sendo lido como branco num país extremamente racista, tendo mãe negra e irmão com traços indígenas bem acentuados, sempre me senti deslocado e despossuído de uma identidade.”
Para Felipe, entender-se latino ajudou a aplacar o vazio provocado pela dificuldade de se identificar e ser identificado. Apesar disso, o cozinheiro não foge das questões difíceis.
[...] nosso papel social enquanto indivíduos deve ser o de atuar de maneira consciente, cotidianamente, para minimizar ao máximo os impactos de ser um latino lido como branco num país racista que foi pensado para favorecer pessoas como eu simplesmente pelo tom da minha pele. Menos do que isso, no Brasil de 2021, é terminantemente inaceitável.
Nem todos os brasileiros, porém, estão em dúvida. O técnico em eletrônica José Geraldo da Silva, 60, declara-se branco e sabe de onde veio. “No meu caso, nunca houve dúvida. Sou descendente de italianos e quando estive na Itália, pensaram que eu era alemão”, afirma.
Já Nivaldo Dias, 62, professor da rede pública de educação de Santos, no litoral paulista, sempre soube ser preto. Por ter a pele menos escura, nunca foi plenamente reconhecido da mesma forma que se declara.
Sou filho de mãe preta e sempre fui assinalado como pardo apesar de me colocar sempre como preto. Mesmo na prefeitura, quando anualmente é feito o recadastramento profissional, eu me posiciono assim, mas isso não é levado em conta
Há, ainda, aqueles que vivem no meio termo, e buscam mitigar da melhor forma possível a distância entre quem entendem ser e como são percebidos socialmente.
“Eu tenho a pele clara, olhos e cabelos castanhos. Sempre fico em dúvida sobre se me declaro pardo ou branco ao preencher formulários. Por exemplo, nos formulários em que não há menção a leis que façam discriminação positiva, me declaro pardo. Do contrário, branco, em razão do tom da pele, temendo ser acusado de agir de má fé”, diz Roberto Sant Anna Filho, 53, que é analista judiciário da Justiça Federal em Vitória, no Espírito Santo.
Leia outros relatos:
Tenho dúvidas sobre minha autodeclaração. Sempre me disse parda e sinto falta de poder me declarar mestiça, uma vez que tenho ascendentes indígenas, negros e brancos.
A textura do meu cabelo (crespo) influencia bastante o modo como sou lida socialmente, mas não consigo me ver somente como negra, apesar de entender a importância de assumir essa identidade, que abrange pretos e pardos, principalmente para o desenho de políticas públicas, como bem coloca o professor e antropólogo da USP Kabengele Munanga.
Estou em transição, tentando me convencer sobre qual é a melhor estratégia. No entanto, não me sinto confortável em me beneficiar de cotas raciais. Estou em uma crise identitária, comum aos mestiços.
Narjara Oliveira Reis (Florianópolis, SC)
Eu nunca pensei sobre o fato de que a cor pudesse interferir na minha vida. Nunca me senti menos e/ou preterida, pois todos que conviviam comigo passavam por situações iguais e/ou parecidas.
Depois dos 40 anos comecei a me posicionar com relação a questões sociais e a me posicionar como pessoa de cor preta, mas percebi que por mais que fosse uma posição tomada conscientemente, não foi respaldada por pessoas da minha convivência e tive que voltar a ser parda, aquela que é classe média, aposentada como professora federal, com 63 anos e morando em Vilhena, em Rondônia, ou seja, nestas condições não me consideram preta, pois não tenho as características do preto brasileiro.
Continuo tentando fazer minha parte com relação à conscientização sobre a discriminação e o preconceito enquanto educadora, mas não posso falar sobre sentir [racismo] na pele, pois isso eu nunca passei, ou, se passei, estava ocupada demais cuidando de outras coisas e não percebi.
Neiva Moreira (Vilhena, RO)
Tenho 26 anos e faço mestrado na USP. Estou tentando meu primeiro emprego, atualmente moro em São Paulo. Sou descendente de negros e indígenas, meu avô foi a primeira geração livre da família dele. Minhas duas avós são descendentes de indígenas.
Durante os último anos fui me dando conta do que é ser negra e do que chamamos de colorismo. Mudei minha declaração de parda para preta no ensino médio. Antes disso, tanto eu quanto meu irmão tínhamos medo de sofrer o que nosso avô sofreu com o racismo. Mas a muito custo e muitas lágrimas entendemos a importância da autoafirmação.
Sempre sou a única pessoa negra nos laboratórios, nas entrevistas de emprego, na sala da universidade.
Quando comecei a estudar na Poli-USP foi muito chocante, parecia que estava em uma vila na Europa. Eu e o porteiro éramos os únicos negros lá.
Quando comecei a estudar na Poli-USP foi muito chocante, parecia que estava em uma vila na Europa. Eu e o porteiro éramos os únicos negros lá
Mudar minha declaração de parda para preta foi um choque de realidade, mas significa resistência e luta. Ainda tenho amigos negros que não conseguem se declarar assim. E isso me dói muito.
Kaccnny Carvalho (São Paulo, SP)
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