X dirigia seu carro com as duas rodas da direita sobre a calçada, até ser bloqueado por uma caçamba. Instantes após o acidente, foi encontrado adormecido. Quando acordado, respondia coerentemente a quem lhe acudia, mas bastava uma oportunidade e retornava ao sono. Só conseguiu se sustentar acordado no hospital, muitas horas depois. Não havia consumido bebidas alcoólicas, não havia nada errado com seus exames. Sua esposa suspeita que ele tomou mais de um comprimido de zolpidem durante a madrugada.
Y estava prestes a mudar de cidade, rumo a um novo trabalho, obrigada a partir sem sua família. Preocupada já não dormia mais às noites. Sua vizinha médica lhe prescreveu zolpidem, a fim de resolver o problema noturno. A partir de então, começou a levantar-se logo após os primeiros minutos de sono, e ia às compras on-line, usualmente de sapatos feios e caros. Convenceu-se de ser ela a consumista sem critérios, e não um criminoso, quando seu marido lhe mostrou em vídeo, ela torrando seus créditos.
Z gaba-se de seguir uma alimentação muito saudável. Mas andava ansioso, enfrentava muitas dificuldades familiares. Tornou-se insone, e recorreu ao zolpidem. Desde então, acorda no início da noite e se empanturra de alimentos gordurosos, chega a falar de boca cheia. Mas não se recorda de nada noutro dia.
A droga zolpidem chegou ao mercado na década de 1980, depois de testes clínicos assegurarem sua eficácia contra a insônia e também apontarem que o remédio não causava dependência, tampouco sedação matinal, e nunca alguém a consumiria de forma abusiva. Uma maravilha, o remédio era o oposto de tudo que as farmácias, até então, vendiam contra a insônia. Assim ganhou o coração , digo o cérebro das pessoas e o mercado, com mais de 10 milhões de prescrições/ano nos EUA. Na França, o zolpidem chegou a ser a medicação mais presente em receitas médicas falsificadas.
Um sucesso que ganhou camadas extras de charme. Em 1999, a revista médica mais influente do mundo, The New England Journal of Medicine, publicou uma carta de médicos da Universidade Católica Romana, descrevendo um paciente com uma doença rara, incurável e fatal, a Paralisia Supranuclear Progressiva, cujos sintomas foram aliviados pelo zolpidem. Este mesmo periódico em 2004 publicou uma nova carta, desta vez do hospital parisiense de la Salpêtrière, relatando que a droga fez um homem voltar a falar, após um infarto cerebral o ter calado quase completamente. Em 2000, outra mágica, o fármaco acordou uma pessoa do coma.
Mas se não existe um santo especialista em conceder milagres para qualquer súplica, coitado do zolpidem, é só mais um remédio a atestar que a medicina deve ser modesta frente a certos destinos, e não petulante. Os milagres bioquímicos da droga hipnótica, para além da insônia, não se reproduziam em outras experiências. O neurologista que aqui escreve tentou, mas não conseguiu êxito.
Os milagres perdiam o encanto, enquanto um pecado aqui e outro ali eram revelados. Indução à tolerância era um defeito que o fármaco supostamente não possuía. Mas surgiram relatos médicos de que algumas pessoas passaram a usar doses 20, 30, 100 vezes maiores do que a dose máxima recomendada. Algumas destas sofreram convulsões quando não usaram o remédio por uma única noite, em franca e grave abstinência. E paradoxalmente, o zolpidem quando utilizado em doses altas pode causar euforia, e vira uma droga recreacional.
A crescente experiência com o zolpidem deixou claro que a medicação pode provocar alucinações, delírios, amnésia e comportamentos complexos do sono, como por exemplo, dirigir, comer, comprar, cozinhar, ter relações sexuais enquanto se dorme. Em janeiro de 2013, o FDA advertiu sobre risco de prejuízos cognitivos pela manhã seguinte à noite de uso, um atestado que a medicação pode causar efeitos residuais matinais de sedação, diferentemente do que um dia se pensou.
A insônia é um problema que aflige muitas pessoas, e causa um grave impacto. Contra este infortúnio, a terapia cognitivo comportamental é a primeira escolha. Apesar de tudo, o zolpidem ainda é uma alternativa a ser considerada.
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